para Araci

       Esperando Godot ou a formosa idade que o Profeta prometeu, embaladas pelo discurso do desenvolvimento sustentável; as regiões periféricas não avançam, entretanto, substancialmente como deveriam segundo as metas do Milênio, pactuadas entre galas e festas pelos países-membros da ONU com prazo fixo em 2015: véspera, por acaso, dos 400 anos de invenção da Amazônia, aniversário de fundação da cidade de Belém do Grão-Pará.

      Em contraste, o crescimento acelerado das desigualdades entre ricos e pobres vai de vento em popa em todo mundo: proporcionalmente, aumenta a violência do choque cultural. Aí estaria, precisamente, a emergência de algo que se pode classificar como terceiro movimento da revolução amazônica? Esta emergência vem sublimada da carga pesada do passado ou o esquecimento induzido pela classe dirigente zera a história da infâmia colonial? A consciência social pode por si só gerar vontade política e iluminar com segurança o caminho da mudança? As demandas populares poderiam, então, tomar rumo construtivo autodeterminado? Podem elas, a partir de guetos imundos transformar estes submundos em “células-tronco” de Gaia e levar o planeta a se salvar do desastre global?

      Ou, pelo contrário, populações deixadas ao deus dará sair de controle e derivar para o caos, alastrar a guerra das favelas e guerrilhas urbanas de gangues de periferia nascidas da barriga negra do êxodo rural e da imigração desenfreada em busca do “paraíso industrial”? Ou ainda, paradoxalmente, o bem e o mal coexistirão para sempre na plutocracia imperial, lado a lado no processo inconcluso de democratização do sistema social complexo? A democracia participativa será ela operativa algum dia ou apenas um álibi demagógico da chamada “responsabilidade” social? Livres de apartheid, mais de 300 milhões de nativos em populações tradicionais terão lugar ao sol nos respectivos países beneficiando-se de fundos internacionais, como seria o caso de um plano Mandela de reconstrução pós-colonial? O povo pode construir um futuro para si e seus descententes sem abandono do que lhe era próprio no passado pré-colonial sem domínio externo?  

      São muitas perguntas e uma resposta essencial a todas aquelas, que combina dignidade da condição humana e conservação da biodiversidade: conviver numa Terra sem males… A utopia suprema. A revolução planetária pelos quatro cantos do mundo desde que se inventou a Civilização e pariu a contradição social. Olhando pelo retrovissor compreende-se o presente e se descortina o avenir. A revolução amazônica 7 de Janeiro (R.A.7) é um movimento lento, contínuo e profundo como os rios da Planície. A exemplo de águas calmas e pastos verdejantes, há explosão e violência neste vagar. São as pororocas do encontro  do Rio com o Mar; motins políticos e revoltas em terra, quando a evolução natural encontra barreira represada mais tempo que a dinâmica das populações poderia suportar.

      Pode-se considerar a primeira Cabanagem o levante tupinambá de 7 de janeiro de 1619. Quando o cacique Guaimiaba [Cabelo de Velha] atacou loucamente o forte do Presépio [hoje do Castelo] a fim de vingar a escravidão de seu povo por falsos amigos e aliados estrangeiros: ele morreu em luta e ressuscitou nas crenças populares entre deuses pagãos, heróis e mártires da amazonidade. O tremendão tupinambá, entretanto, foi destroçado debaixo de banho de sangue como bárbaro batizado da terra  conquistada. Até ser pacificado e mestiçado a muque, com  naufrágio do poderoso mito nas ilhas Jurupari, enterrado sob pedras portuguesas da Feliz Lusitânia, na Cidade Velha. Donde malmente vem à tona como fantasma em horas mortas ou para ser ator principal durante transe em cinco mil terreiros durante noites de batuque.

      A segunda Cabanagem teve data de 7 de janeiro de 1835; quando descendentes dos “Ajuricabas” e “Nheengaíbas”, ajudados por filhos da Guiné e Angola não suportaram mais humilhações de dois séculos de escravidão romperam amarras e vingaram-se da perseguição e morte do líder popular cônego Batista Campos. Tomaram a província, ocuparam e incendiaram o Palácio do Governo [hoje museu do Estado], mataram o presidente provincial, destruiram a Loja maçônica da cidade e perseguiram a classe dominante… Cobraram ao dobro ou tríplo o sangue dos seus derramado na primeira, porém nesta segunda guerra-civil pagaram o preço de 40 mil vidas numa população que não passava de cem mil…

      A terceira Cabanagem que está em jogo, ao contrário daquelas, conquista poder com armas da inteligência dentro de processo à democracia participativa. Começou (se a gente pode  achar uma data) quando o povo organizado decidiu derrotar a ditadura e a classe burguesa tomou consciência de que a democracia é única maneira de convivência entre forças adversárias. Seu momento histórico assinala o Sesquicentenário da guerra-civil de 1835, com inauguração do monumento à Cabanagem, em 7 de janeiro de 1985.

