Considerada uma das maiores mostras de arquitetura a Bienal Internacional de Arquitetura (BIA) de São Paulo (que teve a 7a edição entre novembro e dezembro na Fundação Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo), a exposição colocou a arquitetura frente a frente com seu maior desafio contemporâneo: a relação entre o público e o privado. Para o arquiteto e curador da 7ª BIA, José Magalhães Júnior, está colocada para os arquitetos a necessidade de um debate sobre sociologia, cultura e economia. Levantar o tema da moradia, segundo ele, incentiva a elaboração de políticas de desenvolvimento urbano no Brasil. “Projetos urbanos são necessários para se estabelecer a relação entre o público e o privado”, destaca o coordenador da 7ª BIA.

Princípios – Como foi a escolha deste tema para a Bienal de arquitetura?

Magalhães – A escolha do tema “relação entre o público e o privado” para a 7ª BIA (Bienal Internacional de Arquitetura) de São Paulo se deu a partir da idéia de se discutir todas as relações que permeiam esses dois pólos, o público e o privado.
Para debater a relação entre o público e o privado no Brasil é importante buscarmos as raízes da Constituição de 1988, ainda vigente, chamada por Ulysses Guimarães de Constituição cidadã. Ela aborda o interesse público e também estabelece o direito à propriedade privada, colocando limites a estes direitos. Evidentemente, para se fazer planejamentos e projetos urbanos deve-se lidar com a matéria-prima do planejamento que é a terra, e se esta terra é totalmente privada torna-se muito complicado fazer qualquer intervenção.
O Estado possui algumas parcelas do território, mas além de haver poucos territórios públicos ou estatais, estão diminuindo. A Constituição, ao estabelecer limites, determina o que chamei de interesse público. Desta forma, temos a chamada função social da propriedade. É necessário que determinadas propriedades, por sua situação ou tamanho, respondam ao interesse público. Numa propriedade com áreas ambientais importantes em seu interior para o equilíbrio ecológico – como florestas, rios – é fundamental a existência nessas áreas de um equilíbrio com esse espaço sob domínio do proprietário. E essa condição é defendida constitucionalmente de forma muito clara. Para fazer planejamento urbano é necessário que se possa jogar com essas duas situações e, na medida do possível, encontrar um ponto de equilíbrio entre elas. Para isso a Constituição previa – e foi instituído – o chamado Estatuto da Cidade, que coloca todas essas questões de que tratei de uma forma ordenada, e estabelece princípios e instrumentos para que se possa fazer política urbana.
Nesse contexto todo, gostaríamos de discutir na Bienal de arquitetura essas questões de uma forma ampla. De um lado, trabalhar com aspectos que dizem respeito a nossa vida cotidiana do cidadão: uma calçada bem feita e bem dimensionada, por exemplo, pode ser um elemento de qualificação para a cidade – isso faz parte desse chamado espaço público. Estamos discutindo aqui a importância e a falta desses espaços. Para isso foram montados diversos segmentos de exposição que procuram contemplar as peculiaridades da questão além do que os trabalhos dos arquitetos pelo mundo afora. Os arquitetos brasileiros que estão expondo aqui vieram de todas as partes do Brasil. Em cada uma delas a arquitetura assume um estilo que deve combinar com o local, o clima, a cultura, o folclore de cada lugar etc. Queremos mostrar a diversidade de atuação do arquiteto.
Estamos fazendo duas homenagens: uma a Paulo Mendes da Rocha, ganhador do Prêmio Pritzker de 2006; e outra, chegando então ao objeto maior de nossa intenção, a obra de Oscar Niemeyer, representada por duas exposições: uma na marquise e outra na parte interna do pavilhão.

Princípios – Para você, as pessoas utilizam o espaço público como praças e parques etc?

