Este seminário, em sua primeira parte, realizou um esforço para tentar indicar as particularidades do capitalismo contemporâneo. Objetivo esse muito importante, na atualidade, para que um partido político possa definir sua estratégia e sua tática. Não podemos ficar simplesmente nas generalidades, naquilo que já conhecemos do capitalismo. Precisamos captar, penetrar naquilo que define essa singularidade atual. Valorizo o esforço teórico e político realizado pelos conferencistas, pelos participantes do Seminário, em busca dessas particularidades.

O Seminário também empreendeu uma reflexão para melhor compreender a realidade e a geopolítica do mundo atual. Que mundo temos diante de nós? Que política prevalece? Que sistema de poder mundial vigora? Consideramos essencial, para responder a tais indagações, a discussão travada na primeira parte do Seminário, no seu primeiro dia. O PCdoB não é grupo de diletantes. Toda essa discussão serve à definição da política partidária. Esse foi o esforço realizado.

Desde o último Congresso do PCdoB, procuramos investigar qual seria a particularidade do capitalismo contemporâneo. Por isso, um dos propósitos desse evento é aprofundarmos uma compreensão mais justa sobre essa questão. Neste particular, destaca-se o tema relativo à financeirização. O Seminário deu algumas contribuições para que possamos persistir no aprofundamento das reflexões e pesquisas. Porque o grande problema não é constatar que estamos diante de uma finança mundializada – de um mercado da riqueza como se diz – ou até mesmo afirmarmos que há uma dominância financeira. Até aí não vejo particularidade, não vislumbro nisso uma singularidade.

A financeirização, como sistema de poder

Quando se afirma que o rentismo, que também não é novo, passou a ser “institucionalizado”, começamos a examinar uma peculiaridade do tempo presente. Alguns aqui se referiram ao período de John Maynard Keynes (1883-1946) e em tom de humor dizemos que ele iria se revolver em sua sepultura ao ouvir falar desse rentismo, que consiste na forma de vasta especulação institucionalizada.

O cerne da questão é saber se a financeirização está no centro das relações econômicas e sociais. Isso é verdadeiro? Dado significativo está expresso pela forma de concentração e universalização das finanças contemporâneas, que mobiliza volumes enormes de ativos financeiros por meio dos instrumentos ditos derivativos, constituindo-se estes, em meios privilegiados de especulação, onde o capital especulativo, parasitário, tem função primordial. Ou melhor, se procurarmos aprofundar mais a questão, surge a pergunta: o capital portador de juros, tal como foi denominado por Karl Marx (1818-1883), está no centro das relações econômicas e sociais hoje no mundo? Como se sabe, a mais-valia auferida não é só parte do lucro do capital, mas também a parte dos juros. E essa parte dos juros passa a ter um crescimento maior de valor, passando a estar no centro das relações econômicas e sociais. Há maior exigência de aumentar a mais-valia, para haver mais remuneração para a esfera financeira, prevalecendo o “viés” financeiro, retirando assim recursos para o reinvestimento na produção.

Mais explicitamente, como discorreu na sua exposição o economista e professor Luiz Gonzaga Belluzzo, a financeirização passa a ser um sistema de poder e controle, porque por trás estão setores poderosos, da classe dominante capitalista que passam a ter em suas mãos grandes meios de alavancagem, através da mobilização de gigantescos volumes de ativos financeiros. Então, passa a ser uma relação de poder no centro do sistema. As próprias empresas produtivas passam a ficar presas à lógica financeira, à mercê da criação de grandes departamentos financeiros, e os Bancos Centrais em última instância se tornam dependentes do poder da riqueza “financeirizada”. É um padrão sistêmico que impõe sua lógica a tudo, na distribuição de renda, na própria definição da política salarial e dos direitos trabalhistas.

Estas são as questões que devemos aprofundar em nossa apreciação, em nosso debate, para podermos realmente localizar essas particularidades do capitalismo atual, porque isso tem relação com o poder, com a fração da burguesia detentora de maior poder. E tal situação pode ter conseqüência no ajuste da nossa visão teórica e estratégica. Sabemos que a ação política do Partido torna-se cada vez mais eficaz se concentrarmos bem o nosso alvo no inimigo mais poderoso e, desta forma, neutralizar parte de forças retrógradas importantes e ganhar um número muito maior de forças para o lado do progresso social. Ou seja, é preciso sempre ter nítido qual o alvo a ser alvejado, que pressupõe compreender essa particularidade atual. Qual fração das classes dominantes hoje tem mais poder? Contra ela é que temos de canalizar nosso combate, nossa ação. Assim, nossa luta se torna mais eficaz. Essa história de ampliar o alvo, buscando muitos inimigos, não é da experiência exitosa, dos comunistas. Evidentemente, os alvos podem variar, conforme as fases da luta política.
Mas, saber concentrar o alvo de ataque no tempo certo é fundamental para o êxito da nossa tática política.

