Arquitetura de Niemeyer, por Niemeyer
Sempre acrescentei, nas minhas palestras, que não dava à arquitetura maior importância, e não havia nada de depreciativo nessas palavras. Comparava-a com outras mais ligadas à vida e ao homem, referia-me à luta política, à colaboração que todos nós devemos à sociedade, aos nossos irmãos mais desfavorecidos. O que poderia ser comparado à luta por um mundo melhor, sem classes, todos iguais?
Mesmo assim a arquitetura me ocupou demais, levando-me, como agora faço, a defender meus trabalhos, meus pontos de vista de arquiteto, a debater os problemas arquiteturais com um calor que a vida tão frágil e insignificante parece não justificar.
Sempre defendi minha arquitetura preferida: bela, leve, variada, criando surpresa. Palavras que, para alegria minha, encontrei depois num livro de Baudelaire: “L’inattendu, l’irrégularité, la surprise et l’etonnement sont une partie essentielle et une caractéristique de la beauté” (“O inesperado, a irregularidade, a surpresa e o espanto são uma parte essencial e uma característica da beleza”).
Mas não vou descer a detalhes, vou apenas contar minha trajetória de arquiteto, minhas dúvidas, minhas revoltas, minha coragem profissional de fazer o que me agrada e emociona. Sem temor, indiferente a todas as regras preestabelecidas.
Em cinco momentos divido a minha arquitetura: primeiro, Pampulha; depois, de Pampulha a Brasília; depois ainda, minha atuação no exterior; e, finalmente, os últimos projetos que realizei.
Mas nunca comentei a maneira como essas diferentes fases foram influenciadas pelo que ocorria no mundo da arquitetura e o meu pensamento de arquiteto. As reações que meu trabalho provocava e a minha maneira de reagir. Hoje, revendo meus projetos, compreendo melhor por que, em todas aquelas fases, um sentimento de contestação está invariavelmente contido.
Em muitas ocasiões falei do problema da informação genética e de como, a meu ver, ela atua em nossas reações, responsável que é pelas nossas qualidades e defeitos. Não devo me queixar desse ser oculto que dentro de nós existe, que a informação genética criou e tantas vezes nos domina. Mas já comentei como ele me envolve quando inicio um novo projeto, pegando-me pelo braço, levando-me em transe para os caminhos da fantasia, das formas novas e inusitadas, responsáveis pelo espetáculo arquitetural que preferimos.
Nem tampouco como ele participa dos meus entusiasmos e revoltas nesse longo diálogo que vamos mantendo pela vida afora, interferindo nas minhas reações e no meu trabalho, para este transferindo aqueles sentimentos, fazendo-o como que portador do meu entusiasmo ou do meu desprezo e protesto. Assim, se você examinar minha obra de arquiteto, verificará, nas diversas fases a que aludi, como nelas esse velho sósia atuou, transformando-as, por vezes, num desabafo diante dos equívocos que, a meu ver, envolviam a arquitetura.
E tudo começou quando iniciei os estudos de Pampulha – minha primeira fase –, desprezando deliberadamente o ângulo reto tão louvado e a arquitetura racionalista feita de régua e esquadro, para penetrar corajosamente nesse mundo de curvas e forma novas que o concreto armado oferece.
E foi no papel, ao desenhar esses projetos, que protestei contra essa arquitetura monótona e repetida, tão fácil de elaborar que se multiplicou rapidamente, dos Estados Unidos ao Japão.
E o fiz com a desenvoltura que meu sósia pedia, cobrindo a igreja de Pampulha de curvas variadas, e a marquise da Casa do Baile a se desenvolver, também em curvas, pela margem da pequena ilha. Era o protesto pretendido que o ambiente em que vivia exaltava com suas praias brancas, suas montanhas monumentais, suas velhas igrejas barrocas, suas belas mulheres bronzeadas.
Alguns, ainda presos às limitações funcionalistas da época, tentaram criticar Pampulha, mas se tratava de obra tão correta e criativa que justifica o comentário, já mencionado aqui, do meu colega francês, DeRoche: “Pampulha foi o grande entusiasmo da minha geração”.
