De 1964 até hoje o Brasil passou por duas grandes reformas tributárias: a de 1965-67 e a de 1988. A primeira foi implantada pelo governo militar, a segunda pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988, que deu forma ao regime político vigente. Esta reforma promoveu maior centralização dos recursos nas mãos do governo central, para solucionar o problema do déficit fiscal e dotar a estrutura tributária dos meios necessários para apoiar e estimular o crescimento econômico.

A segunda ampliou a autonomia dos estados e municípios, por meio da descentralização dos recursos tributários, e contemplou a seguridade social e a educação com garantia de disponibilidade de recursos no nível federal.

No que se refere à sistemática de arrecadação, a reforma de 1965-67 priorizou a tributação sobre o valor agregado em prejuízo dos tributos “em cascata”, com efeitos cumulativos. A reforma de 1988 não alterou a sistemática de arrecadação, mas a redução dos recursos disponíveis para União, sem que houvesse uma redução proporcional nos encargos, trouxe de volta os impostos cumulativos, na forma de contribuições sociais, piorando a qualidade do sistema tributário.

Em meados de 2003, no início do seu primeiro mandato, o presidente Lula enviou ao Congresso uma proposta de reforma tributária. A proposta original foi desmembrada e parte dela aprovada.
Entre as medidas aprovadas destacam-se a Emenda Constitucional n. 42, de dezembro de 2003, que dividiu a arrecadação da CIDE – contribuição cobrada sobre a importação e comercialização de petróleo e seus derivados, gás e álcool etílico – com estados e municípios; a criação do Simples Nacional, regime tributário simplificado para pequenas empresas; o Estatuto da Pequena e Micro Empresa, que elevou os limites de faturamento para o enquadramento das empresas nessa categoria e reduziu a carga tributária e a burocracia para a arrecadação de impostos; a mudança na sistemática de arrecadação das contribuições sociais (Cofins e PIS/Pasep), as quais foram transformadas de tributos “em cascata” em tributos sobre o valor adicionado. Além disso, a chamada Medida Provisória n. 252, conhecida como “MP do Bem”, reduziu a carga de impostos sobre a construção civil e a venda de computadores.

Foram mudanças importantes. Não lograram, contudo, eliminar as principais distorções do sistema tributário nacional. A carga tributária global, ao invés de diminuir, aumentou. Entre 2003 e 2007, o total de impostos arrecadados nos três níveis de governo (União, estados e municípios) subiu de pouco mais de 31% do PIB para cerca de 36% do PIB. Além disso, distorções importantes existentes no sistema, relacionadas com a complexidade, a burocracia e a sistemática de cobrança de impostos, geram a guerra fiscal entre os estados e oneram as exportações e os investimentos produtivos, continuam pendentes.

Com a derrota da proposta do governo de prorrogar até 2011 a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), que se extinguiria em 31 de dezembro de 2007, a questão da reforma ganhou novo alento. Face à perda anual de arrecadação de aproximadamente R$ 40 bilhões, cujo destino era, basicamente, o financiamento da seguridade social, governo e oposição concordaram em retomar a discussão do tema em 2008, a partir de nova proposta a ser enviada ao Congresso.

A reforma tributária vai se transformando assim numa espécie de trabalho de Sísifo 1, o qual governo, Congresso e sociedade estão condenados a realizar eternamente sem que se chegue nunca a um resultado final. Pensamos, entretanto, que mais do que um desafio em si mesmo, essa discussão sem fim é o reflexo de um problema muito mais profundo da sociedade brasileira, que é a distribuição da renda. Discutir o sistema tributário é discutir, antes de tudo, como a renda do país é dividida. É ilusória, portanto, a idéia de um sistema tributário “perfeito”. Este sempre refletirá a correlação de forças existente na sociedade. Sempre que essa correlação mudar é inevitável que surjam demandas de novas “reformas tributárias”. Não há como existir um sistema tributário neutro numa sociedade tão desigual e desequilibrada como a brasileira.

Reforma tributária, problema técnico ou questão política?

Impostos, o nome já diz tudo. Se assim não fossem, espontaneamente, dificilmente alguém os pagaria. Muito sangue já se derramou por sua causa. Na história, muitos reis perderam a coroa – alguns a cabeça – e muitos reinos se acabaram por cobrá-los de mais (ou de menos). Nada que se compare, con¬tudo, às cabeças de súditos que se desligaram dos respectivos pescoços por resistir ao pagamento. Hoje os métodos a que se recorre para cobrá-los são me¬nos drásticos, mas nem por isso menos eficazes.