Na dinâmica do capitalismo contemporâneo outro componente abordado foi o papel da moeda. Dentre as diversas problematizações apresentadas, essa me parece importante. A moeda não é algo restrito à economia – mas, antes de tudo é uma questão política. Desse modo, a força do dólar não pode ser avaliada pelo lastro material. Alguns conferencistas se referiram a isso. Aliás, nem há mais lastro físico, digamos assim, há uma desmaterialização da moeda, isso é um “aperfeiçoamento” do capitalismo. O lastro físico é uma condição do passado do sistema. Hoje não é mais necessário esse mecanismo.

Mas de onde vem, então, a força do dólar? Vem exatamente da força da hegemonia política, econômica, militar, dessa força hegemônica de uma determinada potência econômica. E quando o dólar começa a enfraquecer é um sintoma importante do nível dessa hegemonia. O “termômetro” começa a indicar febre.

Mesmo de comentaristas econômicos de extração neoliberal pode-se ouvir que “realmente há um enfraquecimento do dólar e isso tem impacto na hegemonia exercida pelos Estados Unidos”. Esse debate foi realizado no Seminário. É uma realidade em si controversa. Como o imperialismo norte-americano, diante de uma situação assim descrita, mantém a sua hegemonia? Evidentemente, ele procura se fortalecer para consolidar a sua hegemonia. Mas nas circunstâncias atuais isso se torna difícil. Porque antes, naquele período aqui citado, quando Paul Volcker era o presidente do Federal Reserve Bank, o Banco Central dos EUA, eles podiam aumentar os juros e fazer o que quisessem.

Atualmente, isso é impraticável. E é como disse bem aqui o professor Luiz G. Belluzzo: é preciso chamar a China para conversar. Estamos numa situação diferente ou não? A China tem um grande poder econômico, tem reservas num volume extraordinário. E os Estados Unidos são os maiores devedores. Então, como eles vão tratar essa questão de forma unilateral, como faziam antes? Como vão resolver esse impasse? Eles não têm mais condições de utilizar os mesmos métodos do passado.

Portanto, acredito que temas como esse, e outros, têm uma implicação estratégica e tática muito importante. E temos de considerá-los e estudá-los adiante. Como também verificar os reflexos destes fenômenos – como eu dizia –, porque no caso da moeda é uma espécie de sintoma das dificuldades, ou da crise, dessa hegemonia, que de fato hoje é uma hegemonia colocada em xeque, pelos menos. Porque os EUA não conseguem fazer o que faziam antes e não podem impor totalmente a sua agenda.

O caso do Irã é típico. Até mesmo a questão da Venezuela. Aplicar a política que a Venezuela faz hoje, com soberania, com independência, aqui na América Latina? E, de certa forma, enfrentar o imperialismo norte-americano. Os EUA terem de engolir isso, mesmo com todas as tentativas de provocação, mesmo com toda a mídia do lado deles… Portanto, estamos diante de uma realidade diferente, uma realidade nova em desenvolvimento.

Um mundo em transição

Tais fatos são indícios de que vivemos uma realidade e um mundo em transição, diagnóstico assinalado por vários conferencistas, sendo que essa transição não é pacífica. Não somos ingênuos. Reafirmo: caminhamos, sim, para uma transição no mundo atual, mas não uma transição pacífica. A não ser que tivéssemos a ilusão de que não existisse mais o capitalismo. Ao contrário: ele prevalece, predomina. Trata-se, então, de uma transição conflitiva, prenhe de tensões. Isso é importante para que nos armemos do ponto de vista político e ideológico, e até mesmo quem sabe de outros meios, a depender, evidentemente, da evolução da situação.

Essa aferição é relevante porque no início da década de 1990, havia aquela euforia liberal a proclamar , inclusive, o fim da história. Esse triunfalismo das forças conservadoras se dissipou num tempo curtíssimo da história, em pouco mais de dez anos.

