Para que o Araguaia não seja esquecido
Quando se fala em Araguaia vem à mente mais que um espaço geograficamente demarcado pelas proximidades do rio homônimo, que nasce na serra dos Caiapó e deságua no rio Tocantins. Araguaia é toda uma região que, numa faixa especial – entre Marabá, no sul do Pará, e Xambioá, norte do Tocantins –, ganhou caráter mítico, como a imaginária Macondo, de Gabriel Garcia Márquez. Ali, 69 jovens militantes e camponeses resolveram lutar por um país livre, democrático e justo, numa época de arbítrio e censura.
Por isso, ir à região mesmo depois de 30 anos da Guerrilha do Araguaia tem um significado especial. É como pisar num terreno meio mágico, meio temido, onde ainda pairam, ao mesmo tempo, a esperança e o descrédito, a beleza e a dor. Abandonadas em um Brasil profundo e por muitos anos esquecidas, comunidades inteiras parecem ter parado no tempo, entre ruas de terra e casebres de madeira, vivendo uma vida simples e cheia de dificuldades. “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”. A definição de Macondo por Márquez cai bem para a região. Ali, não se sabe se o mundo começa ou termina tamanha a precariedade da vida.
Nos anos 1980, o sul do Pará viveu o apogeu do Garimpo da Serra Pelada e a alta atividade de extração de madeira. Hoje, entre Marabá e São Domingos do Araguaia, por exemplo, a Amazônia definha. E junto com ela, uma população pobre que ainda espera por melhores condições de vida.
A região ficou estigmatizada. É terra de ninguém, lugar de disputas agrárias, de mortes e de silêncio. Os moradores ainda temem falar sobre as ações do Exército na região entre 1972 e 1974, com ações que se estenderam ainda nos anos 1980, quando os camponeses eram vigiados por militares. Há quem assegure até hoje serem observados. O território é também zona de influência de um dos nomes mais temidos dos anos de chumbo: o major Sebastião de Moura, conhecido como Curió, tão poderoso por aquelas bandas que fundou sua cidade, Curionópolis, em 1988.O Estado brasileiro, tradicionalmente submetido aos desmandos da classe dominante e avesso às manifestações populares, demorou – e muito – para se dobrar à realidade: ali, na região do Araguaia, o povo ainda sofre, lembra e chora pelos acontecimentos daqueles anos. E nunca tiveram um reconhecimento oficial. Pela primeira vez em nossa história recente, o país, por meio de seu Ministério da Justiça, foi a São Domingos do Araguaia ouvir o que os moradores têm para contar. A primeira audiência pública feita pela Comissão de Anistia, realizada em 22 e 23 de setembro, terá desdobramentos. No primeiro semestre de 2008, os conselheiros devem voltar ao local para colher mais informações. Em seguida, os casos começarão a ser julgados. O propósito do órgão é levar justiça a quem nunca a teve e ressarcir os prejudicados pela ação das Forças Armadas na década de 1970.
Para Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia, órgão ligado ao Ministério da Justiça, a audiência tem uma característica especial em relação às demais. “Fomos até a comunidade. A prática democrática do Estado brasileiro é de que os tribunais julguem seus processos dentro de quatro paredes, fechados em palácios, dentro de seus prédios suntuosos. E fazem pouca investigação junto à população, a interessada efetivamente”. Isso, disse ele, “é um exemplo de democratização do acesso à Justiça no Brasil”.
Fim do silêncio
Ir ao Araguaia ouvir centenas de camponeses – mais de 140 nesta primeira oitiva – é mais do que indenizá-los pelos prejuízos morais, pessoais e materiais que sofreram. Os registros são elementos que ajudarão a reconstituir um período ainda envolto na penumbra imposta pelo autoritarismo. E pode ajudar na busca dos restos mortais de 68 vítimas do extermínio, ainda tratadas como “desaparecidos políticos”.
O reconhecimento do Estado brasileiro de que houve atrocidades é, na opinião de Renato Rabelo, presidente do PCdoB, “um exemplo de resgate da memória histórica brasileira, sobretudo quando essa memória é a das lutas populares. É preciso considerar primeiramente que, na época, a ditadura fez todo um trabalho de silenciar as testemunhas e vítimas. Não havia registro oficial dos casos . Esta era a postura do regime: um silêncio completo para que não transparecesse nada”.
Já para o professor Romualdo Pessoa Campos Filho, do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás e autor do livro Guerrilha do Araguaia – A esquerda em armas (Cegraf-UFG, 1997), foi justamente o “estranho silêncio dos militares” e a “diversidade de opiniões sobre o que foi a Guerrilha do Araguaia” que o fizeram se debruçar sobre o assunto em meados dos anos 1980.
Ao mergulhar no universo do Araguaia para poder construir sua tese, Campos Filho conheceu de perto a realidade da população local e constatou que de fato, os “paulistas”, como eram conhecidos os guerrilheiros, não puderam mobilizar politicamente os camponeses para a luta contra os militares. “Os destacamentos tinham sido organizados, a comissão militar havia sido escolhida e já se iniciara a preparação para conhecimento da mata, mas o trabalho político com a população só foi começar quando houve uma trégua após a segunda campanha dos militares, entre outubro de 1972 e outubro de 1973”, disse.
Então, explica Campos Filho, os militantes elaboraram a União pela Liberdade e pelo Direito dos Povos (ULDP), com 21 pontos relativos às necessidades da população do Sul do Pará e outras mais genéricas contra o regime militar. Os comunistas não tiveram dificuldade de se entrosar com os povoados e logo conquistaram a amizade dos moradores. “Essa relação terminou por envolver indiretamente aquelas pessoas com o movimento. A truculência dos militares, quando chegam à região, e a tentativa de identificar os guerrilheiros como criminosos (terroristas, bandidos e estupradores) fez com que a população desconfiasse não dos comunistas, que se tornaram seus amigos, mas da ação das tropas do governo”.
