A mestiça árvore genealógica

Começarei lembrando de onde venho. Meu nome deveria ser Oscar Ribeiro Soares ou Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares, mas prevaleceu o nome estrangeiro e acabei conhecido como Oscar Niemeyer.
Minhas origens são muitas, o que me agrada particularmente: Ribeiro e Soares, portugueses; Almeida, árabe; e Niemeyer, alemão. E isso sem levar em conta algum negro ou índio que, sem sabermos, também faça parte da nossa família.

Homenagem a Lúcio Costa e os primeiros passos na arquitetura

É bom falar do Lúcio, esse brasileiro ilustre que encontrei lá pelos anos 30, e a quem tanta coisa fiquei devendo.
Mas para isso tenho de voltar atrás. Contar o tempo em que, generoso, aceitou que eu freqüentasse o escritório que tinha com Carlos Leão.
Eram tempos difíceis para mim. Estudante, casado e com filha, vivendo de aluguel de uma casa que tínhamos na cidade. Mesmo assim, não aceitei trabalhar num escritório qualquer onde, como ocorria com meus colegas, encontraria a solução para os problemas práticos da profissão, com salário correspondente, e preferi trabalhar graciosamente no escritório do Lúcio Costa.

Hoje, ao lembrar esse episódio, sinto que não era um estudante medíocre que no escritório do Lúcio tivesse surgido como simples pára-quedista, mas que a arquitetura me convocava e eu queria ser um bom arquiteto.
E, ali, compreendi melhor os assuntos da arquitetura, a importância da nossa velha arquitetura colonial, o idealismo que a profissão reclama.

Recordo os velhos tempos: eu debruçado sobre os projetos do Lúcio, surpreso diante das residências belíssimas que fazia, dos primorosos desenhos com que as apresentava.
E agradava-me seu ar civilizado, correto, diferente do Carlos Leão, que mais expansivo, nos levava, feliz, pelos bares da cidade.

É claro que pouco ajuda lhes podia dar, mas sabia desenhar, procurava atendê-los, e acabamos caminhando juntos como bons amigos.

E sentia com admiração seu enorme talento, tão autêntico, que lhe permitiu, de um dia para outro, se transformar em urbanista, inventando essa cidade bela e acolhedora que é a capital do nosso país.
Introvertido, Lúcio não superou os momentos sombrios com que o destino ofende nossas pobres vidas e, viúvo, se fez mais distante, hermético, embora atento a tudo que ocorria, pronto a defender seus velhos companheiros.

E foi, contente comigo mesmo, que um dia propus ao então governador José Aparecido de Oliveira construir na Praça dos Três Poderes o Espaço Lúcio Costa, desenhando-o com o carinho que meu amigo merecia.

“Prestes, fica com a casa. Sua tarefa é muito mais importante que a minha”

Nunca fora do partido comunista, embora já contribuísse para o Socorro Vermelho. Recordo-me do dia, 1935 talvez, quando um dos seus velhos militantes – Honório de Freitas Guimarães – veio à minha casa, em Ipanema, apanhar um embrulho de roupas. Com que admiração o conheci! Homem rico, que tudo abandonara pela revolução.

E foi nessa casa da Rua Conde Lages que, em contato com Prestes e seus camaradas, a ouvir suas histórias de luta e sacrifício, decidi, um dia: “Prestes, fica com a casa. Sua tarefa é muito mais importante que a minha”. E a casa da Rua Conde Lages, antes residência familiar, depois delegacia, pensão de putas e escritório de arquitetura, se transformou no Comitê Metropolitano do PCB (…).
Passo os olhos neste livro e sinto que alguma coisa mais devo dizer sobre meu amigo Luís Carlos Prestes. Uma das figuras mais dignas do nosso tempo. Um homem que impõe respeito até aos seus mais declarados inimigos. Pessoa tão autêntica, tão veraz e proba, que se destaca como um iluminado, neste mundo de falsidades e conivências.

