A independência política do Brasil é re¬pleta de singularidades históricas que costumam surpreender quando compa¬radas aos processos de ruptura radical com guerras sangrentas e proclamações de caráter revolucioná¬rio em nome da pátria a ser libertada. Por aqui as coisas foram um tanto quanto diferentes e, ao invés de maldizer os rumos da nossa história e ficar com especulações estéreis sobre o que seríamos como nação acaso os rumos fossem outros, é importante mergulharmos nas características fundamentais dos processos que conduziram o Brasil a ser o que é.

Antes da chegada da Família Real o Brasil viven¬ciou insurreições localizadas de colonos, bem como a histórica resistência dos escravos. Entretanto, o pro¬cesso geral que conduziu à independência política do Brasil em 1822 foi decorrência direta da presença, nes¬tas terras, da Família Real portuguesa e das diversas modificações introduzidas por D. João VI durante os doze anos de permanência no Rio de Janeiro. Foi tão significativa que a própria Proclamação da Indepen¬dência, no 7 de setembro, deu-se sob os auspícios de um príncipe português, herdeiro do trono lusitano. A chegada da Família Real por si só foi fato inu¬sitado: o poder político de uma metrópole deslocar-se com pompa e circunstância para uma colônia. Contudo, longe de constituir-se num fato isolado, tal deslocamento necessita ser compreendido tanto em seus aspectos conjunturais como nos elementos relacionados às profundas transformações históri¬cas em curso desde o sécu¬lo XVIII, que avançariam pelo próprio século XIX e consolidariam o capitalis¬mo industrial como siste¬ma dominante no mundo.

O Império de Napoleão e as disputas com a burguesia inglesa

A expansão francesa pela Europa no início do século XIX, tendo à frente o gênio militar de Napoleão Bonaparte, expressa¬va, na realidade, a tentativa de consolidação da alta burguesia daquele país após o prolongado período de convulsões iniciado pela Revolução de 1789 e a derrocada do Antigo Regime Absolutista.

A partir da resistência do povo francês às tenta¬tivas das nações absolutistas aliadas à nobreza der¬rotada pela Revolução de pôr fim à radicalizada ex¬periência de construção da república – cujo período mais radical em todos os seus aspectos transcorreu durante o governo jacobino liderado por Robespier¬re – e às intensas disputas internas pelo controle do poder, a França – tendo Napoleão no comando do exército e logo mais do Estado – expulsou do seu território as diversas tropas absolutistas, iniciando um contramovimento militar que resultou na con¬quista de países inteiros, bem como na submissão de outros aos ditames do general imperador através de alianças políticas.

Na esteira das conquistas militares a burguesia francesa – beneficiada pelo apaziguamento interno imposto a ferro e fogo por Napoleão aos grupos mais exaltados vinculados ao proletariado urbano, e pelo estabelecimento de toda uma legislação (Código Na¬poleônico) que a beneficiava diretamente como clas¬se social em busca de hegemonia – buscou impor-se ao conjunto da Europa nos aspectos econômicos e ideológicos.

O contraponto mais efetivo e perigoso às preten¬sões hegemônicas da burguesia francesa e do próprio imperador general era a consolidação da burguesia inglesa – à época na primeira fase da Revolução In¬dustrial – que, desde o final do século XVII, já contro¬lava de maneira particularmente eficiente boa parte do comércio internacional, a partir de uma extensa rede de manufaturas em território inglês e da articu¬lação de uma poderosíssima marinha que hegemoni¬zou os mares nos séculos XVIII/XIX, levando mundo afora não apenas produtos ingleses, mas estabelecen¬do paulatinamente o predo¬mínio daquela burguesia na cena internacional.

Das disputas entre es¬sas duas grandes burgue¬sias em ascensão estabele¬ceram-se na Europa novos elementos que aceleraram dramaticamente as trans¬formações no panorama internacional: a consoli¬dação futura do império inglês; a derrocada do im¬pério colonial espanhol a partir das independências latino-americanas; a intensificação do declínio do império colonial luso e, claro, o retrocesso político econômico a que foi submetida a nação francesa após as definitivas derrotas de Napoleão em 1815.