Era o mundo de formas novas que se antepunha aos equívocos de uma arquitetura que começava a se desvanecer.
De Pampulha a Brasília, minha arquitetura seguiu a mesma linha de liberdade plástica e invenção arquitetural e eu, atento à convivência de defendê-la das limitações da lógica construtiva.
Assim, se desenhava uma forma diferente, devia ter argumentos para explicá-la.
Quando projetei um bloco de curva, por exemplo, solto no terreno, junto apresentei croquis demonstrando que as curvas de nível existentes o sugeriram; quando desenhei as fachadas inclinadas, da mesma forma as expliquei como destinadas a proteger ou aproveitar a insolação encontrada; quando projetei um auditório, cuja forma poderia lembrar um mata-borrão, foi para problema de visibilidade interna que apelei; quando criei um sistema de montantes na forma de um “y”, reduzindo-os no térreo e multiplicando-os nos andares superiores, a razão que apresentei foi de economia; quando propus coberturas em curvas, com apoios inclinados nas extremidades, dei como justificativa o problema estrutural do empuxo; quando propus uma solução com curvas e retas, foi para diferenças de pé-direito que recorri.
Com isso, ia defendendo a minha arquitetura e as minhas fantasias, criando formas novas, elementos arquitetônicos que se adicionaram com o tempo ao vocabulário plástico de nossa arquitetura, com freqüência usados pelos meus colegas, mas nem sempre na escala e apuro desejados.
E assim continuei, durante muitos anos, procurando a forma diferente e explicando-a depois, como convinha.
Durante esse período fiz três viagens ao exterior. A primeira, a convite do Lúcio Costa para com ele trabalhar no projeto do Pavilhão do Brasil, na Feira Internacional de Nova Iorque; a segunda, para a Venezuela, onde projetei um museu. Uma pirâmide invertida, que tinha na conformação do terreno sua explicação; a terceira, a Nova Iorque, onde participei de um concurso privado para a construção da sede da ONU, no qual meu projeto foi escolhido por unanimidade.
Confesso que, ao iniciar o meu trabalho em Brasília, já me sentia cansado de tantas explicações. Sabia ter experiência bastante para delas me libertar, desinteressado das críticas inevitáveis que viriam suscitar meus projetos.
Como na época de Pampulha, um sentimento de protesto me possuía. Já não era a imposição do ângulo reto que me irritava, mas a preocupação obsessiva a favor da pureza arquitetônica, da lógica estrutural, da campanha sistemática contra a forma livre e criadora que me atraía, considerando-a com desprezo coisa gratuita e desnecessária. Falavam do “purismo” – da “máquina de habitar”, do “less is more”, do “funcionalismo” etc. – sem compreenderem que tudo isso se desvanecia diante da liberdade plástica que o concreto armado oferece. Era a arquitetura contemporânea a se perder nos seus repetidos cubos de vidro.
Imaginava então como, cansados de tanta repetição, seus seguidores optariam um dia por coisa diferente, desiludidos dos dogmas que tanto defendiam, convictos afinal de que a invenção deve prevalecer. E isso aconteceu agora, com eles, mais uma vez equivocados, a seguirem coniventes essa aventura do pós-modernismo, repetindo os mesmo edifícios, neles grudando antigos detalhes de uma velha e superada arquitetura. Era a “Gratuidade” que antes combatiam e agora aceitavam na sua forma mais simplória.
E lembrava como, terminada uma estrutura nada se sabia de arquitetura que a devia completar e que vinha depois como coisa secundária. Uma imposição do rigorismo técnico, um equívoco que os puristas, com suas estruturas medíocres, sempre aceitaram.
À arquitetura, antecipando-se aos problemas estruturais, caberia a meu ver essa tarefa, para, seguindo as fantasias do arquiteto e com o apuro da técnica, criar o espetáculo arquitetural que os temas atuais reclamam.