A história conhecida, é quase óbvio lembrá-la. A luta que pelo Brasil afora – de Norte a Sul – soube manter, a comandar sua coluna heróica, sua adesão ao comunismo, seus nove anos de cárcere, isolado da vida, sua mulher grávida levada para os campos de concentração nazistas, sua libertação e grandeza diante da situação política. Depois, a derrota de Hitler, o Partido na liberdade e Prestes aclamado nos grandes comícios de 45 a 46. Era o Cavaleiro da Esperança que o povo aguardava.
Pouco durou esse período de euforia. Em 1946, o partido comunista vai para ilegalidade e Prestes é obrigado a se esconder, para voltar, anos depois, com o mesmo entusiasmo e espírito de luta que na sua juventude anunciava.

Estamos em 1987 e Luís Carlos Prestes já com 89 anos de idade. Não pertence mais ao PCB, mas sua revolta contra a injustiça social continua a dominá-lo, sozinho, radical e intransigente, a falar pelas universidades, sindicatos, fábricas e centros políticos do país.

Com freqüência, Prestes vem ao meu escritório de Copacabana. Os colegas o cercam e ele a discorrer sobre a política brasileira, com o calor e a lucidez de um jovem guerrilheiro.
Todos o estimam. Todos o acolhem e escutam com admiração. Todos o respeitam, emocionados com a sua inabalável convicção de revolucionário. E, quando um de nós se despede, acompanho-o até o carro. Um hábito que adquiri quando, ainda vigiado pela polícia, preocupava-me em protegê-lo.

As viagens pelo mundo e ao mundo novo

“Fiz muitas viagens de navio entre o Brasil, a Europa e os Estados Unidos. Não gostava de andar a de avião. De navio, eram dez dias de férias no mar imenso, sem telefone, inteiramente livre (…).
Numa dessas viagens fui a Moscou. Levava Annita e o meu amigo Eça. Queria que eles conhecessem o velho mundo (…).

Queríamos sentir a Revolução de Outubro com seus princípios de justiça e fraternidade que o capitalismo tenta combater. E Moscou não nos decepcionou. Com que prazer transitamos pela Praça Vermelha, surpresos com a monumentalidade do Kremlin e a graça desenvolta da catedral de São Basílio, com suas abóbadas douradas!

Com satisfação sentíamos o povo se recuperando, a vida a caminhar dentro dos preceitos de Marx e Lênin, fraternal e justa para todos.
E lá ficamos na longa fila que nos levaria a Lênin e Stalin, responsáveis pela vitória do socialismo, dormindo tranqüilos nas suas caixas de vidro.(…)

Marx e Sartre

Minha posição diante da vida foi de invariável revolta. Ligado ao pensamento de Sartre, sempre a senti injusta e irrecusável tragédia.
Jovem ainda, com apenas 15 anos, já me angustiava pensando no destino dos homens, condenados, sem defesa, a completo desamparo. E a idéia de desaparecer me aterrorizava.
Como todo mundo, procurava esquecer tais pensamentos e usufruir os prazeres deste passeio tão curto e cheio de alegrias que, sem consulta, o destino nos oferece.
Extasiava-me diante da natureza fantástica que nos cerca e, abraçado aos amigos, punha de lado o que nas horas de solidão tanto me afligia.

E me vesti de falso otimismo, integrado nessa alegria contagiante que a juventude oferece.
E me fiz conhecer como figura alegre e espontânea voltada para a boemia, quando, no fundo, guardava uma imensa tristeza ao pensar na vida e nos homens.
Nos momentos de solidão indagava-me aflito sobre esse universo misterioso que nos cerca e lembrava o velho Gauguin a escrever num dos seus quadros, muitos anos atrás: “De onde viemos, o que somos, para onde vamos?”.