Recordemo-nos daquele período da chamada poeira da Queda do Muro, o momento em que muitos de nós aqui lutamos por manter a identidade comunista. Naquela quadra, quantos capitularam? É ilustrativo recuperar tais imagens porque no presente vivemos uma situação distinta – de retomada. Vivemos um reinício de lutas importantes. As esperanças começam a brotar, num tempo histórico curtíssimo. Porque dez, quinze, anos para a história é um período muito efêmero.

Ao nos aproximarmos do giro da primeira da primeira década do Século XXI, o mundo se caracteriza, sim, pelas desigualdades, pela instabilidade, pela insegurança, pela guerra. Nessas circunstâncias é que temos de analisar essa transição na qual há esse crescimento – inédito –nos países do chamado terceiro mundo, nos países em vias de desenvolvimento buscando alternativas inovadoras. Ou seja, criando pólos dinâmicos que são importantes no enfrentamento dessa concentração exacerbada de riqueza e poder no mundo atual. Então, em contraposição a isso, é inevitável que surja essa contraposição, um movimento anti-hegemonista.

Esse movimento eclode na periferia, nos países que compõem essa constelação de países em vias de desenvolvimento. Nesse universo joga um papel importantíssimo a China. Temos de levar em conta, portanto, que há uma tendência, sim, a uma realidade multipolar que leva a novas tensões, a novas disputas.

Podemos dizer que esse fenômeno é inevitável: diante da monopolização do poder e da riqueza, sempre haverá uma contraposição a isso, uma luta contra-hegemônica. Na visão correta de Lênin, um desenvolvimento desigual de capitalismo. Então, o fato mais importante, a singularidade, é que esses pólos dinâmicos começam a surgir, se desenvolver, nessa área dos países emergentes. Portanto, essa é uma tendência, um tema que devemos considerar.

Ascenso da luta progressista na América do Sul

Essa análise repercute na nossa visão sobre a luta pelo socialismo nas condições atuais. Temos destacado que ela se realiza do ponto de vista revolucionário ainda num período histórico de defensiva estratégica. Mas a partir de meados da década passada já há um florescer de batalhas e um crescimento progressivo da luta antiimperialista. E esse cenário hoje na América Latina, considerando mais especificamente a América do Sul, tem uma importância muito grande nessa retomada das lutas dos povos, nesse revigoramento da luta progressista. Trata-se de um alento para os povos e para o campo das forças revolucionárias.

Para mim, o que se passa agora, também, na América Latina, sobretudo, aqui, na América do Sul, tem uma importância muito grande nessa nossa compreensão de acumulação de forças. Essa experiência que se desenvolve na Venezuela é relevante na formação de um pensamento revolucionário atual, com as particularidades próprias de um país como a Venezuela. No contexto atual é uma experiência que tem peso por ser uma experiência avançada. Como sabemos a construção da teoria revolucionária não surge simplesmente porque um indivíduo quer, porque um partido quer. A teoria revolucionária é produto de um tempo determinado, historicamente situado, e de uma experiência política avançada e até mesmo do início de uma experiência revolucionária. Porque a teoria surge da prática, é o óbvio. Não vai surgir abstratamente, porque se assim for, será uma teoria formal. Desse modo, essa experiência da América Latina, essa experiência da América do Sul, é muito importante. Estamos diante da sistematização de idéias a partir de uma experiência nova e de um pensamento revolucionário liberto.

É um começo, ainda disperso, é verdade, mas é assim que a teoria revolucionária se desenvolve. Porque sem teoria revolucionária – já dizia Vladimir I. Lênin – não pode haver movimento revolucionário. E é exatamente esse movimento que enriquece a nossa teoria. Por isso a experiência da América do Sul é para nós relevante. Hoje, derrotar a política do imperialismo, derrotar sua política econômica, sua política financeira tem um sentido tático e estratégico.

Reformas democráticas e a luta pelo socialismo

A luta por reformas democráticas, atualmente, tem uma importância política essencial para o PCdoB. Pelo entendimento nosso, no Brasil o processo de acumulação de forças, de construção de novas forças avançadas no contexto do governo Lula, passa necessariamente pela luta por reformas democráticas. E essa luta por reformas democráticas se faz em três vertentes – temos insistido nisso, o partido tem procurado desenvolver essa idéia –: 1)a participação em governos democráticos, no próprio governo da República, que abre possibilidades democráticas nesse sentido.