O declínio do Império
Colonial Português

As classes dominantes portuguesas protagoniza¬ram, ao lado de suas respectivas congêneres espa¬nholas, movimentos históricos fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo a partir do século XV, no processo que ficou conhecido como “Grandes Navegações”. Vinculadas diretamente ao chamado Renascimento Comercial na Europa pós-Cruzadas (1096-1270) – que restabeleceu as ligações entre a Europa e o Oriente, reintroduzindo no “Velho Con¬tinente” um conjunto de produtos agrícolas e ma¬nufaturados (as Especiarias) forjadas e unificadas principalmente em função da reconquista cristã aos territórios conquistados no século VIII pelos muçul¬manos na Península Ibérica – puseram-se ao mar para acessar diretamente as regiões produtoras dos tão cobiçados e valorizados produtos, bem como em busca de novas fontes de ouro, prata e quantas ri¬quezas mais pudessem ser conquistadas.

Portugal, a partir da liderança inicial nesse movi¬mento expansionista constituiu um vasto e poderoso império colonial que abrangia praticamente todo o litoral africano, partes da Índia, da China e, claro, a parte do território americano – o Brasil – que lhe coube pelo acordo estabelecido com a Espanha no Tratado das Tordesilhas de 1497. Efêmero poder. Rapidamente países como Fran¬ça, Holanda e Inglaterra passaram a ocupar crescentes espaços no co¬mércio internacional das especiarias minando o poderio inicial de Portu¬gal particularmente na Ásia. Invadi¬do e dominado pela Espanha por 60 anos (União Ibérica) e sofrendo for¬te concorrência holandesa na pro¬dução de açúcar, cuja produção na colônia brasileira vinha sendo sua principal fonte de lucro até meados do século VII, a economia lusitana definhava. Acossados por todos os lados e vendo seu poderio interna¬cional esvair-se os reis portugueses iniciaram um processo de profunda ligação econômica e política com a ascendente nação inglesa.

Se, por um lado, a descoberta de ouro no Brasil no início dos anos 90 do século XVII reacendia o ânimo comercial e político dos portugueses, por outro, seus monarcas e sua burguesia comercial pouco fizeram para que a economia deslanchasse pa¬ra outros rumos, notadamente no desenvolvimento de um forte processo manufatureiro que pudesse for¬necer aos próprios portugueses e às suas colônias do “além-mar” os produtos fundamentais necessários. Longe disso, a opção foi pela vinculação mais intensa à economia inglesa, cujo retrato mais acabado foi a assinatura do Tratado de Methuen (1703), pelo qual Portugal comprometia-se a comprar os tecidos que necessitasse da burguesia inglesa enquanto esta se comprometia a consumir os saborosos vinhos produ¬zidos nas terras da decadente nobreza lusa.

Ao lado desse nítido comprometimento do futu¬ro econômico português e da sua colônia brasileira – posto que pelo Alvará de 1785 proibiu-se o funcio¬namento de manufaturas no Brasil – os portugueses, ao tornarem-se fortes consumidores das manufatu¬ras britânicas e grandes exportadores de vinho se transformaram na verdade em meros intermediá¬rios entre a riqueza mineral extraída do solo “das minas gerais” e a burguesia inglesa que enchia as burras com o precioso ouro colonial aqui extraído.

Cada vez mais vinculada à Inglaterra, a monar¬quia portuguesa viu-se em palpos de aranha quando o imperador francês decretou o Bloqueio Continen¬tal àquele país em 1806, pelo qual proibia a todas as nações européias de manterem comércio com os ingleses, sob pena de invasão, anexação e destrui¬ção das antigas instituições monárquicas. Fustigado por um lado pelo crescente poderio napoleônico e por outro pelos diversos tratados econômicos e po¬líticos com a Inglaterra – que explicitamente amea¬çou tomar as terras brasileiras e as demais colônias que ainda possuía para que estas não servissem aos interesses franceses – D. João VI, à época Príncipe Regente, optou pela consolidação da aliança com os ingleses. Portugal, invadido pelas tropas france¬sas, viu todo o seu governo ser tangido pelo oceano atlântico pela marinha britânica rumo ao Brasil, nu¬ma das mais vergonhosas capitulações políticas de que se tem notícia.

Transformações na colônia

O impacto da chegada da Corte Portuguesa e de todo o aparato burocrático estatal lusitano foi inten¬so. De uma hora para outra e sem qualquer preparo prévio instalava-se no Brasil uma Corte parasitária, habituada aos luxos típicos das cortes européias, composta por cerca de 13 mil pessoas. Manter tal contingente de cidadãos de “alta estirpe” vivendo em um padrão minimamente parecido ao que es¬tavam habituados na Europa requeria do governo português recém-instalado um conjunto de movi¬mentos acelerados para criar as condições adequa¬das para a manutenção de gente tão refinada. Para além dos usos e costumes da corte, do esbanjamen¬to acentuado de bens, da aquisição de produtos de primeira qualidade bem como das providências pa¬ra abrigá-los em condições adequadas, jogava-se no Brasil uma cartada absolutamente espetacular para a consolidação dos interesses econômicos ingleses no Atlântico sul.