E decidi, nos palácios de Brasília essa seria a minha escolha, caracterizando-os pelas próprias estruturas, dentro das formas concebidas. Com isso, detalhes menores que compõem a arquitetura racionalista se diluiriam diante da presença dominadora das novas estruturas. Se examinarem o Congresso de Brasília ou os palácios nela realizados, verão que, terminadas suas estruturas, a arquitetura já estava presente.
E procurei especular no concreto armado, nos apoios principalmente, terminando-os em ponta, finos, finíssimos, e os palácios como que apenas tocando o chão.
Lembro com que prazer desenhei as colunas do Palácio da Alvorada, e com que prazer maior ainda as vi depois repetidas por toda parte. Era a surpresa arquitetural contrastando com a monotonia existente.
E recordo-me como com o mesmo empenho me detive diante dos Palácios do Planalto e do Supremo na Praça dos Três Poderes. Afastando as colunas das fachadas, imaginando-me, diante da planta elaborada, a passar entre elas, procurando sentir os ângulos diferentes que poderiam provocar. E isso me levou a recusar o montante simples, funcional, que o problema estrutural exigia, preferindo, conscientemente, a forma nova desenhada, rindo com o meu sósia daquele “equívoco” que a mediocridade atuante, com prazer, descobriria.
Nada os demovia e não eram curiosos. Se o fossem, se lessem um pouco mais, como lhes teria feito bem, por exemplo, esta frase de Heidegger: “A razão é inimiga da imaginação”.
Um dia, sentado diante do Palácio dos Doges, surpreso com sua admirável leveza, encontrei naquela magnífica obra de Calendário o exemplo do que a minha arquitetura defendia. E ali mesmo, escrevi um pequeno texto, imaginando-me a conversar com o arquiteto racionalista. Diálogo simples e socrático, que gosto de mencionar e aqui vou transcrever:
– O que você pensa deste palácio?
– Magnífico!
– E das suas colunas tão trabalhadas?
– Muito bonitas!
– Mas você, um funcionalista, não as preferiria mais simples e funcionais?
– É exato.
– Mas, se assim fosse, não existiria esse contraste esplêndido entre as colunas cheias de arabescos e a parede lisa que suportam.
– É verdade.
– Então você tem de concordar que quando uma forma cria beleza, tem na beleza sua própria justificativa.
Meus projetos em Brasília continuaram a correr. O teatro, por exemplo, concebido em três dias, durante um carnaval.
Nunca reclamei. Se faltava tempo para pensar um pouco, tempo também faltava para as modificações indesejáveis.
A procura da solução diferente me dominava. Na catedral, por exemplo, evitei soluções usuais, as velhas catedrais escuras, lembrando pecado. E, ao contrário, fiz escura a galeria de acesso à nave e esta, toda iluminada, colorida, voltada com seus belos vitrais transparentes para os espaços infinitos.
Dos padres sempre tive compreensão e apoio, inclusive do Núncio Apostólico que, ao visitá-la, não conteve seu entusiasmo: “Esse arquiteto deve ser um santo para imaginar tão bem essa ligação esplêndida da nave com os céus e o Senhor”. Com a mesma preocupação de invenção arquitetural concebi os demais edifícios. O Congresso a exibir seus setores hierarquicamente principais nas grandes cúpulas contrastantes; o Ministério da Justiça a jorrar água, como um milagre, pela fachada de vidro; e o Panteão a enriquecer como um pássaro branco a Praça dos Três Poderes. Somente no Ministério do Exterior agi, diferente, desejoso de demonstrar como é fácil agradar a todos com uma solução correta, generosa mas corriqueira, dispensando maior compreensão e sensibilidade.
Agora, quando visito Brasília, sinto que o nosso esforço não foi à toa, que Brasília marcou um período heróico de trabalho e otimismo; que a minha arquitetura reflete bem o meu estado de espírito e a coragem de nela exibir o que intimamente mais me comovia. E, ainda, que ao elaborá-la soube respeitar o Plano Piloto de Lúcio Costa nos volumes e espaços livres, nas suas características tão bem concebidas de cidade acolhedora e monumental.
