Um modernismo tropical, sensual e brasileiro
A arquitetura orgânica de “formas livres” que se contrapôs ao Estilo Internacional (International style – conceito criado pelo crítico Henry Russel Hitchcock na década de 1930, que traduz um conjunto de vertentes essencialmente européias e coloca que os preceitos da arquitetura moderna seguiam uma linha única e coesa) surgiu na década de 1940, pós-II Guerra, como desdobramento da arquitetura moderna.
Marcaram essa época os arquitetos Frank Lloyd Wright, estadunidense considerado como figura-chave da arquitetura orgânica; o finlandês Eero Saarinen, que desenvolveu uma linha de móveis vanguardistas; e Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudônimo de Le Corbusier, arquiteto, urbanista e pintor suíço considerado um dos mais importantes arquitetos do século XX.
Este último, fortemente impressionado pela América do Sul que visitou na ocasião em que elaborou projetos como a Ville Radieuse, de 1929, numa tentativa de remodelar o centro de Paris para o qual passou a adotar um estilo mais tropical em suas obras.
Ao conhecer o Rio de Janeiro vislumbrou, por exemplo – devido à disposição da cidade, entre o mar e o relevo escarpado de origem vulcânica –, a idéia de uma cidade-viaduto (cidade linear). As experiências de Le Corbusier na América do Sul mudaram profundamente sua sensibilidade artística.
Segundo David Underwood :
“(…) ao tentar livrar-se do imperialismo cultural do passado, e especialmente da hegemonia cultural francesa do século XIX, os arquitetos e patronos brasileiros se voltaram a um estrangeiro, re-avaliando a própria herança cultural como fonte de formas e sentidos. Le Corbusier, contrariando esta tendência, já se interessava pela imagem do Brasil, tanto em sua herança colonial, quanto em relação ao meio físico. Assim como Lucio Costa ele buscava um estilo autêntico brasileiro no processo de modernização artística do país, que se inaugurou em 1930 com a Era Vargas”.
A influência de Le Corbusier entre os arquitetos brasileiros modernos ficou clara na construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde (atual Palácio Gustavo Capanema), entre 1936 e 1945, no Rio de Janeiro.
A idéia de construir aquele prédio vinha desde o início da década de 1930. O projeto feito na ocasião, por uma equipe liderada por um arquiteto chamado Arquimedes Memória. Era arquitetonicamente muito conservador, diz José Maria Cançado, de os sapatos de Orfeu, uma biografia do poeta Carlos Drummond de Andrade. O poeta, que era alto funcionário do Ministério da Educação e Cultura e um expoente do movimento modernista, chamou a atenção do Ministro Gustavo Capanema sobre a monstruosidade do edifício que seria construído que, em consequência, anulou concurso anterior e entregou o trabalho para dois jovens arquitetos, Oscar Niermeyer e Lúcio Costa. A resistência da direita foi grande, e o arquiteto Memória escreveu uma carta para o presidente da República, Getúlio Vargas, denunciando a existência de uma "célula comunista de modernistas" no ministério. Não deu certo, e o prédio construído – inaugurado em 1944 – tornou-se um marco do modernismo e da arquitetura brasileira.
O edifício foi elaborado, afinal, por um grupo de arquitetos liderado por Lucio Costa, do qual participaram Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão e Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer, todos afinados com as linhas-mestras do racionalismo arquitetônico e conhecedores da obra de Le Corbusier. O projeto realizado para o edifício refletiu a tentativa do grupo brasileiro de incorporar os preceitos racionais da arquitetura corbusiana: a adoção de formas simples e geométricas, o térreo com pilotis, os terraços-jardim, a fachada envidraçada, as aberturas horizontais, a integração dos espaços interno e externo, o aproveitamento da ventilação e luz naturais por meio do uso de lâminas móveis e o trabalho com volumes puros, a partir do cruzamento de um corpo horizontal e de um vertical, dando à construção o dinamismo e a leveza do conjunto, além de reforçar a integração entre arquitetura, paisagismo e artes plásticas.
A primeira idéia que Niemeyer fez da arquitetura está claramente fundamentada na definição acadêmica da arquitetura como uma arte, concebida independentemente de considerações técnicas e sociais. Contudo, a evolução de seu pensamento contou com a decisiva influência de indivíduos pioneiros que foram além dos limites da instrução formal, sobretudo de Lucio Costa e Le Corbusier.
Para Ferreira Gullar, não há dúvida de que a arquitetura de Niemeyer nasce da arquitetura do Le Corbusier, em seus elementos básicos. Mas, parao poeta, aquele, logo que aprende a lição, questiona e reinventa os dados fundamentais de seu mestre, chegando posteriormente a influenciá-lo .