Há países, como os Estados Unidos, onde sone¬gar impostos resulta amiúde em cadeia; em outros, como na China, as conseqüências podem ser piores. A cobrança de impostos criou até a figura exótica do exilado tributário. São pessoas que decidem dei¬xar seu país e residir no estrangeiro, onde os im¬postos pessoais são mais baixos ou eventualmente nulos. Entre os “exilados tributários” famosos, te¬mos Sean Connery e Shakira vivendo nas Bahamas; David Coulthard, Jenson Button, Roger Moore, Ringo Starr e Ken Bates no Marrocos; Michael Schu¬macher, Kimi Raikkonen, Fernando Alonso, Lewis Hamilton, Phil Collins, Bo¬ris Becher e Tina Turner que vivem na Suíça.

Aceitar o pagamento de impostos como um dever moral e cívico é coisa recen¬te na história humana. Es¬tá associado ao advento da democracia. A cobrança se legitima por meio da aprovação dos mecanismos de representação coletiva. O advento do Estado nacio¬nal, onde a sorte do indivíduo e da nação encontram um denominador comum, transformou o pagamen¬to dos impostos em dever cívico, contribuição para a preservação coletiva. Na medida em que se perce¬be uma proporcionalidade entre a renúncia ao con¬sumo ou à poupança que o pagamento do imposto acarreta e o retorno na forma de bens e serviços de uso comum, a resistência ao seu pagamento tende a diminuir.

Quando se discute sistema tributário está se dis¬cutindo, em última instância, como a renda do país é dividida. Por isso, a resistência ao seu pagamento é inversamente proporcional ao grau de desigualda¬de existente na sociedade. Quanto menos concen¬trada a renda, quanto mais universais os tributos, maior será a base de tributação e menor o seu peso relativo, bem como a disputa pela sua apropriação. No sentido oposto, quanto mais concentrada a ren¬da, quanto mais deformado o sistema tributário, mais concentrado tenderá a ser o peso dos impostos e maior o conflito distributivo.

Os impostos na história

Desde que a sociedade humana organizou-se em classes sociais e estabeleceu a divisão social do tra¬balho (e mais tarde a divisão técnica do trabalho), seu sustento material passou a depender, diretamen¬te, daquela parcela dedicada ao trabalho produtivo. Aqueles que por privilégios (o clero, a nobreza) ou por praticarem atividades de uso coletivo (os mili¬tares, os funcionários públicos) não se dedicavam à produção propriamente dita, não teriam como so¬breviver sem a transferência forçada de parcela da renda gerada pelo trabalho produtivo.

A transferência de renda realizou-se, ao longo da história, por diferentes mecanismos: o trabalho es¬cravo, a servidão, a pirataria, a exploração colonial e, finalmente, a extração da mais-valia do trabalho as¬salariado. Entretanto, mesmo em suas formas mais primitivas, como o trabalho escravo e a pirataria, a renda expropriada não se distribuía de forma automática entre os diversos segmentos das clas¬ses dirigentes. Desde o iní¬cio, portanto, a arrecadação de impostos – fossem reinos, impérios ou o moderno esta¬do nacional – constitui-se em elemento necessário para a subsistência do Estado.

Em se tratando, contu¬do, de uma transferência forçada de renda de um segmento social para outro, como já observamos aci¬ma, é natural que sempre tenha havido resistência. A forma mais direta de suplantá-la foi, por muito tempo, a força. Daí o Estado, desde seus primórdios, ter dotado os seus arrecadadores de impostos de me¬canismos de coerção necessários para realizar seu propósito.

Entretanto, nenhum Estado poderia sobreviver em permanente beligerância com seus súditos, pois extenuaria suas próprias forças em lutas internas, tornando-se presa fácil de outros Estados em busca da expansão do seu poder. Foi preciso, então, dotá-lo de uma autoridade moral, que chamaríamos moder¬namente hegemonia, de forma a convencer o povo de que o Estado realizava os desígnios não de si mes¬mo, mas de uma vontade maior – no caso, Deus – ou do interesse coletivo – no caso, o povo, a nação.