Portanto, tratou D. João VI de buscar atender de pronto aos interesses de seus fiéis seguidores, ávidos por conseguir acesso a bens de consumo condizentes e instalações físicas adequa¬das nestas terras tropicais, bem como tratou de ga¬rantir a preponderância dos interesses ingleses nas relações comerciais com a colônia brasileira e com o próprio governo lusitano aqui instalado. Nesta dire¬ção caminharam de ime¬diato os primeiros decre¬tos de D. João VI no Brasil logo quando da sua chega¬da à Bahia, decretando de um só golpe o fim do mo¬nopólio exercido pelos co¬merciantes lusitanos com a colônia brasileira, repas¬sando tal controle, na prá¬tica, à burguesia inglesa.

O decreto de 1808 esta¬belecendo a “Abertura dos Portos às Nações Amigas”, ao mesmo tempo em que liberava os colonos brasi¬leiros do rígido controle comercial estabelecido pelos comerciantes portugueses, responsáveis pelo forneci¬mento de produtos de consumo duráveis e não durá¬veis e pelo tráfico de escravos, favorecia diretamente os interesses britânicos.

Não à toa, a partir da Abertura e do Tratado de 1810 os ingleses foram profundamente beneficia¬dos recolhendo ao tesouro real taxas de 15% para os produtos aqui vendidos, enquanto comercian¬tes portugueses pagavam 16% e dos demais países 24%! De pronto, o Brasil foi invadido por um sem número de produtos ingleses consumidos à larga pela antiga elite e pelos vorazes nobres e burocratas recém-chegados.

Com a liberalização do comércio, ao mesmo tem¬po, criaram-se melhores condições para que a elite colonial rural aqui instalada negociasse os produtos da terra – açúcar, algodão, couros, charque, fumo e café nos seus primórdios – em condições mais van¬tajosas, o que, visto em movimento, consolidaria a necessidade de evitar sob qualquer circunstância o retorno ao esquema colonialista anterior, de submis¬são praticamente irrestrita aos interesses dos comer¬ciantes lusitanos. De modo geral a produção econô¬mica dinamizou-se e aqui encontramos o elemento primordial do processo que se consolidaria a partir de 1822 com a efetivação da separação política do Brasil em relação a Portugal.

Ainda em 1808 revogou-se o odioso Alvará de 1785 que proibia a implan¬tação de manufaturas e indústrias no Brasil. Isto pouco contribuiu para um surto imediato e robusto de desenvolvimento industrial por aqui – graças à acen¬tuação das importações de produtos britânicos privile¬giados pelas baixas taxas alfandegárias estabelecidas bem como pela completa ausência de incentivos do poder público para reorien¬tar minimamente que fos¬se o caráter essencialmente agrário da nossa economia à época – mas é necessário considerar que a revogação legalizava a iniciativa pro¬dutora industrial e propi¬ciou o lento início daquelas atividades por aqui.

Ao mesmo tempo em que liberava as elites colo¬niais brasileiras da sanha monopolista dos próprios comerciantes patrícios – atendendo aos ditames dos comerciantes ingleses – D. João VI tratava de imple¬mentar um conjunto de modificações urbanas no Rio de Janeiro, para abrigar condignamente a corte portuguesa. Essas modificações tiveram início com a primeira “reforma urbana” realizada no Brasil – às avessas, bem entendido –, movimento que ficou jo¬cosamente conhecido como “Ponha-se na Rua” em alusão ao carimbo PR (Príncipe Regente) fixado na porta das residências que D. João mandava confis¬car aos “naturais da terra” para abrigar os nobres e burocratas “sem teto” recém-chegados. Junto com isto, o príncipe regente iniciou todo um conjunto de obras de grande impacto urbanístico – palácios, pra¬ças, jardins (inclusive o Jardim Botânico do Rio de Janeiro), moradias – contratando diversos artistas, arquitetos e urbanistas franceses para modificar de maneira radical a paisagem do Rio colonial, adap¬tando-o ao gosto da nobreza européia.