      7 de janeiro pela terceira vez! Coincidência extraordinária de datas com mesmo nexo, separadas por séculos tendo sua razão de ser na luta do povo contra o trabalho escravo, império da violência e o colonialismo. A revolução amazônica se confunde com o tempo arqueológico da marcha dos profetas caraíbas que trouxe de Pernambuco e Paraíba ao Grão-Pará (antes de Pinzón e Orellana) primeiras migrações do Bom Selvagem tupinambá em busca da utopia neotropical: mítica Yvy Marãey (terra sem mal). Terra da promissão aonde não existe fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte. Este sonho universal encontrado entre bárbaros de todas regiões da Terra original.

      A utopia tupi-guarani está no DNA desta gente com tão grandes esperanças mestiçadas, mais tarde, com o sebastianismo aportado por europeus deportados e casais dos Açores e a encantaria africana aculturada a ritos dos caruanas da pajelança.  Passados 500 anos do descobrimento do Novo Mundo – quando o cego império do Ocidente decepou o “dedo da História”, que apontava naturalmente em direção ao Rio-Mar na metáfora de Niemeyer em concreto no monumento à Cabanagem –, são  vestígios imateriais que restam daquela tentativa instintiva de povos aborígens (ab origem) do mundo, pretos, brancos ou amarelos abraçados no sonho de uma Terra sem males, para todos.

      A historiografia engana e a geografia esconde o  segredo do “rio das Amazonas”. Já os guerreiros enrolaram bandeira no velho espaço plano de Euclides, com que partiram animosos com arcos e remos à mão na entrada de Pedro Teixeira de Belém ao alto-Amazonas até os Andes. Voltaram jururus, de mãos abanando, no desengano do mito. Depois de um estirão, outro e outro no rio infinito…

      Através do caminho ocidental americano ao porto do Sol nunca se chegou senão em sonho. Dada a mesma impossibilidade física em chegar ao paraíso terrestre através do mar em direção oriental. A busca do tempo perdido, todavia, prosegue inconsciente e conscientemente. Agora, o discurso dos caraíbas em transe, profetas do espírito Jurupari, virou dissertação de cientistas da mudança climática e tese de humanistas do IDH nos trópicos saqueados e devastados pela desastrada Conquista das amazonas.

      Novos cabanos pelejam no espaço físico e social de Einstein. Doravante, a R.A.7 com armas da arqueologia das idéias e a psicanálise da história, envereda pela ciência e tecnologia rumo  ao Arakyxawa (aportuguesado 'Araquiçaua”). Lugar antigamente procurado na terra dos Tapuias, através de caminhos cheios de espinhos do Maranhão ao Pará padecendo fomes, escravidão, pestes, demência senil na desumana busca do Eldorado; cada homem morrendo por dia mil mortes de cada vez. Mas a vida resistiu e venceu a morte pelo arco das gerações…

      No inferno verde o sonho nunca se rende em combate. A cada fim de jornada, ao pôr do sol, a esperança se renova na crença de que o paraiso está próximo. O Araquiçaua mostra-se ao longe, sob incêndio das nuvens provocado pelo pouso do astro do dia, numa ilha grande como a ambição da idade dos deuses: é a ilha do “homem malvado” (Marajó), falante da “língua ruim” (nheengaíba). Inimigo do Bom Selvagem. O perverso marajoara que tranca as portas das ilhas e proíbe a passagem dos tupis ao procurado Paraíso no rio das amazonas… Está aqui a causa da guerra neste mare nostrum que os cegos sem saber prolongaram. E o padre Antônio Vieira, levado talvez pelo Divino Espirito Santo, deu termo nas pazes do rio dos Mapuá, ano de 1659.

      Ah, mas essa estória não vale! Nenhum sábio viajante ou naturalista jamais documentou coisa semelhante. Se falta o cânone, à direita e esquerda do imperium, nada feito. Explica-se com esta augusta razão a míngua de interesse acadêmico sobre a sensacional revolução da Amazônia. Portanto, sem saída, explodem em carisma na igreja ou transe no terreiro santos, orixás, voduns, caruanas e outras entidades para habitar o tempo na terra de homens sem terra, sem teto, sem memoria, sem história, sem tantas outras coisas.

      Populações tradicionais ribeirinhas das palafitas (que Basílio de Magalhães comparou a revoltados das cabanas de Alagoas, donde o nome de “cabanada” ou “cabanagem” no Pará) experimentam com a Carta Magna de 1988 – malgré tout – uma emancipação jamais experimentada. A regularização fundiária de terras de mocambo [quilombos], várzeas de marinha, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável, assentamentos agrários, agricultura familiar, reservas da biosfera, corredores ecológicos são novidades que correspondem a velhas aspirações populares. Momento sem par, que desafia a Ciência e Tecnologia a dar especial contributo a fim de concretizar a Utopia na antiga terra dos Tapuias.
 

 

Belém do Pará, 18 de dezembro de 2007