Nós participamos do governo da República, uma participação ainda pequena, limitada. Mas em alguns aspectos de grande responsabilidade. De governos estaduais democráticos, e de prefeituras democráticas, numa tentativa de ampliarmos a influência política do PCdoB. 2)A outra vertente, que não se separa dessa, mas para nós fundamental, é a presença e atuação no movimento social, essa fusão do partido com o movimento de massas, essa ligação estreita com o movimento de massa. Porque aqui é que está a força-motriz. E se essa força-motriz não é organizada, não é posta em movimento não haverá transformações de fundo.

3)Por fim, a vertence da luta te´rica, da luta de idéias, da luta ideólogica. Porque aqu também é importante para nós construirmos a alternativa, embasarmos a alterntiva à dominância neoliberal.

Então, por intermédio dessas três vertentes articuladas e inseparáveis se realiza a construção do nosso partido e se processa sua acumulação de forças. Na atualidade, tudo tendo em vista colocarmos como centro a luta por reformas democráticas. Trata-se de uma decisão recente do PCdoB que definiu seis reformas democráticas para fazer avançar o processo de construção da democracia no país e elevar o patamar das conquistas no segundo mandato do presidente Lula. Essa diretriz tem um valor político grande, para não ficarmos na defensiva, e assim termos um instrumento político para combater reformas de cunho neoliberal às vezes propostas de forma enviesada, algumas das quais conseguimos inclusive contrapor e derrotar. Mas temos de ter as nossas propostas de reformas democráticas, nas condições concretas do Brasil. Essa, então, é uma outra iniciativa para nós importante – sempre sob a visão da acumulação de forças.

Por isso, a luta pelo socialismo hoje passa por um engajamento cada vez maior do nosso partido, na luta antiimperialista, na luta pela soberania do país, na luta por uma democracia mais ampla, na luta pelos direitos dos trabalhadores e do nosso povo. Essa conduta eleva o seu prestígio junto ao povo, aos trabalhadores. Não podemos inventar batalhas. Temos de levar em conta o nível da batalha em andamento. Mas se levarmos essas lutas a conseqüências maiores estaremos dando passos enormes no sentido de nossos objetivos estratégicos. Essa é a compreensão do PCdoB. Esse é nosso entendimento da realidade atual.

Portanto, a luta pelo socialismo ganha força, ganha expressão nas lutas dos dia a dia. A luta pela paz, por exemplo, contra a guerra de agressão imperialista tem uma conotação importante. Nessa jornada dos povos por soberania, desenvolvimento, democracia e a paz – esse conjunto de lutas, com essas bandeiras – podemos acumular forças gigantescas no sentido dessa nova luta pelo socialismo. Assim nós compreendemos a fase atual.

A Revolução de Outubro

Gostaria, neste encerramento, de referir-me a esse pano-de-fundo da realização do nosso Seminário: a comemoração da Revolução de Outubro na Rússia, já discutida e debatida. A contribuição acerca do legado e de lições da experiência soviética apresentada na primeira sessão do último dia de nosso evento, agora se somou às relevantes análises e informações a nós apresentadas nesta sessão derradeira pelos estimados convidados que relataram as experiências concretas de China, Vietnã, Cuba e a experiência recente da Venezuela. Países que sempre foram um fator de grande estímulo para nós. E fontes, evidentemente, de referências significativas.

Sublinho uma vez mais que para nós, comunistas, a revolução socialista de 1917 é o mais significativo acontecimento na evolução social e política da humanidade. Esse extraordinário evento plasmou uma nova situação política no mundo, influenciando política e ideologicamente os grandes movimentos transformadores do Século XX. Como disse o camarada Luis Fernandes, nós somos filhos desse processo extraordinário, revolucionário que abriu praticamente o século passado. O Partido Comunista é exatamente filho de toda essa criatividade extraordinária do proletariado, daquelas tendências mais avançadas que batalharam pelo êxito da revolução.

Para nós, não se trata somente de evocar esse grande acontecimento histórico como fato do passado de glorioso significado. Tampouco nos compete sustentar dogmas, e de afirmar fundamentalismos revolucionários. O PCdoB e os comunistas de hoje não são fundamentalistas. Longe disso, aprenderam! Mas os ideais dessa revolução continuam a nos inspirar porque eles continuam atuais. Mais do que atuais, eles reafirmam nossa convicção transformadora. Essa Revolução é um importante manancial – um vasto manancial – de experiência revolucionária do qual precisamos extrair ensinamentos dessa primeira tentativa de construção real da sociedade socialista.