Na Antiguidade, bem como na Idade Média, co¬mo não havia se estabelecido o moderno conceito de Estado como representação do interesse coleti¬vo, procurava-se legitima-lo perante o povo, o único que pagava impostos já que o clero e a nobreza eram isentos, como manifestação da vontade de Deus na Terra. Como nos lembra Eloy de Mello do Prado em VIEIRA (1960),
“o rei, todo-poderoso, era o próprio Estado. Sua vontade, a lei; seu arbítrio, a liberdade; sua religião, a dos súditos. Para os católicos, a realeza era de direito divino; o rei, o representante da divindade. Bosseut, na França ensinava que ‘o trono do rei não era o trono de um homem, mas do próprio Deus’”.
Em todos os momentos em que esses mecanismos de legitimação falharam e o Estado viu-se incapaz de obter os recursos necessários à sua sobrevivência, as conseqüências foram trágicas.

Um dos primeiros episódios de que se tem notícia ocorreu na Palestina, no ano 926 a.C., relatado no Anti¬go Testamento, no Livro dos Reis. Naquele ano morreu o rei Salomão. No lugar do império de Salomão surgi¬ram dois reinos, o de Israel, ao Nor¬te, e o de Judá, ao Sul. O herdeiro do trono de Israel era Roboão. Segundo o Livro dos Reis, a população pe¬diu a Roboão que reduzisse os altos impostos cobrados por seu pai, o rei Salomão, e continuariam a servi-lo. Ele se negou. O pa¬ís entrou, então, numa longa sucessão de guerras que o levaram a dividir-se em dois reinos. Sem recursos para defenderem-se foram, posteriormente, destruídos.

O reino de Omar (634-644 d.C.) criou um “incen¬tivo fiscal” para a conversão dos povos conquistados ao islamismo. Maomé conquistou Meca, em 630. Em seguida, Abu Bakr, o primeiro califa, conquistou a Síria, o Iraque, as províncias do sul da Pérsia e do sul do Império Bizantino. Omar, seu sucessor, to¬mou Damasco, em 635, Jerusalém, em 637, e o Egito e a Pérsia, em 642. Dado o caráter de conquista e ocupação desse movimento, buscava-se a conversão ao Islã dos chamados “Povos do Livro”, como eram chamados os cristãos e judeus. E um engenhoso me¬canismo para estimular a conversão foi o da isenção tributária. Segundo Cunha (2002:4), os convertidos ficavam isentos do pagamento de um imposto per capita que era cobrado dos não convertidos. A medi¬da teve tanto sucesso que foi estendia aos seguidores de Zoroastro, na Pérsia, e foi mantida até o fim do Império Otomano.

Na China, o colapso da dinastia Ming, em 1644, também foi precipitado pela questão dos impostos. Conforme relata ARRIGHI (2007:326), apesar do grande influxo de prata decorrente do comércio com o Japão e, posteriormente, com a Europa, as difi¬culdades fiscais do império se agravaram devido às guerras com o Japão, em 1590, e com os Manchus, em 1610. As barreiras comerciais impostas pelo Ja¬pão, em 1630, combinado com o forte declínio do suprimento de prata da Europa nos 1630 e 1640, fo¬ram, segundo o autor, “a palha que quebrou as cos¬tas do camelo”. Com a elevação do preço da prata, o peso dos impostos sobre os camponeses aumentou, o que levou a sublevações por todo o império que culminaram com o colapso dos Ming em 1644.

Na Inglaterra dos Stuart (1603-1704) a questão dos impostos esteve no próprio nascedouro da demo¬cracia européia. Em 1628, o rei Carlos I, dissol¬veu o parlamento porque este ten¬tou bloquear deci¬são sua de coletar impostos sem a autorização parla¬mentar. Logo em seguida, a rebe¬lião dos presbite¬rianos escoceses, ocasionada pela tentativa de im¬por-lhes o livro de orações anglicano, obrigou o rei a convocar o parlamento: precisava de um exército e impostos para punir os rebeldes. O parlamento, en¬tretanto, negou-lhe um e outro, fato que precipitou as guerras civis que levaram à execução do rei em 30 de janeiro de 1649 e ao advento da ditadura militar de Oliver Cromwell. Quando se restaurou o poder dos Stuart após a “Revolução Gloriosa” (1688-1689), o rei William (de Orange) e a rainha Mary, neta de Charles I, tiveram que jurar obediência à “Bill of Ri¬ghts”, assegurando as principais liberdades civis, co¬mo o habeas corpus, e consolidando definitivamente a supremacia do parlamento sobre o rei.