Do mundo, da relação entre os homens, revolta-me a injustiça imensa que existe, os separa e desmerece. E me fiz comunista, e contra a miséria me manifestei a vida inteira.
Às vezes, sentia que em alguns pontos discordava dos meus bons camaradas. Não acreditava, por exemplo, na idéia de que devemos ser otimistas, que não cabe contestar o drama do ser humano, que o importante não é a morte , mas a perpetuação da espécie.

E resistia a esse argumento, pensando que os momentos de angústia que me invadiam, nossos filhos os teriam também.
E reagi lembrando Gramsci a escrever na sua prisão, na Itália: “O otimismo é muitas vezes o desejo de não fazer nada e tudo aceitar”.
No existencialismo de Sartre e no progresso da ciência, apoiava-me, convicto de que tudo é precário, uma verdade que deve prevalecer.

Alguns diziam que seria niilismo, o fim das fantasias, das grandes conquistas, que dão ao homem algumas esperanças.
E reagia, insistindo em Sartre, que ao mesmo tempo que declarava toda a existência ser um fracasso, defendia Cuba, todos os povos oprimidos, dizendo aos amigos gostar de ter dinheiro no bolso para das esmolas.

Acreditava, como ainda acredito, na doutrina de Marx e antevia, otimista, o mundo melhor que desejamos.
Durante anos segui o partido comunista com a lealdade de um bom militante, apaixonado pela luta política, pela Revolução de Outubro, por Lênin, Stalin, Mao, Prestes, Fidel, por todos que pela justiça entre os homens se levantaram.

A crise do socialismo

Os tempos correram. Veio a crise soviética, o desmantelamento do mundo comunista, e eu permaneci o mesmo, certo de que alguma coisa devia explicar o ocorrido, alguma coisa que os velhos comunistas soviéticos saberiam eliminar.
Perplexo sentia que minha posição política não correspondia ao que se passava no país e no mundo. Que muitos aceitavam a derrota como conseqüência de velhos e irreparáveis erros, e outros, tranqüilamente, não raro, como coisa desejada.

Recusei tudo isso. Passei a considerar que a crise soviética constituía uma fase natural pela luta política, que o ser humano não atingira ainda o nível que a sociedade comunista, solidária, exigia. E me refugiei na idéia de que o progresso promovido pela Revolução de Outubro, que transformara a União Soviética, de um simples país de mujiques na segunda potência mundial, fora extraordinário. E isso me bastava.

E pensei que transformar o ser humano deveria ser a primeira etapa, tornando-o mais simples, mais humano, capaz de compreender, como disse Teilhard de Chardin, que “ser é mais importante do que ter”.

Mas não criticava Lênin, é claro. A Revolução de Outubro foi início indispensável. O sinal de que o mundo vai mudar, de que o fracasso ocorrido é acidente de percurso, de que a idéia de Marx continua imutável e a luta mais consciente e determinada.

Nunca foi contra qualquer movimento de protesto. É preciso protestar. Uma palavra que seja, dita com coragem, na hora certa, só merece apreço. Muitas vezes, quando a miséria é demais e os homens a esquecem, a solução é reagir.

E lembrava meus velhos companheiros do partido comunista mortos nos levantes políticos nas câmaras de tortura da reação, a luta heróica de Cuba e Fidel, líder desta América Latina tão sofrida e explorada. E me detive no caso da América Latina mais ameaçada com o afastamento de Moscou.
No dia em que o homem compreender ser filho da natureza, irmão dos bichos da terra, dos pássaros do céu e dos peixes do mar, nesse dia, ele compreenderá sua própria insignificância e, realista, será mais humano, mais simples e solidário.

Dentro das minhas limitações de simples arquiteto, sinto com tristeza a situação do meu país. A miséria imensa que o cobre e o desprezo da burguesia multiplicando-a . Vejo que uma decisão radical impõe: “Passar o país a limpo”, como disse Darcy Ribeiro. E às forças populares caberia essa tarefa.