Como isso já foi bem exposto, não vou aqui salientar descritivamente mais uma vez as extraordinárias conquistas da revolução de outubro. Que pôde transformar a União Soviética – de países atrasados – numa grande potência política, econômica e militar. E que abriu uma nova etapa de grandes conquistas de direitos sociais, políticos e econômicos. Ela influenciou até mesmo no alcance do sufrágio universal na própria Europa, que se dizia civilizada – e nos Estados Unidos. E contribuiu decisivamente para o fim da opressão colonial e estimulou a luta contra a segregação racial e foi a força principal na vitória contra a maior ameaça da burguesia imperialista no mundo: a Alemanha nazista.

Análise da URSS requer domínio das circunstâncias históricas

Nosso Seminário concentrou-se em compreender as contradições objetivas que levaram ao desenvolvimento desse empreendimento revolucionário, as características e singularidades da época e de que modo prevaleceu o regime que se impôs na União Soviética. Isso procuramos debater e analisar por esse método correto, marxista.

O período stalinista – sempre o mais estigmatizado, digamos assim, o mais controverso da experiência revolucionária soviética – não pode ser compreendido (aliás, quem levanta essa questão me parece bem posta é o professor Domenico Losurdo), sem levarmos em conta uma espécie de mistura entre autoritarismo e um exaltante progresso e promoção social nele presentes. Na realidade, o regime soviético teve de enfrentar uma permanente situação de exceção. Isso também já foi por demais salientado. De 1917 a 1953 – considerando esse período até a morte de Stalin – é caracterizado por pelo menos de quatro a cinco guerras e por duas revoluções. Circunstância corretamente sublinhada.

O historiador Eric Hobsbawm descreve que depois da Primeira Guerra de 1914 há trinta anos de guerras, revoluções, instabilidades, crises profundas. E o professor Losurdo, comparando com os acontecimentos nos Estados Unidos após Pearl Harbour, acentua que Franklin D. Roosevelt, presidente dos EUA, abandona nos campos de concentração cidadãos americanos de origem japonesa, inclusive mulheres e crianças, sem nada provado, simplesmente porque eram de origem japonesa. Roosevelt chega à presidência num período como esse – estou colocando períodos semelhantes –, sob a onda da grande crise, imediatamente é investido de amplos poderes, eleito por quatro mandatos consecutivos. E se não morresse no quarto era capaz que continuasse.

Portanto, a análise de um processo tão complexo e pleno de conflitos e contradições torna-se incompreensível e corre o risco de falsas conclusões quando tratada fora do contexto histórico concreto. Evidentemente, quando se compara com os processos revolucionários em geral – aliás, vários debatedores falaram sobre isso e me parece uma questão importante – há um deslocamento, uma defasagem digamos assim, entre o projeto subjetivo, o que proclama a ideologia e seus objetivos maiores, e o outro, resultado objetivo do empreendimento revolucionário. Isso é evidente em todo processo revolucionário, não os cansarei aqui com o exemplo da Revolução Francesa, também radical.

Ou como deduz – e aqui é importante nessa compreensão da teoria da guerra – Carl von Clausevitz, segundo o qual “o objetivo estratégico perseguido não se pode ver quase nada”. Ou seja, esse objetivo estratégico que perseguimos não se pode ver quase nada porque é um tempo futuro.
Diferente da tática, que se pode ver quase tudo, porque é o tempo presente. Então, para o objetivo estratégico temos de fazer grande força para nos aproximarmos dele. O exemplo da Revolução Russa é bem ilustrativo. Depois das duas revoluções, Lênin viria a dizer “não foi exatamente o que prevíamos”. É que a realidade tem seus caprichos e a vida é muito criativa.

Essas imposições do processo real, concreto, me parece são determinantes à compreensão dos processos revolucionários. Eu poderia dizer – numa tirada –, que não há verdade fora de um tempo determinado. Por isso, essa história do ecologicamente correto, politicamente correto é um grande idealismo, uma visão completamente falsa. Não existe essa política fora da realidade. Não tem verdade fora de um tempo determinado.