Ainda no rol das revoltas relacionadas a impostos vale lembrar a “Revolta do Chá”, em Boston, no dia 16 de dezembro de 1773. Naquela data, os colonos da Nova Inglaterra, disfarçados de índios, jogaram ao mar um carregamento de chá da British East In¬dia Company, em protesto contra um ato do parla¬mento inglês, de abril de 1773, que havia criado um imposto sobre o chá exportado para as colônias ame¬ricanas. Este foi um dos episódios mais importantes no movimento que culminou com a declaração de independência em quatro de julho de 1776.

É interessante notar como a cobrança de impostos, enquanto forma de exploração colonial, esteve presen¬te nos eventos que culminaram com a Independência do Brasil, em 1822 e sua posterior consolidação. De todos eles, certamente, a Inconfidência Mineira foi o mais importante. Outros episódios de destaque, como a Guerra de Canudos e a Guerra dos Farrapos, estive¬ram relacionados com a questão tributária.

Mas retrocedamos um pouco. É dia 15 de feve¬reiro de 1641. Chega a Salvador uma caravela que traz a notícia da queda de Felipe III, último dos três reis da dinastia que unira Portugal à Espanha, entre 1580 e 1640. O duque de Bragança fora aclamado rei, como João IV; era a restauração da independên¬cia portuguesa. O vice-rei do Brasil era D. Jorge de Mascarenhas, o marquês de Montalvão. O vice-rei acolhe a notícia com entusiasmo e envia uma de¬legação de alto nível para Portugal com o propósi¬to de aderir ao novo rei e colocar a colônia sob sua autoridade. A comitiva é constituída por seu filho, D. Fernando Mascarenhas, e pelos dois jesuítas mais considerados; um deles é o padre Antonio Vieira.

Chegando a Portugal, Vieira logo desperta a aten¬ção do rei, por sua poderosa oratória; alguns sermões que profere em Lisboa lhe dão a fama de grande ora¬dor, da qual já desfrutava no Brasil. Em 1642, diante das enormes despesas da guerra, contra os espanhóis e os holandeses, D. João IV decide lançar novos im¬postos. O povo se revolta, posto que, sendo isentos o clero e a nobreza, todo o peso dos tributos recair-lhe-ia nos ombros. As classes populares exigem que a nobreza e o clero contribuam em igual proporção. Levanta-se enorme discussão. Lembra-se, então o rei, da poderosa oratória de Vieira e convida-o a proferir um sermão em que aborde a questão dos tributos.

É dia 14 de setembro de 1642. Estamos em Lis¬boa, na Igreja das Chagas. No púlpito, padre Antonio Vieira. Atendendo ao convite do rei, prega o Sermão de Santo Antonio das Chagas, onde desenvolve interes¬sante teoria a respeito dos tributos, antecipando con¬ceitos que viriam a se tornar universalmente aceitos apenas muitos séculos depois.

Recorrendo a episódios bíblicos como a da cria¬ção da mulher a partir de uma costela de Adão e de quando Cristo determina a São Pedro que fosse pescar e que na boca do primeiro peixe acharia uma moeda de prata com a qual deveria pagar o tributo a César, Vieira desenvolve brilhante argumentação para justificar o pagamento dos impostos e estabe¬lece princípios que ainda hoje orientam qualquer discussão sobre a reforma tributária, tais como o da moderação e da equidade.

Para justificar o princípio da moderação na co¬brança dos impostos, diz Vieira (1960:22):
“Foram ineficazes os tributos por violentos, sejam suaves e serão efetivos. (…) Tirou Deus uma costa de Adão para a fábrica de Eva: mas como lha tirou? (…) Fez Deus adormecer a Adão, e, assim, dormindo, lhe tirou a costa. Pois que razão dormindo, e não acordado? (…) A costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão, dormindo, e não acordado, para mostrar quão dificultosamente se tira aos homens, e com quanta suavidade se deve tirar ainda o que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependida não menos que a conservação e propagação do gênero humano; mas repugnam tanto os homens a deixar arrancar de si aquilo que se lhes tem convertido em carne e sangue, ainda que seja para bem de sua casa, e de seus filhos, que para isso traçou Deus tirar a costa de Adão, não acordado, senão dormindo: adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o sentimento. Com tanta suavidade como isto, se há de tirar aos homens o que é necessário para sua conversação. Se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja: mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam. Deus tirou a costa a Adão, mas ele não o viu, nem o sentiu; e se o soube foi por revelação. Assim aconteceu aos bens governados vassalos do imperador Teodorico, dos quais, por grande glória sua, dizia ele: (…)

Eu sei que há tributos, porque vejo as minhas rendas acrescentadas: vós não sabeis se os há, porque não sentis as vossas diminuídas. Razão é que por todas as vias se acuda à conservação [do Estado]; mas como somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo. Tão ásperos podem ser os remédios, que seja menos feia a morte, que a saúde. Que me importa a mim sarar do remédio, se hei de morrer do tormento?”.