Durante 20 anos a ditadura militar ocupou nosso país. Ninguém se preocupou em desmerecer Brasília, mas um desinteresse, um desamor permanentes permitiram que muita coisa fosse desvirtuada. Refiro-me principalmente aos edifícios medíocres nela construídos, quebrando a unidade urbana pretendida.
Não tive alternativa senão ir para o exterior. Lá estão algumas das melhores obras que projetei. A sede do Partido Comunista Francês, a Bolsa de Trabalho em Bobigny, o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, a sede Fata, em Turim, a Mondadori, em Milão, as universidades de Constantine e Argel, na Argélia.
Nessa fase, a quinta da minha obra de arquiteto, prevaleceu o propósito de levar comigo não apenas a liberdade plástica da minha arquitetura, mas o progresso da engenharia do meu país. E procurei com carinho as soluções que cada projeto exigia, desejoso de definir com clareza meu trabalho de arquiteto.
Na sede do Partido Comunista Francês mostrei como é importante manter exteriormente um jogo harmonioso de volumes e espaços livres, o que explica ter localizado o grande hall da classe operária em subsolo; na Bolsa de Trabalho, como é possível fazer obra econômica, dando ao bloco principal maior economia, mas enriquecendo-o pelo contraste com as formas livres do auditório; no Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, rebaixando a praça para protegê-la do frio e dos ventos permanentes no local, solução como outra não existe na Europa, criando nos edifícios superfícies curvas, suaves, cegas, quase abstratas. Obra que mereceu de Zevi, no Congresso do Cairo, este elogio inesperado:
“Coloco a Praça do Havre entre as 10 melhores obras da arquitetura contemporânea”. Na sede Fata, suspendendo os cinco pavimentos nas vigas de cobertura, solução estrutural interessante que Massino Morandi, que a calculou, assim definiu: “Pela primeira vez deram-me a possibilidade de mostrar o que conheço do concreto armado”. Na sede Mondadori, mantendo as arcadas em vãos desiguais, no ritmo diferente, quase musical que a caracteriza; na Argélia, os grandes espaços livres vãos de 50 metros, balanços de 25, uma arquitetura tão imponente que nela desaparecem as deficiências da mão-de-obra local.
Agora, em São Paulo, no Memorial da América Latina, minha arquitetura segue de forma mais radical o avanço da técnica construtiva. Nada de detalhes menores, apenas vigas de 70 a 90 metros e as cascas curvas. São os grandes espaços livres que o tema estabelecia. Uma obra cuja monumentalidade corresponde à grandeza dos seus objetivos. Aproximar os povos da América Latina tão oprimida e explorada.
Poucos projetos de caráter social realizei e confesso que, ao fazê-lo, sempre me senti como que conivente com o objetivo demagógico e paternalista que representam: enganar a classe operária que reclama melhores salários e as mesmas oportunidades.
Sempre recusei esse equívoco, essa idéia medíocre dos que insistem uma arquitetura “mais simples, mais ligado ao povo”. Quando realizamos os CIEP’s, sentimos com satisfação como as crianças pobres gostavam de freqüentá-los, como se isso lhes desse a esperança de que um dia poderiam usufruir o que até hoje só aos mais ricos é permitido. Para mim essa idéia da simplicidade arquitetural é pura demagogia, discriminação inaceitável e, às vezes, uma timidez que só falta de talento pode explicar.
Por outro lado, a monumentalidade nunca me atemorizou quando um tema mais forte a justifica. Afinal, o que ficou da arquitetura foram as obras monumentais, as que marcam o tempo e a evolução da técnica. As que, justas ou não, sob ponto de vista social, ainda nos comovem. É a beleza a se impor na sensibilidade do homem.
Ah!, como foram grandes os velhos mestres, os que criaram as cúpulas imensas, as voutes extraordinárias, as velhas catedrais!
Eis o que lhes devia dizer sobre a minha arquitetura feita de coragem e idealismo, mas consciente de que o importante é a vida, os amigos, e este mundo injusto que precisamos melhorar.
NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo – memórias. Páginas 265-276 – Revan: São Paulo, 7ª edição, 2000.
EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 46, 47, 48, 50