A necessidade imperativa da industrialização rápida

Em relação à polêmica sobre a considerada segunda revolução na URSS a partir de 1929 quando se inicia o processo de coletivização forçada da agricultura e da aceleração industrial, quando se afirma terem sido usados para isso métodos de terror, muitos historiadores renomados, não-comunistas, concluem que a União Soviética só foi capaz de vencer a agressão hitleriana em função dessa ação de comando centralizado que impôs rapidez na industrialização, avanço na agricultura e formação de quadros com capacitação técnica e científica. Em suma, o crescimento acelerado, era uma questão de guerra, uma questão de vida ou morte para o poder soviético. Ou como afirmava o próprio Josef Stalin diante das constantes sabotagens e ameaças dos inimigos, a União Soviética estava cercada de capitalismo por todos os lados, e, sobretudo diante da iminência da Segunda Guerra, desde então prevista, tornava-se crucial para a existência do Estado soviético a rapidez da industrialização e da modernização da agricultura do país.

Nessa fase o modo abrupto dessa jornada modernizadora pode ser justificado pela iminência da guerra. O que pode ser questionado é da necessidade da forma de procedimento adotada, imposta por condições históricas determinadas. Ou seja, o comando ultracentralizado, a realidade que acabou prevalecendo de um partido-estado desvinculado da mobilização de massas, do impulso das massas, desse papel criador das massas, também bastante salientado aqui no nosso debate, sobretudo – aí a questão que me parece importante – no pós-guerra, quando a URSS já tinha alcançado um Estado mais consolidado, resultando por essa fixação de posição no definhamento da democracia popular.

Ademais, alguns autores marxistas insistem que a violência estatal, essa burocratização estatal que acabou prevalecendo – sobretudo se considerarmos isso no segundo pós-guerra, – se juntou a uma forma de opressão nacional, chegando ao nível de teorização, principalmente no período de Breschnev , com a formulação da conhecida soberania limitada para os países que compunham o campo socialista, transformando-se numa ideologia chauvinista. Aliás, a dissolução do campo socialista teve começo com a rejeição inicialmente difusa do que se denominou de exportação do socialismo, e de certa forma pela sublevação à imposição dessa soberania limitada.

Por outro lado, se a industrialização acelerada, de comando centralizado revelou-se acertada e necessária para o pré-guerra, tal modelo era inadequado na década de 1950, no pós-guerra, quando se exigia sua passagem para uma nova fase, uma fase inclusive intensiva de industrialização. Essa passagem não houve e em conseqüência a economia se ressentiu da falta de um dinamismo próprio para tal aceleração, prevalecendo, como vimos em nosso debate, uma tendência à estagnação econômica, comparativamente a fases anteriores – daí o impacto –, com o período que se abria de intensificação tecnológica e forte crescimento do capitalismo, no segundo pós-guerra, que dava esse contraste. Um contraste muito grande. Enquanto o capitalismo atingia um auge de grande crescimento e de inovação tecnológica, quando se exigia mais isso da URSS, numa fase, portanto, de intensificação industrial, o mecanismo para isso não foi alcançado. Não houve renovação e nem inovação necessárias para isso.

A tendência à estagnação econômica

O regime soviético, portanto, após a segunda guerra, e pós-Stalin, no período dirigido por Nikita Kruschev (1894-1971), apesar dos imensos avanços e conquistas históricos alcançados – portanto, esse é um período que consideramos chave – foi incapaz de delinear as reformas e iniciar a renovação econômica e política necessárias para a nova etapa. (É o que faz o Vietnã hoje, exposto muito bem aqui pelo professor da Academia Nacional de Política e Administração de Ho Chi Minh, Nguyen Viet Thao, esse processo de renovação, levando em conta as condições do Vietnã para a etapa que atravessa).

Mas na prática o que aconteceu, se considerarmos, inclusive, como ponto referencial o XX Congresso, realizado em 1956? Também levantado aqui pelo professor João Quartim de Moraes. Na realidade, passou a se excomungar o passado. O professor Quartim disse muito bem, provocando uma fratura moral, rebaixando exatamente o ímpeto daquelas grandes conquistas. Isso o que aconteceu com o XX Congresso. E como disse o camarada vietnamita, países e partidos que excomungam seu passado detonam seu futuro. Sem encontrar o caminho da inovação econômica, através de novos mecanismos de impulso à produtividade, da renovação política e da atualização e do desenvolvimento teórico – não se concentrando em retirar ensinamentos precisos na realidade, disse muito bem Ângelo Alves, camarada da Comissão Política do Partido Comunista Português (PCP) – o marxismo-leninismo se restringiu à finalidade de se justificar uma doutrina de Estado. Enquanto o marxismo-leninismo, a teoria e seu método, deveriam contribuir para se encontrar novos caminhos com base nos ensinamentos retirados.

