Estado, política e classes sociais
O mais novo livro de Armando Boito é uma coletânea de 12 artigos. Pode¬mos dizer que existe um fio condutor que articula todos os textos dando unidade teórica à obra. Este fio é a crítica às leituras economicistas do marxismo, que predominaram desde o final do século XIX. Não proponho fazer aqui um resumo de todos os textos, mas apenas expor o que acredito se¬jam algumas idéias centrais do autor.
Boito combate as teses que afirmam que o poder na sociedade é difuso e não hierarquizado. Conforme lembra o autor, “o poder que se exerce na família, na escola, na empresa, nos hospitais ou na prisão”, tão valorizados por Foucault, “é conferido ou regu¬lamentado por normas legais e fiscalizadas pelo apa¬relho de Estado”.
A idéia de um poder difuso leva à dispersão das lutas sociais e políticas, desviando sua ação sobre aquele que é o principal locus do poder nas socieda¬des classistas: o Estado. “Manter a paz ou declarar a guerra, preservar a propriedade privada ou socializar os meios de produção, aumentar o emprego ou di¬minuí-lo, distribuir renda ou concentrá-la (…) são questões fundamentais para a vida humana e não pode ser colocada no mesmo nível que aquele refe¬rente (…) à autoridade dos adultos sobre as crian¬ças”, ironiza.
Boito aborda o problema da transição de um mo¬do de produção a outro. Ele critica aqueles que vêem a transição ao capitalismo como simples “resultado do desenvolvimento espontâneo e cumulativo da economia (…) desenvolvimento que, ao atingir certo nível, levaria à mudança política que apenas ‘oficia¬lizaria’, no plano da política, o capitalismo, que já seria um fato no campo da economia”.
Invertendo a lógica predominante, ele sustenta que a transição “se inicia pelo desajuste entre, de um lado, a estru¬tura jurídico-política do Estado que ‘avançou’ como resultado de uma revolução e, de outro, a estrutura econômica que ficou ‘para trás’, presa ao modo de produção anterior”. Seria a revolução política que criaria as condições para o desenvolvimento das for¬ças produtivas capitalistas.
Ainda dentro da temática transição, Boito rejeita a tese de que o Estado absolutista tivesse sido um Estado de tipo burguês, pois o seu objetivo era “pre¬servar as relações de produção feudais” e ele as pre¬servaria, fundamentalmente, através da sua estrutu¬ra jurídico-política.
No capitalismo o produtor direto é, juridicamen¬te, livre e igual ao proprietário dos meios de pro¬dução. Assim, a sua relação na produção “aparece como uma relação contratual em que partes livres e iguais realizam uma troca – salário por trabalho”. Isso é fundamental para a reprodução das relações de produção capitalistas. No absolutismo os servos não são portadores de plenos de direitos e não po¬dem se constituir como cidadãos livres e iguais, obs¬taculizando a formação de um mercado de trabalho assalariado.
Outra diferença é a forma de organização do apa¬relho de Estado. O Estado burguês garante, formal¬mente, o acesso às funções do Estado aos membros das classes dominadas. O critério de acesso é a “com¬petência” (ou mérito). No absolutismo, pelo contrá¬rio, o Estado não está aberto às classes exploradas. Mesmo a burguesia tem seus direitos restringidos. A ela é vetado várias e importantes funções estatais. Conclui o autor: “é porque o Estado absolutista era um Estado feudal (…) que foi necessário uma revo¬lução política burguesa”.
Também no tratamento teórico da crise re¬volucionária ele se opõe ao economicismo. Para este a crise revolucionária é o simples resultado do agravamento da crise econômica e da miséria das massas. Boito defende que a conceituação de Lênin sobre a crise revolucionária nas sociedades capitalistas pode ser estendida para análise da cri¬se revolucionária na França de 1789. Ali também não bastava que os de baixo não quisessem mais viver como antes, era necessário que os de cima não pudessem mais manter sua dominação. Este último fator se traduziria numa divisão no seio das classes dominantes. Conforme lembra Boito, a contradição entre as classes fundamentais nem sempre é a contradição principal em determinada conjuntura política.
Tendo por referências as obras históricas de Marx, Boito se volta para a crítica da visão liberal-burguesa, de fundo idealista, predominante nas análises da lu¬ta política. Escreve: “A cena política é uma realidade superficial, enganosa, que deve ser desmistificada”. A cena política – espaço da luta institucional entre partidos – é “uma espécie de superestrutura da lu¬ta de classes”. A ideologia burguesa e pequeno-bur¬guesa procura ocultar este fato, afirmando o caráter não-classista dos Partidos e do Estado. Ela difunde a idéia que a luta política é apenas uma desavença en¬tre personalidades e partidos e não um conflito entre as classes e frações de classe.
Os partidos socialistas devem desfazer esta ilusão e o fazem, fundamentalmente, se assumindo en¬quanto partido de uma classe determinada que de¬seja o poder de Estado para colocá-lo a serviço dessa mesma classe: o proletariado.
Por fim, ele trata do tema da formação das clas¬ses, especialmente da classe operária. Contesta aqueles que pretendem definir as classes apenas no plano econômico. Para esses a formação de uma ide¬ologia e um movimento operário socialistas seriam complementos naturais do desenvolvimento das for¬ças produtivas. A classe social, na verdade, é “um fenômeno, ao mesmo tempo, econômico, político e cultural (…) Os lugares ocupados no processo de produção (…) possibilita a organização dos coletivos com interesses opostos. Mas isso é (apenas) uma possibilidade”. Continua ele: “A classe social só exis¬tirá no sentido forte do termo, isto é, como coletivo organizado e ativo, quando o antagonismo latente torna-se manifesto”.
Como já disse, esses são apenas alguns temas po¬lêmicos abordados por Boito neste instigante livro, que dá sua contribuição para renovação e enriqueci¬mento do marxismo no Brasil.
Augusto Buonicore é historiador e membro da Comis¬são Editorial da Princípios
EDIÇÃO 94, FEV/MAR, 2008, PÁGINAS 80, 81