“A instrução pública foi consideravelmente me¬lhorada, sendo também ampliada com fundações de novos setores de estudo com a criação de aulas de medicina na Bahia e Rio de Janeiro, a acade¬mia de guarda-marinha, a academia militar, a au¬la de comércio, abrindo assim novos horizontes ao nosso ensino. Fundaram-se e começaram a circular os primeiros jornais no país e tiveram início igual¬mente as edições de livros, saindo de nossos pre¬los, além de obras didáticas e documentos oficiais, trabalhos sobre economia, história, filosofia, moral, literatura,etc.” (LIMA, Heitor Ferreira. História Polí¬tico-Econômica e Industrial do Brasil, p. 177, coleção Brasiliana, 1970, Companhia Editora Nacional). Os portos foram melhorados bem como estimulou-se a vinda de colonos europeus para ocupar territórios no sul do Brasil, consolidando a expansão territorial no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Todas essas movimentações urbanísticas – gastos para manutenção do aparelho de Estado aqui insta¬lado, bem como para a manutenção dos privilégios e “gastança” geral da nobreza – foram feitas à custa de uma brutal elevação dos impostos que incidiam principalmente sobre as regiões produtoras, notadamente sobre o nordeste brasileiro, então responsável ainda por boa parte da produção agrícola. A sanha empreendedora e modernizadora do príncipe encon¬trou inicialmente forte resistência da elite pernam¬bucana que, em 1817, deflagrou uma insurreição ar¬mada, sufocada a ferro e fogo.

O próprio estatuto político do Brasil passaria por intensa modificação por iniciativa do próprio D. João VI, a partir da sua elevação à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves (1815) como forma de legitimar sua permanência por aqui perante as determinações reacionárias do Congresso de Viena, que após a derro¬ta francesa estipulou a reto¬mada das monarquias em todos os países da Europa.

Se no tocante ao comércio brasileiro o fim do antigo Pacto Colonial era uma re¬alidade que se consolidava pelos decretos e acordos comerciais iniciados em 1808 – com a consolidação dos interesses econômicos da elite econômica e social desvinculadas do comércio estritamente de origem lu¬sitano – ganhava agora o Brasil ares de nação efetiva. Nação elitista, concentrado¬ra de renda, escravocrata.

O retorno

A derrota de Napoleão e o fim do império francês em 1815 causaram de imediato um furor na nobre¬za absolutista européia. Pareciam ter chegado ao fim as experiências democratizantes e populares inicia¬das pela Revolução Francesa que havia conduzido a burguesia ao centro do poder político. A retomada da iniciativa política tanto das nações absolutistas como da própria nobreza francesa criou um clima semelhante ao do “Fim da História” nos anos 90 do século XX pós-queda da URSS.

Contraditoriamente, os ventos do liberalismo chegaram a Portugal. Su¬focada pela ocupação francesa (cujas tropas foram expulsas em 1809) e pela luta que se seguiu contra tal ocupação e pelo fim do monopólio sobre o comér¬cio com o Brasil, a burguesia lusitana passou a exigir com força o retorno da Família Real bem como a re¬composição do seu controle sobre a antiga colônia.

Em 1820, esgotado o diálogo com D. João VI que por aqui insistia em permanecer, eclode a Revolução do Porto, de caráter antiabsolutista, proclamando o estabelecimento de uma monarquia constitucio¬nal, através da composição de um parlamento, e em perspectiva apontava para uma provável extinção da própria monarquia como regime. Diante disto, D. João VI, sem ter mais co¬mo prolongar por aqui sua estada e tendo diante de si o eminente risco de per¬der a coroa em Portugal, deixa o Brasil em abril de 1821 mantendo aqui um mínimo aparato de Esta¬do além de seu filho Pedro I na condição de Príncipe Regente. Sua partida e as movimentações intensas dos deputados portugue¬ses, legítimos representan¬tes das aspirações recoloni¬zadoras da burguesia lusa, consolidaram na elite bra¬sileira a convicção de que o único caminho a ser seguido era a efetivação da independência. E esse movimento ganhou consistência muito rapidamen¬te, efetivando-se no rompimento político habilmen¬te manejado por figuras de proa da política brasileira à época, liderados pela família Andrada, com José Bonifácio à frente, tendo como instrumento do rom¬pimento o próprio príncipe português Pedro I.

Altair Freitas é professor de história, Secretário Exe¬cutivo da Escola Nacional de Formação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Secretário de Forma¬ção do Comitê Municipal do PCdoB/SP

Bibliografia
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MOURA, Carneiro. O século XIX em Portugal. Lisboa: Tipografia Palhares, 1901.
LIMA, Heitor Ferreira. História Político-Econômica e Industrial do Brasil, Cia. Editora Nacional, 1970.
PINTO, Virgilio Nova. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. Cia. Editora Nacional, 2ª ed., 1979.

EDIÇÃO 94, FEV/MAR, 2008, PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48