E nesse momento era uma questão fundamental, para as novas exigências históricas de construção da nova etapa da sociedade socialista. Em vez disso parou, congelou. É a antidialética, o antimaterialismo, que acabou prevalecendo. Parece-me uma questão importante, porque no plano político o socialismo tem de dar ampla vazão à soberania popular. E isso estava longe de ocorrer, no caso da URSS essa soberania popular foi se tornando apenas um chavão. Ou seja, essa soberania popular em que o povo com sua força, sua criatividade, participa, faz parte do processo transformador. Essa é a grande questão. No caso concreto, parece que houve, digamos assim, um retrocesso, uma volta para trás. Uma recaída, como se diz. Era uma doutrina de Estado para justificar tudo. O que resulta numa visão antidialética, fora do processo.

Como impulsionar a elevação da produtividade econômica?

Na construção da economia de uma sociedade socialista nos deparamos sempre com uma contradição: a mudança da base material, a mudança das relações de produção, num processo de transição marcado pela heterogeneidade, uma vez que nessa transição do capitalismo ao socialismo há a convivência – sobretudo se o país é mais atrasado – num longo período, com múltiplos agentes e elementos econômicos e formas diferenciadas de propriedade. Aqui aparece uma questão para nós importante: mesmo com essas mudanças estruturais e econômicas, a mudança da consciência social não é automática. Então, haverá um paradoxo entre aquilo que queremos construir na base e uma consciência ainda muito presa ao passado, com os valores de séculos, séculos, de capitalismo, de mercado, de mercadoria – como disse muito bem o professor Quartim.

Então, qual é o fator estimulador? No capitalismo o fator estimulador é a anarquia, a concorrência, o lucro máximo. E para nós comunistas, na construção do socialismo? Precisamos ter uma ideologia mais avançada, e isso é importante, educar ideologicamente. Tudo isso é correto. Elevar sempre essa consciência da solidariedade, do coletivo. Mas isso só não basta. Acaba sendo uma luta ideológica abstrata. Qual o fator estimulador concretamente? Porque, nessas fases iniciais não chegamos a ter uma consciência social avançada que compreenda de forma madura essa solidariedade. Não há ainda no conjunto da sociedade essa qualidade de consciência social. Essa luta que faz hoje o PC de Cuba, uma luta heróica. Mas tem um fator material importante em Cuba, na minha compreensão: é o cerco, a defesa da nação, a defesa das conquistas. E esse cerco impõe a mobilização constante do povo. E tem que se defender. Assim é que se defendem do cerco.

Na URSS, diante da ameaça da Segunda Guerra, houve uma grande mobilização. Morreram mais de 27 milhões de pessoas. Ou seja, essa capacidade de luta, de defesa das conquistas. Mas, depois do pós-guerra, veio a rotina? Qual foi o fator estimulador no plano material? A URSS não tinha, com tudo isso, uma consciência social já avançada. Uma consciência social com essa visão solidária da nova sociedade. Alguns companheiros que foram estudar na URSS por volta da década de 1950 diziam que lá se formara uma camada intermediária, uma espécie de pequena burguesia, nessas novas condições, com uma visão individualista muito forte. Então não havia uma consciência social ainda tão avançada.

Disso avulta a seguinte questão: qual fator vai emular a construção da nova sociedade no plano material e no plano da superestrutura? Porque essa consciência tem de ir se formando, se desenvolvendo. Por isso, levar em conta que haverá uma fase importante ainda, de existência do mercado, passa a ser quase inevitável. A não ser que as experiências socialistas comecem a acontecer no centro do capitalismo, como pensava Marx. Talvez a transição seja mais rápida, e até a formação de uma consciência social mais avançada. Mesmo assim, isso não seria automático.

A nova luta pelo socialismo

Portanto, todas essas questões, lições e esses ensinamentos demandam um aprofundamento. Porque a riqueza dessas experiências é muito fecunda.

