Se alguém vê exagero na afirmação, tem oportunidade de fazer história política e social comparada das regiões Sul e Norte do Brasil em suas desiguais relações com o Rio de Janeiro durante o movimento federativo revolucionário da Farroupilha e da Cabanagem, por exemplo. Dois pesos e duas medidas, com fortes tintas de intolerância e racismo do império brasileiro. Sabe, estas coisas ficam num rosário de causas e conseqüências ao longo do tempo: para construir pontes é necessário remover obstáculos do caminho…

      Mas, o Oiapoque é uma via de futuro na sui generis fronteira entre o Brasil periférico e a França ultramarina evoluindo para se tornar elo de ligação entre a fachada extremo-norte do Mercosul e a região ultraperiférica da União Européia, doravante 'Amazônia francesa' – porto espacial da Europa –, outrora simplesmente a Guiana com seus estigmas da escravidão, colônia enclavada na América do Sul, a legenda negra da Ilha do Diabo, contrabando, imigração “clandestina” à luz do dia marcada por cinismo e necessidade de “refugiados econômicos” em busca do Eldorado vindos dos quatro cantos do mundo para transformar o Departamento da zona do euro no ultramar, numa sorte de arca de Noé étnica e cultural super interessante, que a Intelligentsia mundial, com suas lentes fumê de proteção contra o sol dos trópicos, não consegue ver ou achar nenhuma graça…

Os ossos do testamento de Adão

      O caminho mais curto entre a Europa e a Amazônia, já foi pomo de discórdia entre reis e vassalos, desde o “testamento de Adão” (denominação irônica do tratado de Tordesilhas de 1494, dada por François I, da França; ao criticar acordo entre seus primos monarcas da Espanha e Portugal, repartindo entre si o mundo “achado e por achar” no além mar, sob as benções do papa Alexandre VI). Os povos das regiões fronteiriças, entretanto, sem trombetas nem estandartes fizeram da antiga vizinhança leit motif da cooperação regional. E, certamente, antes da chegada de Cristóvão Colombo nas Bahamas que se chamava, então, ilhas de Guaanani.

      Quem teme a “internacionalização” da Amazônia deve ser informado que esta já aconteceu há cerca de 400 anos, o que falta realmente é lutar para nacionalizar as regiões amazônicas: ou internacionalizar o mundo… Cada região com autonomia real para se desenvolver no conjunto do respectivo Estado; de modo a criar autêntica cooperação entre países amazônicos. Claro que não se está falando em “independências” sob medida ao agrado de certas oligarquias em protetorados requentados perturbadores da tranqüilidade das populações locais. O rio de Vicente Pinzón ou rio Oiapoque, já deu causa a muita confusão. Ele, contudo, guarda segredos pré-colombianos e saber de populações tradicionais que a antropologia amazônica apenas arranha com promessas da ciência e tecnologia do Trópico Úmido no amanhã, afinal não tão longe. Durante o bicentenário da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, por exemplo, deve ser ocasião para brasileiros, franceses e portugueses olhar a Amazônia e descobrir aí traços comuns e adivinhando também o que vai passando pela fronteira do Oiapoque aonde um marco de limites avisa que o Brasil começa ali..

Casamento da filha do rei Brasil com o príncipe Galibi

      Uma lenda do folclore guianense fala do casamento do príncipe Caiënne, filho do cacique Ceperu; com a princesa Belém, filha do rei Brasil. Casório arranjado pela magia do pajé Montabô transportado pelo ar, montado num touro alado, que nem o surrealismo de André Breton poderia alcançar. O imaginário popular anda mais depressa do que planejamento oficial atrasado na tentativa de habitar o tempo, sem moradia no espaço da realidade: quando não o casamento da fábula, pelo menos o amasio de fortuna entre crioulos endinheirados pelo seguro-desemprego e caboclas sans-papier prontas para o que der e vier: o matriarcado vence a falocracia… Mas, os afilhados de Montabô, muitas vezes, perdem o juízo e o rumo das coisas. Para ganhar dinheiro além fronteira atravessa-se o rio a nado, e a viagem em piroga afinal não demora mais de meia hora na calada da noite pelas margens da história.