A evolução de seu traço que exalta a plasticidade inerente da curva nativa ante a rígida postura retilínea do Estilo Internacional consolidou o estilo distintamente brasileiro de Oscar Niemeyer. Segundo Underwood, foi ele quem deu o passo inicial no desenvolvimento do modernismo “plasticamente livre”, resultando, ao longo da evolução de sua obra, em uma arquitetura de inquestionável teor surrealista.
“A arquitetura de Brasília está enraizada em um projeto fundamentalmente surrealista: a tentativa de pôr em questão os objetos e as convenções do cotidiano e do lugar-comum por meio da deliberada justaposição desses objetos e convenções ao extraordinário e o maravilhoso. O complexo futurista do Congresso Nacional, com suas fantásticas inversões formais de figuras côncavas, convexas e retilíneas, extrai desse modo seu significado da comparação inevitável de suas ousadas formas com as lajes mundanas do Estilo Internacional dos prédios dos ministérios, que se alinham ao longo do eixo monumental. No entanto, os edifícios mais importantes em meio às funções ministeriais – Ministério da Justiça e Ministério das Relações Exteriores – retomam o tema clássico dos palácios – o que dignifica suas funções e faz com que sobressaiam na hierarquia de formas de Brasília” .
Niemeyer desenvolveu um estilo plasticamente livre e ricamente escultural, que explorava a composição e as implicações poéticas do ambiente tropical.
Tendo amadurecido como arquiteto Niemeyer rejeitou o lado racional de Le Corbusier em nome de um lado mais poético e emotivo, próximo do espírito brasileiro. Sua filosofia artística expõe, mais que Le Corbusier, as virtudes da natureza sobre a engenharia e a máquina, ressaltando, como afirma Underwood, as “lições do Rio”, em detrimento das “lições de Roma”. Logo depois dos primeiros trabalhos com Le Corbusier, Niemeyer se afastou do sistema formal e teórico corbusiano, negando a racionalidade dos cinco pontos básicos – pilotis, plantas livre, fachada livre, pano de vidro, terraço-jardim – para desenvolver o lado de maior apelo sensorial adequando-o ao cenário brasileiro em um contínuo diálogo com a topografia natural do Brasil.
Enquanto o racionalismo europeu buscou, em geral, a distância mais curta entre dois pontos – a linha reta – o Brasil e Niemeyer escolheram um caminho mais cenográfico. A sua arquitetura reflete o jeito brasileiro de agir por meandros, bem como o estilo sinuoso e sensual e o modo não premeditado de lidar com a vida.
Com o pensamento livre da repressão religiosa, Niemeyer se inspira nas formas sensuais do corpo feminino e na paisagem natural do Rio de Janeiro. Essa visão fica clara em seu próprio depoimento: “a arquitetura é meu hobby permanente mas acho que o homem nasceu para reproduzir, como os outros animais da terra. E é por isso que a mulher é seu objetivo principal. Ela é parte da minha vida e parte da
minha arquitetura” .
Underwood descreve o estilo de arquitetura de Niemeyer como uma vigorosa celebração do tropical e do erótico, das paisagens mágicas e do sensual modo de vida do Rio de Janeiro. Para ele, a arquitetura de Niemeyer reflete a “múltipla dicotomia da experiência brasileira”, projetando uma universalidade emotiva que poucos arquitetos puderam emitir. A liberdade de expressão, a ousadia e o apelo sensorial de suas obras confrontam-se com a arquitetura colonial e com a cultura do catolicismo, sendo esta uma das dicotomias de Niemeyer.
Isso não significa, entretanto, um desmerecimento da arquitetura portuguesa. O Grande Hotel de Ouro Preto, por exemplo, criado no início da década de 1940, em vez de manter a uniformidade das fachadas, contrasta com a paisagem típica colonial da cidade. Nas palavras do próprio Niemeyer:“a técnica de defender os monumentos não é copiar, é fazer o contraste. Todo mundo gosta da arquitetura colonial.
Mas a gente sabe perfeitamente que ela é mais portuguesa que brasileira. Eu quando vou a Europa e passo por uma cidade antiga eu me sinto melhor. Passar por Portugal, naquelas velhas aldeias portuguesas, a gente parece estar no Brasil. Eu me lembro que na Europa, às vezes eles diziam: O passado arquitetônico de vocês é pobre, é mais português do que brasileiro. E eu dizia: isso é muito bom para nós, porque vocês vivem circulando entre monumentos, e nós estamos livres pra fazer hoje o passado de amanhã”.
Carolina Ruy é Secretária de Redação (interina) de Princípios
EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 51, 52, 53