A sede das Nações Unidas

Em 1947, Wallace Harrison convidou-me para fazer parte da equipe de arquitetos que deveria projetar a sede das Nações Unidas. E no mesmo dia em que cheguei a Nova Iorque Le Corbusier telefonou para o hotel pedindo que o encontrasse numa esquina da Quinta Avenida.

Fazia muito frio. Solícito, ele colocou seu capote sobre o meu, dizendo: “Vou fazer como São Francisco”.
E, como a casa de Oscar Nitzke ficava perto, caminhamos até lá, ele contando sua história.
Seu projeto começava a ser criticado e ele queria que eu ficasse a seu lado, colaborando no seu trabalho. Aceitei. E durante alguns dias procurei ajudá-lo quando Wallace Harrison me convocou a seu gabinete: “Oscar, convidei você para, como todos os arquitetos, apresentar seu projeto e não para trabalhar com Le Corbusier”. Avisei a Le Corbusier o ocorrido e ele logo responde: “Você não pode ir, vai criar confusão”. Mas, dias depois, aconselhou-me: “É melhor você ir. Estão esperando seu projeto”.

Em uma semana elaborei meu estudo. Confesso que não gostava do projeto Le Corbusier. Penso ter sido feito para outro local, e o bloco da grande Assembléia e dos Conselhos, no centro do terreno, o dividia em dois.

Mantive no meu projeto o bloco indispensável das Nações Unidas e separei os Conselhos da grande Assembléia, colocando o primeiro num bloco extenso embaixo, junto ao rio, e ela no extremo do terreno. Tinha criado a Praça das Nações Unidas.

Budiansky, assessor de Le Corbusier, foi o primeiro a vê-lo: “Você fez melhor que Le Corbusier”. Este, que apareceu em seguida, depois de examiná-lo detidamente, comentou: “É um projeto elegante!”
Wallace Harrison convocou-me outra vez: “Oscar, todos preferem seu projeto, vou propô-lo na próxima reunião”.

Nesse dia, subi no elevador com o arquiteto que representava a China, que me disse: “Hoje vou ficar a seu lado”.
Ao iniciar-se a reunião, Le Corbusier tentou mais uma vez defender seu projeto: “Não fiz desenhos bonitos, mas é a solução científica de todo o programa das Nações Unidas”. E eu compreendi que ele se referia aos meus desenhos.

A reunião começou. Wallace Harrison propôs o meu projeto, aceito por unanimidade. Todos me cumprimentaram. Até a secretária veio me abraçar. Meu projeto estava escolhido.
Mas, na saída, Le Corbusier pediu-me: “Quero falar com você, amanhã cedo”.
Atendi-o . O que ele queria era mudar a posição da grande Assembléia, levando-a para o centro do terreno: “É o elemento hierarquicamente mais importante, e lá é o seu lugar”. Eu não estava de acordo. Liquidaria com a Praça das Nações Unidas, dividindo de novo o terreno.
Mas Le Corbusier insistiu, e tão preocupado me parecia que resolvi aceitar. E juntos apresentamos um novo estudo, o projeto 23-32 (23 era o número de seu projeto e 32 o meu).
Wallace Harrison não gostou da minha decisão. Afinal, tinha me consultado antes.
E os trabalhos prosseguiram. Pequenas modificações foram feitas e, na realidade, o prédio construído corresponde, nos seus volumes e espaços livres, ao projeto 23-32 apresentado.
Mas devo considerá-lo como um trabalho de equipe; nossa tarefa foi apenas definir o partido arquitetônico. O resto, todos os detalhes, foi elaborado por Wallace Harrison, Abramovitz e seus colaboradores. Esses foram os fatos dos quais participei. Deles, Wallace Harrison, Abramovitz, só lembro correção e amizade.

Quanto a Le Corbusier, nunca comentou, nem falou sobre o projeto 23-32, mas recordo-o muitos anos depois, almoçando em seu apartamento, fitando-me longamente, e afirmando: “Você é generoso” (…).