      Havendo ponte justa e perfeita, talvez a gente acertasse o passo para andar direito. Há dez anos FHC e Chirac se encontraram no Oiapoque para  concertar a construção da tal ponte a mais demorada do Novo Mundo. Dizem ultimamente que Lula e Sarkozy a vão inaugurar, talvez, em 2010. Ela é pequena fisicamente, mas tem simbolismo duma ponte sobre o Atlântico por onde poderá transitar trocas transamazônicas através de futura área de livre comércio Mercosul – União Européia. Para que isto venha a ser algo mais que um sonho é preciso realizar intercâmbio de idéias e pontos de vista numa série de preparativos das regiões amazônicas vizinhas, notadamente no que se refira às metas do Milênio. As quais foram pactuadas para estar concluídas até 2015, um ano apenas antes dos 400 anos de fundação da cidade de Belém do Pará.

Biodiversidade e diversidade cultural

      Além do Oiapoque, Caiena, capital da Amazônia afro-européia,  apresenta singularidade francófona de uma plataforma onde quase todo mundo está representado. A par de populações ameríndias, quilombolas e crioulas importantes; há chineses, laosianos, vietnamitas, hindus, libaneses e europeus num rico mosaico étnico e cultural que conecta a região guianense ao vasto mundo. Belém e Macapá por sua parte, fazem parte de um universo de mais de 200 milhões de falantes de língua portuguesa, que tem o Brasil como o maior mercado, tanto no bloco lusófono quando no Mercosul.

O bicentenário da corte no Rio

      O bicentenário da vinda da corte portuguesa para o Brasil (2008), lembra a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão comandadas pelo General Junot e suas conseqüências amazônicas, inclusive a invasão da Guiana francesa (1809-1817) por tropas paraenses sob comando anglo-português; é oportunidade a jovens intelectuais para compreender os fatos. No estado atual da globalização, fronteiras que antes separavam servem para aproximar e integrar regiões vizinhas.

      O conhecimento mútuo entre o norte do Brasil e as Guianas (das quais o Amapá, parte do Pará e Amazonas e Roraima estão inseridos) abre oportunidades interessantes. Entretanto, a fim de compreender o presente é necessário estudar o passado. As regiões amazônicas são resultado do choque entre culturas ameríndias e européias, a escravidão africana e a colonização.

      “Última fronteira da Terra”, a Amazônia desperta para novos tempos. Convém que 25 milhões de amazônidas num arquipélago verde em perigo, na beira da Amazônia azul da qual apenas se começa a falar; estabeleçam “pontes” entre si. São várias as Amazônias. A capital do Pará, por exemplo, antiga boca de sertão; trouxe o Nordeste para dentro do rio das Amazonas. Mas, pelo Cabo Norte (Amapá) a área cultural das Guianas reporta à Terra-Firme (continente) o Caribe: esta encruzilhada de três continentes. Caiena – país natal do índio Ceperu – é herdeira de antigas migrações aruaques e galibis das Ilhas para o país do Arapari (América do Sul). A gigantesca corrente do Amazonas foi no passado pré-colombiano a maior barreira a esse encontro.

A diplomacia amazônica tem raízes no Oiapoque

      Na baía do Oiapoque, sobre o Mont d'Argent, surgiu no passado pré-colonial a confederação de povos indígenas aruaque, cujo cacicado legendário teve na figura de Anakayuri o seu fundador. Esse herói memorável comandou migrações do Caribe para o continente através da ilha de Trinidad e as bocas do Drago, no delta do Orinoco. Os povos aruaque (com diferentes nomes, tais como Lucayos, Taynos, Ignerys, Yo, Palikur, etc) notalizaram-se pela capacidade de organização confederativa, a arte da guerra e a convenîencia das pazes. Com que tendo recebido o primeiro choque da Conquista ainda sobrevivem até hoje com líderes importantes, como por exemplo, Marcos Terena, consultor da ONU para assuntos indígenas.

      Se há alguém de sangue indígena do Oiapoque capacitado a falar com propriedade sobre o potencial histórico, cultural, econômico e ambiental das relações franco-brasileiras na Amazônia, essa pessoa é a diplomata francesa Annick Thebia-Melsan. Ela nasceu na Guiana Francesa, única diplomata negra no Quai d'Orsay até hoje; tem ascendência européia na Alsácia e na Córsega; além de uma avó indígena da fronteira com o Amapá. Formou-se em Ciências Políticas e Diplomacia em Paris e durante quatro anos trabalhou na Embaixada da França no Brasil.