Mas o fim do socialismo na URSS e nos países do Leste europeu deu início – na última década – do final do século passado a um ciclo político conservador, e contrário até mesmo a qualquer vestígio revolucionário. Essa ofensiva capitalista imperialista atingiu todos os terrenos. Foi uma grande investida política ideológica na qual o imperialismo utilizou seus arsenais de política econômica, neoliberal, domínio cultural, monopólio dos meios de comunicação, militarização, guerras etc. O gigantesco desenvolvimento das forças produtivas, alcançado nos marcos do atual sistema ao invés de diminuir as desigualdades entre ricos e pobres aumentou, ao invés de incluir a população pobre no curso do desenvolvimento gerou mais marginalização, ao invés de permitir maior utilização do trabalho vivo conteve-o, ao invés de ampliar os direitos sociais e trabalhistas limita-os e revoga-os.

Ou seja, é uma prova cabal de que nos marcos desse sistema por mais que as forças produtivas cresçam as contradições se tornam mais profundas e intensas. Nos marcos do atual sistema não comporta mais esse nível de desenvolvimento das forças produtivas que ao mesmo tempo diminua as desigualdades e incorpore a população marginalizada. Aprofundam-se, portanto, as assimetrias geradas pelo capitalismo no sistema atual, com maior concentração de riqueza e poder. A prova é que o sistema capitalista é cada vez mais incapaz de assegurar a soberania nacional, a democratização ampla e o progresso social.

Dialeticamente, à ofensiva das forças contra-revolucionárias gera um amplo movimento de resistência antiimperialista dos povos e nações. Apesar da investida e do ambiente conservador não estarem superados, há um renascer de lutas, desde meados da década passada. Reinicia-se, do nosso ponto de vista, objetiva e subjetivamente, um novo período de acumulação estratégica de forças e a retomada da luta revolucionária nas novas condições do século atual. Essa situação é que exige diferentes desafios. Nós denominamos essa fase, essa situação presente, como nova luta pelo socialismo. A necessidade histórica pelo socialismo é mais forte no mundo. O socialismo começa, está na infância, como disse muito bem o histórico dirigente do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal. Eu tenho dito, na forma de agitação, que os ideólogos do capitalismo são geriatras e os ideólogos do socialismo são pediatras. E é exatamente isso, porque na cena da história se iniciam as experiências socialistas.

Estas, têm como característica a singularidade de cada país, apresentando-se nesse período histórico o socialismo como algo híbrido nessa fase de transição. Com múltiplos componentes econômicos e várias formas de propriedade.

Na transição é permanente a luta entre o novo e o velho, entre a velha sociedade e a nova sociedade. Fica cada vez mais nítido que a transição pode ser mais tortuosa e difícil quanto mais atrasado for o país e quanto mais adverso for o cenário mundial em que está inserido. Essa é uma importante lição retirada da experiência passada.

Portanto, não temos dúvida, cada país conduzido por forças revolucionárias, forças amantes do socialismo – em fusão com o seu povo, com os trabalhadores – descortinará novo caminho para edificar a sociedade socialista. Essa é a nossa convicção. Não temos dúvidas também em estreitar sempre mais as relações com base no princípio do internacionalismo proletário, nas condições atuais, do PCdoB com os partidos-irmãos, e apoiar aqueles partidos que, no poder, mantêm a perspectiva socialista.

Esse é um esforço permanente que temos a fazer. Esse intercâmbio de idéias, com base no respeito mútuo, a troca de informações, tudo isso é uma exigência da fase que atravessamos. Essas reuniões que realizamos, compondo, reunindo as forças comunistas atuais, têm um grande significado para o PCdoB. No bojo dessa troca de opiniões e idéias, no intercâmbio de cooperação entre partidos comunistas e revolucionários podemos construir a alternativa do processo revolucionário atual.

A presença neste Seminário dos partidos-irmãos, compondo as mesas de debate nos trouxe informações valiosas sobre a experiência de cada país. Também as múltiplas e constantes viagens que temos feito, no sentido da troca de informações e intercambio de ideias, de melhor compreensão do que se passa em diferentes sociedades permitem aos comunistas brasileiros formar um cabedal importante, com base na realidade própria de nosso país, que possa nos orientar no rumo da luta revolucionária que temos de travar. Assim nos preparamos na realidade atual para reavivar a nossa esperança e tornar realidade o nosso grande ideal socialista.

Renato Rabelo é presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)

EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15