Odisséia da construção de Brasília

“Os projetos de Brasília, começaram a ser elaborados no edifício do MES, mas logo depois compreendemos que deveriam ser feitos no local, seguindo as obras em curso, e para isso apressamos a construção das casas populares onde iríamos morar.
Antes de viajar, conversei com Israel Pinheiro. Dei-lhe a relação dos que deveriam seguir comigo, combinei salários etc.

Nessa ocasião ele falou do meu contrato. Receberia um salário normal de funcionário público, mas acrescentou: “Posso dar-lhe uma comissão”. Respondi logo: “Nada de comissão”. Era uma palavra que sempre detestamos. Se o nosso amigo tivesse falado diferente, houvesse dito, por exemplo, “Você vai receber um salário de tanto, mas lhe darei, como regula a tabela do Instituto dos Arquitetos do Brasil, uma percentagem sobre a obra”, eu talvez pudesse concordar. E foi pelo emprego da palavra “comissão” que elaborei todos os projetos de Brasília por apenas 40 mil cruzeiros mensais.

Mas o problema de dinheiro não me preocupava. Foi até bom para mim. Recebendo tão pouco, além de ter fechado, praticamente, meu escritório no Rio, sentia-me à vontade – desinibido – para muita coisa. E uma delas, a que maior prazer me deu, foi contratar quem eu bem quisesse para comigo trabalhar na nova capital. E isso explica os amigos que convoquei. Primeiro, cerca de 20 arquitetos para os trabalhos programados; depois, outros amigos de profissões diferentes, pelo simples prazer de ajudá-los, sabendo-os com dificuldades financeiras.

Daí termos na nossa equipe um médico, um jornalista, um advogado, um goleiro do Flamengo e outros ainda de profissões indefinidas.

Todos me foram úteis e a equipe se fez mais variada, a conversa mais versátil, o trabalho mais completo, cada um atuando dentro de suas próprias aptidões.
Em pouco tempo formamos um grupo coeso e amigo. Todos juntos no correr das casas populares já construídas.

O conforto era pouco: uma sala, dois quartos, banheiro e cozinha. Meu quarto era pequeno: um catre, um pequeno armário provisório e um banco como mesa-de-cabeceira.
O resto era a terra vazia, desprotegida, coberta de poeira nos tempos de inverno e de água e lama nos meses de verão.

É claro que esses pequenos desconfortos se diluíam diante do trabalho que tanto nos ocupava. Mas ficava aquela sensação de fim de mundo, a lembrar a família e os amigos distantes, sem estradas e telefone. Apenas um pequeno rádio de campanha a nos servir. E tudo se agravava para os que lá estavam sozinhos, a imaginar como seria bom ter uma mulher do lado, com quem pudessem dividir suas angústias, e abraçá-la um pouco. E isso explicava muita coisa. Muita união escondida que aquele abandono justificava.

A fuga era nos reunirmos à noite para bater papo, discutir as obras em andamento, jogar cartas ou, então, o que ultimamente fazíamos, tocar nossas batucadas (…).
Outras vezes, ir para a Cidade Livre, o faroeste da nova capital. Uma rua larga coberta de lama, repleta de jipes, carroças e cavalos, ladeada de construções baixas de alvenaria, onde ficavam o pequeno comércio, bares, restaurantes, boates e as prostitutas da cidade.

Sentados numa boate, ficávamos a ver, satisfeitos, a confraternização que aquele fim de mundo provocava; a caipirinha a correr pelas mesas e nossos companheiros, arquitetos, engenheiros e operários, a dançar na pista de tabuado.

Era a nostalgia do cerrado, a saudade das terras distantes que os reunia ali solidários.
As obras prosseguiram, a poeira vermelha marcava as ruas em construção e os canteiros de serviço quebravam o antigo silêncio daquela área que começava a se povoar. Determinado, JK nos dava seu exemplo, indiferente às criticas com que a reação procurava torpedear o empreendimento. Rindo dos que diziam que o lugar fora mal escolhido, que não haveria vegetação nem jardins, que a água do lago projetado iria desaparecer na terra porosa da nova capital (…).