Magalhães – Todos nós que vivemos em cidades sabemos que passamos por um momento em que as questões voltadas à segurança estão na pauta das preocupações. Ao andar de automóvel as pessoas se fecham totalmente, ao colocarem vidros escuros de forma a se isolar o máximo possível buscando a sensação de segurança. No entanto, para mim, dentro do automóvel numa via, cada um deve se sentir muito sozinho, porque não se comunica nem do ponto de vista visual.
Por outro lado, o espaço público – por exemplo, as calçadas onde podemos andar a pé e encontrar pessoas – não é tratado devidamente, tornando-se espaço que chega a ser desagradável para convivência. Muitas barreiras arquitetônicas nos espaços públicos limitam a possibilidade do ir e vir. Além disso, as praças públicas e os parques encontram-se geralmente cercados por grades. Lembro-me que no Parque do Ibirapuera podia-se percorrer a partir da Avenida República do Líbano, andar protegido por uma marquise desenhada com uma simplicidade muito grande, mas generosa, entrar no Parque e chegar ao outro lado dele atravessando-o. Hoje, não, para entrar no Ibirapuera é preciso passar por alguns dos seus portões, que são controlados e ficam abertos durante o dia.
Esses limites estão permeados por essas circunstâncias impostas pela sociedade atual. Existe um exagero e um apelo a tais aspectos de segurança. Certas áreas da cidade não são tão inseguras assim, apesar de se alardear o contrário. As áreas consideradas mais seguras, que dão uma sensação de conforto, são aquelas onde há uma densidade razoável de população que vive, trabalha e circula – como o centro da cidade de São Paulo, na maior parte do dia. Segundo o arquiteto Edgard Graeff, um mestre nosso – que morreu há muitos anos –, o espaço urbano é o espaço da solidariedade, o lugar em que você pode encontrar seus próximos. É o que deveria ser. O que se procura é reafirmar a necessidade de espaços urbanos generosos. Por outro lado, assistimos ao “engradamento” de parques e edifícios.
O que temos que fazer? É a pergunta para que possamos resgatar a melhoria do espaço urbano. No meu ponto de vista, a resposta é estabelecer projetos urbanos por partes da cidade que possam contemplar uma série de condicionantes. Por exemplo, se existe um centro para o qual possa ser levado o maior número de habitantes começa a haver a necessidade de uma série de outros equipamentos para complementar essa vida urbana: o pequeno comércio, a farmácia, escolas, postos de saúde etc. Este conjunto de equipamentos faz desse centro um lugar urbano com qualidade para se viver.
Essa é a condição que me parece importante hoje em dia. Contudo, existem certas áreas da cidade, verdadeiras cidades marginais com ocupações irregulares e o predomínio da economia informal. A cada dia observamos que a incorporação efetiva desses lugares às regiões melhor estruturadas se faz necessária.
Houve uma expansão muito grande, são áreas extremamente consolidadas, não dá para reverter. É necessário equipar a população e os lugares. Muitas vezes essa ação significa intervir no lugar já feito, que necessita de melhoria. Hoje, assistimos na periferia a uma produção de habitações com um nível de construção até muito bom. Aqueles operários que durante a semana constroem as outras estruturas da cidade, os grandes edifícios, e em mutirão, no fim de semana fazem sua própria casa. Existe muita criatividade neste processo. Aí há um fenômeno – muito discutido por nós – que é a laje, por exemplo, feita de concreto armado. Ela se transforma, por falta de outro local, em espaço de convivência. Usa-se como área de serviço, como espaço para criança brincar e no fim de semana vira o espaço do churrasco, do lazer.
Por outro lado, algumas áreas têm de ser removidas mesmo. As ocupações em áreas totalmente instáveis, à margem de córregos, sujeitas à inundação etc. Então, há necessidade de projetos levando em consideração as áreas que devem ser desabrigadas. Claro, há planejamento urbano, mas essas coisas precisam de uma intervenção mais efetiva. Há muito trabalho pela frente. Por isso, na verdade, esse tipo de cidade e de ocupação é um desafio para nós. Os arquitetos têm de entrar nesse trabalho com muita força, voltando seu trabalho cada dia mais para essa chamada cidade informal.

Princípios – A arquitetura pode associar à técnica a ação social? O uso do concreto armado, na arquitetura, por exemplo, permite a construção de espaços amplos com materiais simples?

Magalhães – No Brasil temos a tradição de uso desse material, facilmente manipulável. Na medida em que estiver corretamente dimensionado ele pode ser usado por operários sem grande qualificação.
Claro, a obra do Niemeyer está calcada em cima de toda essa situação. Foi possível construir desde Pampulha a Brasília até obras mais novas dele, a partir desse material. O concreto armado permite liberdade de criação, permite vencer vãos de apoios, dar expressividade às edificações, porque ser extremamente moldável. A técnica de execução do concreto armado pode ser considerada democrática. Entretanto, com o advento da indústria metalúrgica as estruturas metálicas estão a cada dia chegando a um patamar de possibilidade de utilização versátil sem ser um material caro. Pode-se combinar os dois materiais: a estrutura metálica e o concreto. Essas técnicas dependem do que se pretende fazer.

Princípios – No seu ponto de vista, qual a maior contribuição do arquiteto Oscar Niemeyer não só para a arquitetura, mas para a sociedade?

Magalhães – Ao fazer suas obras, públicas ou privadas, Niemeyer sempre encontra uma forma de tal edifício dialogar de uma maneira democrática com o entorno, dando as condições de usufruir dos edifícios com liberdade. Em alguns deles, ele trabalha com térreos abertos, como linguagem de liberar as massas arquiteturais do solo e liberar o solo para outros usos – da convivência, da possibilidade do encontro e do diálogo –, que seria o espaço da solidariedade. Esse traço está presente em toda a obra de Oscar Niemeyer, desde as primeiras nos edifícios construídos no Parque da Pampulha, passando por Brasília, em todas as obras que ele fez fora do país em função do auto-exílio a que foi submetido, no Memorial da América Latina, até seus projetos atuais.

Nós temos, na referência do Oscar Niemeyer, uma série de pressupostos que fazem parte dessa linguagem da arquitetura contemporânea. Ele coloca sempre a beleza de forma com que a arquitetura possa emocionar, e ao mesmo tempo signifique a possibilidade de diálogo entre todos nós.

EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 54, 55, 56