      Thebia-Melsan é um exemplo do potencial humano em sociedade periféricas, e se auto-define como cidadã do mundo, defensora do multilateralismo; trabalhou no departamento da Francofonia do governo francês e foi comissária geral da Unesco, entre 1995 e 1998. Atualmente participa do programa de Cooperação "Sul-Sul" da Organização da ONU. O qual pretende abrir canal de entendimento direto entre países do terceiro mundo. A diplomata guianense é estudiosa do Brasil, que conheceu quando, aos 19 anos veio para pesquisar a obra de Cândido Portinari, considerado o maior pintor brasileiro.

A descoberta da Guiana na complexidade brasileira

      O sociólogo brasileiro Ciro Flamarion Cardoso, para entender a escravidão na base da pirâmide social latino-americana, escolheu a Guiana Francesa como objeto de estudo. Annick Thebia-Melsan escolheu o Brasil a fim de entender o tecido político de seu país. Ela declarou que foi um descobrimento extraordinário. O conflito neocolonial entre a região Guiana e a metrópole era para ela algo que não compreendia bem. Ao chegar no Brasil  percebeu que as contradições da sociedade brasileira eram basicamente as mesmas da ex-colônia francesa.

      A complexidade neocolonial está, segundo Thebia-Melsan, entranhado no continente africano, por exemplo, com suas eternas disputas territoriais e conflitos étnicos. Muitos desses problemas foram gerados ou agravados no tempo colonial, mas vivemos uma perspectiva histórica abstrata, diz ela. Para ilustrar, cita a diferença que se estabeleceu entre dois povos antes considerados indígenas na África do Sul. De uma parte, os que sempre estiveram na Península do Cabo, que são negros de pele clara e se consideram indígenas. Por outra parte os Zulus, que a partir do século 17 desceram para a África do Sul, resistiram aos holandeses e ingleses e se estabeleceram. Estes  não aceitam o termo indígena, consideram-se povo tribal. Face a isso, a ONU teve que se adaptar, e o que vale é: Povos Indígenas e Tribais. Uma prova de que a ONU não dita conduta nenhuma, mas concerta, negocia e coordena em busca do equilíbrio e a paz.

      Annick Thebia-Melsan chegou ao Brasil em 1983, durante a abertura democrática. Teve por missão mostrar ao governo de seu país que o Brasil podia ser parceiro capaz de estabelecer uma cooperação solidária incluindo o contingente negro desfavorecido de seu povo.  O projeto França Brasil nasceu desse esforço. Pois, apesar da tradicional admiração da França pelo Brasil, naqueles anos a França o rejeitava ainda como parceiro econômico, segundo entrevista da diplomata ao Portal Afro, entrevista de 10/01/2002, a Jader Nicolau Jr.. Um bom exemplo dessa política vem dos anos 60, quando a Renault resolveu instalar-se na América Latina. Os brasileiros desejavam a fábrica, “mas os franceses escolheram a Argentina… Tempos depois eles se "tocaram" e agora estão por aqui, e muito bem.“ Explica,”A Argentina era considerada um país muito mais próximo da Europa, mais branco. Querendo ou não, a imagem que o Brasil tem no exterior é a de um país de maioria negra”.

País do futuro

      No dia 20 de janeiro de 2004, numa grande agência de viagens em Paris, me foi dirigida esta interessante questão: "o senhor acha que do Brasil poderá vir uma nova civilização?" Respondi com a crença inabalável, bem brasileira, nesse destino sebastianista. Segundo Zweig somos o país do futuro e o padre Antônio Vieira tendo vagado entre as ilhas do estuário amazônico e caído nas malhas da Inquisição sobre o que havia escrito sobre a heresia judaizante do  Quinto Império do Mundo; defendeu-se com a História do Futuro, introdução à Chave dos Profetas. Ou seja, o reino universal de Jesus Cristo realizado na terra. Onde declara que a profecia de Daniel retomada no Livro de Isaías não se refere “a toda gente e terra do Brasil… […]… (mas) é a que com toda a propriedade chamamos Maranhão …[…] muito mais particularmente naquele vastíssimo Arquipélago do rio chamado Orelhana, e agora das Amazonas…” (Antônio Vieira, História do Futuro, Lisboa, 1718. pp. 300/2001). Estamos conscientes de que a ilha do Marajó é o centro do mundo na utopia evangelizadora do Padre Antônio Vieira, ainda que ele tenha escrito isto como disfarce diante do inquisidor para, mais tarde, reafirmar o trono de Portugal e o de São Pedro, em Roma, como os pilares do reino de Cristo.