E a idéia de JK – nossa, inclusive – não era de uma cidade qualquer, pobre e provinciana, mas de uma cidade atualizada e moderna, que representasse a importância de nosso país (…).

A ditadura militar. O exílio. Sua arquitetura se espalha pelo Velho Mundo

Depois de Jânio e João Goulart, chegaram os negros tempos da ditadura e a reação assumiu o poder com o apoio do imperialismo norte-americano. De um dia para o outro, uma carta-renúncia inoportuna foi o pretexto para alijar Jânio da presidência (…).

Jango prossegue com política progressista, o povo a participar das grandes manifestações públicas, as esquerdas a se exibirem livremente. E isso levou os que expulsaram Jânio a expulsá-lo também.
E veio o golpe de Estado e essa ditadura que durante 20 anos ocupou o país, oprimindo, torturando, matando os que lutaram heroicamente pela liberdade e pela democracia.

Ninguém procurou deliberadamente desfigurar a nova capital. Desprezaram-na, apenas. E prédios ruins, de má arquitetura, surgiram, quebrando a unidade que pensávamos preservar (…).
Eu estava na Europa quando ocorreu o golpe de Estado. Meu escritório e a revista Módulo foram invadidos e vasculhados pelas forças policiais. E, quando voltei ao Brasil, no final de 1964, levaram-me, no dia seguinte, a um quartel do Exército, onde confirmei que escrevera, numa revista soviética, que apoiava Cuba, e todos os povos subdesenvolvidos da América, Ásia e África (…).

Minha vida prosseguiu sem maiores embaraços. Era o arquiteto da cidade e nela – todos sabiam – trabalhara desde os primeiros dias, honestamente, sem descanso, quase de graça (…).
A partir do governo Médici, porém, a reação resolveu me paralisar. Os problemas com o caso do aeroporto, e meu projeto foi recusado por ser circular. “A solução de um aeroporto deve ser extensível”, disse o diretor de Engenharia da Aeronáutica, brigadeiro Henrique Castro Neves. Extensível, já naquela época, era a solução superada que deveriam rejeitar. Circular, ao contrário, era a solução correta. Assim, foi construído, anos depois, em Paris, o aeroporto Charles De Gaulle, e no Brasil, pelos que me criticavam, o aeroporto do Galeão, no Rio.

Protestei, revoltado. Sem argumentos, mas com as forças do poder, a Aeronáutica colocou um cartaz na obra: “Aeroporto Militar”. E, novamente, voltei aos jornais, dizendo ser mentira, que um aeroporto militar não teria comércio, nem alfândega, nem restaurante etc (…).
E lá está, caro leitor, um aeroporto obsoleto, desarticulado, a comprometer a entrada principal da nova capital (…).

Já tinha comparecido à polícia política várias vezes. Até no tempo de JK, em plena construção de Brasília, para lá me convocaram.
E a pressão continuou. A universidade foi invadida, nossos colegas exonerados, e dela um dia, nos demitimos – cerca de 200 professores – em protesto contra tanta brutalidade (…).
E resolvi viajar para o exterior com as minhas mágoas e a minha arquitetura. Os que pretendiam me imobilizar deram-me sem querer, a maior oportunidade de minha vida: levar para o Velho Mundo o meu ofício de arquiteto, fazê-lo compreendido com suas formas mais leves e inesperadas.

Um soco num sujeito ordinário

Estava jantando no restaurante Nino’s em Copacabana, quando chegaram dois casais. Gente jovem, e um dos moços começou logo a gritar contra o “socialismo moreno”, contra os comunistas. E fazia com tal petulância que parecia a mim dirigir-se. Eu estava acompanhado. O que fazer? Já tinha 80 anos e ele, a metade da minha idade e quase dois metros de altura. Mas foi isso com certeza que me levou a reagir. Paguei a conta e, saindo da mesa como quem vai embora, fui até a porta e, daí voltando, sozinho, atravessei o salão e o agredi. Separaram. Levara um soco e o sangue me corria pelo rosto.