Ainda para justificar o princípio da moderação na cobrança dos tributos, agora se referindo ao episódio do peixe prega Vieira:
“Pudera o Senhor dizer a Pedro, que fosse pescar, e que do preço do que pescasse, pagaria o tributo. Pois porque dispõe que se pague o tributo não do preço, senão da moeda que se achar na boca do peixe? Quis o senhor, que pagasse Pedro o tributo, e mais que lhe ficasse em casa o fruto do seu trabalho, que este é o suave modo de pagar tributos. Pague o tributo sim, mas seja com tal suavidade e com tão pouco dispêndio seu, que satisfazendo às obrigações de tributário, não perca os interesses de pescador. Coma o seu peixe como dantes comia, e mais pague o tributo que dantes não pagava. Por isso tira a moeda não do preço senão da boca do peixe: (…) Da boca do peixe se tirou o dinheiro do tributo; porque é bem que para o tributo se tire da boca. Mas esta diferença há entre os tributos suaves e os violentos; que os suaves tiram-se da boca do peixe; os violentos, da boca do pescador”.

Com relação ao princípio da equidade, nos diz Vieira:
“Queremos que os meios de conservação [do Estado] sejam suaves? Nom pro una gente, sed pro universo mundo. Não sejam os remédios particulares, sejam universais: não carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem sobre todos. (…) O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que se sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo todos o pagam, e ninguém se queixa; porque é tributo de todos. Se uns homens morreram e outros não, quem levará em paciência esta rigorosa pensão da mortalidade?Mas a mesma razão que a estende, a facilita; e porque não há privilegiados, não há queixosos: Imitem as resoluções políticas o governo natural do Criador: (…) Se amanhece o sol a todos aquenta; e se chove o céu, a todos molha”.

No Brasil, importantes episódios históricos tiveram relação com a questão tributária. A pesada cobrança de impostos pela Coroa portuguesa constitui-se na face mais evidente da exploração colonial. A revolta contra a chamada derrama, método violento de co¬brança usado pelos portugueses, constituiu-se em im¬portante base de apoio à Inconfidência Mineira.

A Guerra de Canudos, capítulo importante da luta social no Brasil, foi precipitada por questões tributárias. Logo depois de proclamada a Repúbli¬ca estabeleceu-se a autonomia dos municípios e as Câmaras locais afixaram editais para a cobrança de impostos. Como ninguém ousava cobrar os impos¬tos dos proprietários de terras, os impostos recaiam sobre as camadas mais pobres, que se revoltavam. Em Bom Conselho, no interior da Bahia, num dia de feira, Antônio Conselheiro reuniu a população e mandou arrancar e queimar os editais. A notícia chegou a Salvador, indignando as autoridades que resolveram tomar providências severas. Foi enviado um contingente policial, comandado pelo tenente Virgílio de Almeida, para capturar Antônio Conse¬lheiro e dissolver o seu bando. Em Masseté, trinta e cinco soldados atacaram seu grupo com o propósito de prendê-lo ou matá-lo. Apesar de bem armados foram derrotados e puseram-se em fuga: estava ini¬ciada a Guerra de Canudos.

A questão tributária também esteve presente na Guerra dos Farrapos. O conflito de interesses entre produtores de charque rio-grandenses, que exigiam a tributação da concorrên¬cia externa da Argentina e do Uruguai, e os compra¬dores de São Paulo, Minas e do Nordeste, que queriam o produto barato, para redu¬zir o custo da alimentação dos escravos empregados na mineração e na agricultura, ajudou a impulsionar o mo¬vimento rebelde.

A revolta do quebra-qui¬lo que varreu a Paraíba, Per¬nambuco e Alagoas nos idos de 1874 também foi alimen¬tada pela insatisfação contra a cobrança de impostos nas feiras livres do Nordeste. O império autorizara a substi¬tuição do sistema de medidas inglês pelo sistema mé¬trico decimal, mas na mudança as autoridades apro¬veitaram para arrecadar mais impostos e o que se viu foi a sublevação da população que saiu às ruas arre¬bentando quilos e pesos e tocando fogo nos cartórios.
O poeta alagoano Manoel Campina tornou cé¬lebre nos anos 50 do século passado a insatisfação popular contra os impostos em um livreto de cordel intitulado Discussão de um fiscal com uma fateira, no qual narra a resistência da vendedora de vísceras na feira (fateira) contra o arrecadador de impostos municipais.