      Nas águas do sebastianismo surgiu a lenda de que, inimigo dos jesuítas mas admirador de Vieira, o Marquês de Pombal tramou secretamente transferir a corte portuguesa para a Amazônia (Grão-Pará na época); faria parte da negociação a entrega de Portugal a Espanha a troco da posse castelhana na bacia amazônica. Assim, o Brasil português seria essencialmente amazônico e a Espanha seria senhora absoluta de toda Península Ibérica. Como surgiram tais locubrações? Pode-se especular entre meios portugueses do Pará em pleno esplendor da Borracha… Porém a matriz sebastianista deixou traços profundos na sociologia luso-tropicalista de Gilberto Freyre, na escola de Recife. Mais que isto, a tradição do Tambor de Mina (ecos do golfo da Guiné nas noites do Maranhão e Pará), com os turcos encantados habitando radicalmente o imaginário coletivo da Amazônia.

      A velha França além Pirineus estabeleceu com a Península Ibérica uma relação peculiar referente a legenda de El Cid e à fundação do Condado Portucalense pelo nobre Afonso Henriques, da Borgonha, região de passado celta. A América do Sul está na ordem do dia na cena mundial. Aparentemente, alguma coisa acontece no Novo Mundo com a emergência de remanescentes de povos indígenas, negros e mestiços fazendo ponto comum com pinta de uma nova civilização. Chegará a bom termo? Não importa, já provou que a mestiçagem poderá ousar muito mais. Para isto, o velho povo  português caldeado na faina da pesca e na aventura marítima está implicado até o pescoço depois de ter sido cavalo de batalha nos mares do Sul quando, sem saber da subversão que iria provocar, atravessou a zona tórrida das Antípodas a caminho das Índias.

      Começou aí uma longa travessia da História iniciada por um certo grego chamado Heródoto curioso da geografia dos antigos. A odisséia vem, talvez, acabar na nova zona tórrida projetada a 370 léguas ao ocidente de Cabo Verde, por um meridiano de pólo a pólo cortando o planeta em duas bandas como uma fruta madura entre os reis de Espanha e Portugal; nos 400 anos de nascimento de um menino mulato, nos arredores de Lisboa. Ora, este menino que conta agora quatro séculos de frutuosa existência é filho de cristãos velhos (bárbaros cristianizados) e negros cativos. Ele foi criado na Bahia de Todos os Santos onde, fugindo de ataque corsário holandês; refugiou-se entre índios e padres da aldeia catecúmena do Espírito Santo. Desde então a figura do Índio cristão-novo assume no espírito do futuro Payaçu amazônico o caráter de uma missão universal resgatada do ecumenismo judaizante medieval de Joaquim de Fiori popularizada pelas trovas do sapateiro Antônio Bandarra.

      Ele veio a ser imperador da língua de Camões, por édito poético de Fernando Pessoa, e um certo dia a caminho da aldeia do Camutá [Cametá-PA], subindo o rio dos Tocantins em canoa a remo levada a braços indígenas escreveu, talvez pelo surrealismo da paisagem; a heresia das Esperanças de Portugal anunciando que o poeta Bandarra – sebastianista condenado pelo Santo Ofício – era verdadeiro profeta. Este poeta popular promovia na Aldeia de Trancoso e em todo Portugal debaixo do domínio de Castela a crença na ressurreição do rei dom Sebastião. E ali singrando o rio para Cametá o padre Antônio Vieira retomando a lírica de Bandarra queria ressuscitar o falecido rei Dom João de Bragança. Agora, até 2010, a ponte do Oiapoque fecha um ciclo, talvez para começar outro: é preciso habitar o tempo.