No dia seguinte, meu primo Carlos Niemeyer, sem me consultar, invadiu o escritório do rapaz que, assustado, declarou que iria pedir garantias à polícia. Darcy Ribeiro se revoltou. Brizola me telefonou à noite, solidário.
Não pensava mais no assunto. Afinal meu nome não tinha sido mencionado. Sentia-me culpado, sem nenhum ódio guardado em relação ao que ocorrera. Nem mesmo compreendia como agi de forma tão impulsiva.

Dias após, conversando com no meu escritório com meu amigo João Saldanha, ele, ao ouvir a história, aconselhou: “Se for de revólver, atira para baixo, porque o tiro levanta a pontaria”.

Memorial da América Latina

Quando surgiu a idéia de se construir o Memorial da América Latina, em São Paulo, e me convidaram para projetá-lo, senti logo como seria importante para mim colaborar numa obra dessa natureza. Um apelo, uma mensagem de fé e solidariedade a todos os povos latino-americanos, convocando-os para que juntos, solidários, trocando experiências, lutassem melhor pelas reivindicações deste continente tão esquecido e ameaçado.

E lá está o Memorial já construído, todo branco, todo feito de técnica e fantasia, com suas vigas de 90 e 70 metros, suas finas e curvas placas de concreto, belo e monumental como exige a grandeza dessa iniciativa tão bem concebida por Orestes Quércia.

Durante meses acompanhei atento sua construção. A obra me emocionava. Dera-lhe toda minha dedicação, mas alguma coisa ainda faltava, alguma coisa que me integrasse no sentido político do Memorial, para mim mais importante do que sua arquitetura.

E desenhei aquela grande mão de concreto, espalmada, com os dedos abertos em desespero, representando a América Latina, com o sangue a escorrer até o punho. Para explicar minha escultura, escrevi: “Suor, sangue e pobreza marcaram a história desta América Latina tão desarticulada e oprimida. Agora urge reajustá-la, uní-la, transformá-la num monobloco intocável, capaz de fazê-lo independente e feliz”.

E a mão foi construída com seus sete metros de altura. Não representa uma provocação, mas uma denúncia e uma advertência. Lembra um passado de sombra e um futuro coberto de dúvidas e esperanças. E estas agora transformadas em sangue e revolta, com os Estados Unidos a invadirem o Panamá. Uma nação pequena e desprotegida, um crime deve provocar protesto de todos os países que se dizem democracias, de todos os homens que se dizem democratas, defensores dos povos oprimidos, da justiça e da liberdade.

Por outro lado, as razões apresentadas pelo governo dos Estados Unidos – defesa da democracia – tornaram-se ridículas ao lembrarmos como, deliberadamente, as esqueceu , ao apoiar, durante anos, as ditaduras da América Latina.
Cumpre reagir. Cumpre protestar. Cumpre não aceitar essa intervenção criminosa na nossa América Latina explorada e ofendida.

E a grande mão de concreto, que é o meu protesto antecipado, assume outra dimensão. Já não é uma simples escultura, mas um apelo para os que visitam o Memorial sentirem o drama que vivem nossos irmãos deste continente, ainda pobres, ainda subdesenvolvidos, mas já consciente dos seus direitos, das suas angústias e esperanças.

O povo e a luta pela moradia

“Às vezes, o acompanho [José Aparecido] nas suas idas às cidades-satélites e logo um grupo de moradores o cerca, aflito por velhas promessas – promessas centenárias – a implorar ajuda dos sucessivos governantes. Promessas humildes, mas fundamentais para os que lutam por subsistir, dentro dessa discriminação odiosa que o capitalismo instituiu. Não reivindicam casa para morar, mas apenas um pedaço de terra, dessa terra que também lhes pertence e que nada representa num país imenso, um verdadeiro continente.