Em relato aos conselheiros, Raimundo Nonato dos Santos, o Peixinho, 70 anos, lembrou que os guerrilheiros, dos quais era vizinho, “eram um povo bom. A gente não tinha hospital aqui e quando tinha malária eles davam o remédio certo. Faziam mutirão e ajudavam na roça”.
De acordo com Campos Filho, “o silêncio dos que sabiam de alguma coisa tornou-os alvo da ação repressiva dos militares, assim como os que não sabiam e não conseguiam explicar suas amizades com os guerrilheiros”.
Coroa de Cristo
A crueldade dos militares era ilimitada e atingiu os militantes, seus parentes e moradores da região, tratados de maneira brutal sob torturas físicas e psicológicas. Um dos que compareceram à sessão com a Comissão de Anistia para contar sua história foi Antônio Alves de Souza, o Precatão, 69 anos, torturado com a coroa de Cristo. O instrumento, um aro de aço, era posto na cabeça dos prisioneiros e apertado com parafusos, de maneira a comprimir o crânio, provocando dores insuportáveis.Os militares chegaram à casa do camponês num fim de tarde de 1972, atrás da guerrilheira Dina (Dinalva Oliveira Teixeira). “Queriam que eu fosse com eles porque era vizinho dela. Eu disse que ela tinha saído. Foi até Esperancinha, para ajudar uma mulher que tinha sofrido um aborto”, conta Precatão.
Dias depois de ter sido expulso de sua própria casa pelos militares, Precatão foi preso porque suspeitavam de que o camponês estivesse acobertando os guerrilheiros. “Me amarraram, me deram muito tapa e pontapé e me levaram para a base”, diz. “Iam me puxando por uma corda que amarraram em meu pescoço e depois me prenderam num pé de coco. Fiquei ali das 10 da manhã até as 5 da tarde. Me deixaram em cima de um
formigueiro, eu era picado, e de vez em quando vinham me dar uns tapas”.
Quando Precatão finalmente foi levado para dentro, a tortura continuou. “Começaram a me bater de novo, a me dar choque e a me afogar na água. Nessa altura, encontrei outros companheiros também machucados. Eles resolveram usar a coroa de Cristo em mim e apertavam minha cabeça. Parecia que ela ia estourar”. Até hoje, Precatão sente fortes dores na cabeça e no peito.
Seu Frederico
Outro caso para confirmar a crueza dos militares é o de Seu Frederico Lopes. Hoje, o camponês tem seqüelas mentais. Quem contou sua história foi Dona Adalgisa Moraes da Silva, sua esposa. “Os militares chegaram a minha casa perguntando pelo meu marido. Eu disse que ele estava na casa da minha cunhada, mas eles achavam que estava se escondendo”, recorda Dona Adalgisa.
Ela lembra que prenderam o marido na fazenda Fortaleza, onde viviam, e o levaram para a Bacaba, local próximo a São Domingos, às margens da Transamazônica, onde os presos ficavam concentrados. “Judiaram muito. Ele foi chutado e dependurado pelo saco”, conta a esposa.
Mas não parou por aí o sofrimento de Seu Frederico. “Deram choque na cabeça do meu pai e por isso
ele enlouqueceu. Chegou a me perseguir achando que eu era o marido da minha mãe”, disse o filho José Moraes da Silva, conhecido como Zé da Onça, hoje presidente da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, fundada em 2005.
Depois de passar 60 dias preso, Frederico foi levado a Belém, para receber tratamento psicológico. “Os torturados nunca mais recuperaram o que perderam”, lamenta Zé da Onça.
Anistia injusta e contraditória
Questionado sobre a demora de a União chegar aos camponeses, Romualdo Pessoa Campos Filho argumenta que, “historicamente, o Brasil sempre procurou resolver suas contradições – principalmente aquelas que envolveram lutas mais radicalizadas e por isso tiveram reações mais brutais – de maneira conciliatória. Esta é uma das características que a elite política brasileira conseguiu manter desde os tempos coloniais, inclusive omitindo ou explicando de forma reducionista a quantidade e profundidade desses conflitos”.
Como reflexo desse tipo de concepção atrasada de Estado, a lei de Anistia acabou isentando torturadores, abrandando assim os atos da ditadura militar. Segundo o professor, os militares, “acobertados por uma mídia como sempre subserviente aos interesses conservadores, contaram com o convencimento da sociedade brasileira de que seria revanchismo tentar punir os responsáveis por atrocidades. Diante disso, igualou absurdamente as atitudes dos militantes das várias organizações políticas que viviam forçosamente na clandestinidade com a truculência e covardia dos atos praticados nos porões dos órgãos repressivos”.
Também tem sido prática da elite brasileira criminalizar os movimentos e levantes populares e progressistas, de maneira que até hoje há quem tente desqualificar os méritos da Guerrilha do Araguaia. “O julgamento de todas as lutas populares sempre parte de uma ótica ideológica e política. Não existe neutralidade, sobretudo quando envolve um período histórico de luta política muito acirrada”, diz Renato Rabelo. Para ele, pegar em armas “era uma forma de resistência e muita gente achava que deveríamos simplesmente aceitar aquela situação”. Segundo ele, “toda nação, para crescer e construir seu destino depende muito de sua memória. Se a memória for excomungada, o futuro estará comprometido”.
Priscila Lobregatte é jornalista e repórter do jornal A Classe Operária.
EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 74, 75, 76