Passei a compreender, então, como nós arquitetos estávamos enganados quando pensávamos nos grandes complexos populares, nas casas pré-fabricadas, moduladas e econômicas, que a técnica atual oferece.
E senti dentro da realidade brasileira, que a miséria do nosso povo é maior, muito maior, tão grande que nossos irmãos mais pobres só reclamam um pequeno lote, onde possam construir seus míseros barracos (…).

“Teria vergonha se fosse um homem rico”

Duas coisas guardo com satisfação: Uma é esse desinteresse pelo dinheiro, que mantive por toda a vida; a outra, minha vontade de ajudar as pessoas, ser-lhes útil, dividir (…).
Gastei tudo, e, como ajudei muita gente, é tranqüilo comigo mesmo que aceito esse retrocesso inevitável.

Infelizmente essa variação econômica – tempos de fartura e escassez – criou para mim compromissos inadiáveis, levando-me agora a pensar naquelas advertências que, se atendidas, tantas preocupações teriam me evitado.

Foi um vacilar de minutos. A certeza de que a todos atendi prontamente – como se o meu dinheiro também a eles pertencesse-afastou-me logo dessa espécie de autocrítica desnecessária (…).
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A paixão pelo o Brasil

“Brasil… Muitas vezes me senti jacobino ao defender meu país no exterior. Ao recusar as críticas, não raro justas, feitas muitas vezes num tom amigo e conselheiro. Mas, não sei por que nunca as tolerei. Lembro-me um dia, em Paris, da minha revolta quando alguém começou a criticar o Brasil, as despesas imensas que eram feitas, as obras gigantescas que surgiam quando a situação, diziam, exigia política mais econômica e realista. E não me contive, ponderando que tudo isso era natural – uma espécie de moléstia infantil, inevitável nos países em vias de desenvolvimento. E explicava que o Brasil era um continente. Um país jovem que tudo justifica. Uma força da natureza.

E, quando a conversa caminhava para o campo da cultura, eu explodia: “Como é fácil para nós, brasileiros, invadir o mundo da imaginação e da fantasia! Nosso passado é modesto e tudo nos permite realizar”. E continuava: “Como deve ser difícil para vocês realizarem coisa nova, a circularem a vida inteira entre monumentos!”. E repetia a minha frase predileta: “Nossa tarefa é outra: criar hoje o passado de amanhã”.

Conclamação à juventude
(…)
Reli este texto, e me vem uma vontade de prosseguir com os meus comentários sobre os momentos difíceis que estamos vivendo no Brasil, a maneira insidiosa, mas permanente, como a reação procura desmerecer o governo atual, quando, como era esperado, tenta atender as camadas menos favorecidas ou, na política externa, recusa qualquer proposta norte-americana que comprometa a nossa soberania.

Ah, como gostaríamos de ter ao nosso lado, a lutar contra este mundo injusto em que vivemos, a juventude deste nosso país! Juntos protestando contra este quadro de violência e desigualdade social que o regime capitalista produz por toda a parte, preocupados com as ameaças que atingem o nosso país e toda a América Latina, apoiados nos exemplos heróicos de Simon Bolívar, José Martí, Luís Carlos Prestes e Fidel Castro!

Nesse dia os nossos irmãos jovens vão compreender como tudo mudou, como é justo dar à palavra pátria uma importância maior, diante deste clima de ódio e terror que o império de Bush dissemina pelo mundo.

Nossos agradecimentos à Editora Revan que gentilmente autorizou Princípios a reproduzir trechos dos livros de Oscar Niemeyer. Os inter-títulos não aspeados são da revista. O último trecho foi retirado do livro O ser e a vida (2007), os demais de As curvas do tempo (2000).

Bibliografia
NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo – memórias. Revan: São Paulo, 7ª edição, 2000.
O ser e a vida. Revan: São Paulo, 2007.

EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35