Evolução do sistema tributário brasileiro

O atual sistema tributário brasileiro tem suas ori¬gens mais remotas na reforma tributária implemen¬tada no período 1965-67.

Os principais objetivos daquelas reformas, foram aumentar a capacidade de arrecadação do Estado visando solucionar o problema do déficit fiscal e dotar a estrutura tributária dos meios necessários para estimular o crescimento econômico. Conforme des¬tacam GIAMGIABI e ALÉM (2000:242), o principal aspecto modernizador daquela reforma foi a mudan¬ça da sistemática de arrecadação, priorizando a arre¬cadação sobre o valor agregado, em vez dos tributos em cascata, com efeitos cumulativos.

Muito embora as reformas dos anos 1960 pos¬sam ser consideradas o divisor de águas no mo¬derno sistema tributário brasileiro, anteriormente àquele período, particularmente, a partir dos anos 1930, importantes reformas foram realizadas, das quais certamente a mais importante foi a mudança das fontes de arrecadação de impostos do comércio externo para as atividades internas de produção e consumo.

País de economia fundamentalmente agrícola, voltado para o abastecimento de matérias-primas para os países industrializados, particularmente da Europa, o financiamento do Estado se dava desde o Império, e mesmo na República, até a Revolução de 1930, por meio da cobrança de impostos sobre o comércio exterior. O imposto sobre importação, em alguns momentos, chegou a representar 2/3 da recei¬ta total do setor público.

Com o início do processo de industrialização, a partir de 1930, e o conseqüente desenvolvimento do mercado interno, tal situação começou a modificar-se. Já na Constituição de 1934, passaram a predominar os impostos internos sobre produtos, o chamado im¬posto de vendas e consignações, o qual, no início da década de 1940, já era responsável por 30% das recei¬tas dos estados, ao mesmo tempo que a participação do imposto de importação caía para menos de 4%.

No plano federativo, a Constituição de 1946 trou¬xe, por sua vez, importantes modificações, dotando os municípios de maior capacidade de arrecadação (o imposto do selo municipal e o imposto de indús¬trias e profissões, ancestral do atual Imposto sobre Serviços – ISS). Além disso, institucionalizou um sistema de transferência de impostos, que modificou a distribuição de rendas entre as esferas de governo.

Como se observa desse breve relato, nunca houve no Brasil uma “revolução tributária”. Na verdade o sistema foi sofrendo sucessivas reformas, acompa¬nhando as mudanças que ocorriam em sua estrutura econômica. Se pudéssemos, contudo, falar em infle¬xões mais profundas caberia destacar duas. A mu¬dança, nos anos 1930, das bases de tributação sobre o comércio exterior para bases domésticas, acompa¬nhando o processo de desenvolvimento industrial sustentado e a conseqüente formação do mercado interno. E as mudanças introduzidas nos anos 1960, com a criação dos impostos sobre valor agregado e o maior nível de centralização do sistema tributário, necessário para sustentar um crescimento econômi¬co mais fortemente apoiado no Estado.

Em 1988, entretanto, a nova Constituição, refle¬tindo principalmente as mudanças políticas ocorri¬das no país – a redemocratização e o ressurgimento dos movimentos sociais – promoveu mudanças mais profundas no sistema tributário. Tais mudanças, contudo, afetaram mais a distribuição dos recursos do que propriamente os meios de arrecadação. Por não se ter considerado com igual ênfase os fins pre¬tendidos e os meios para alcançá-los, o resultado foi certo desequilíbrio do sistema. A tentativa de cor¬reção desse desequilíbrio, principalmente por parte da União, que de forma geral viu-se com mais obri¬gações e menos receitas, resultou na piora da qua¬lidade do sistema tributário. Tal piora ocorreu, por seu turno, tanto na distribuição do ônus tributário, quanto na sistemática de arrecadação dos tributos. A crescente participação dos impostos cumulativos na receita federal foi o aspecto mais conspícuo dessa deterioração na qualidade do sistema.

É preciso, contudo, antes de debitar na conta da Constituição de 1988 as atuais mazelas do sistema tributário brasileiro, distinguir, ab initio, o que fo¬ram conseqüências propriamente ditas da ênfase assistencial-redistributiva da nova Carta, do que fo¬ram, para dizer o mínimo, erros de política econô¬mica. A elevação, no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, das taxas de juros a níveis sem paralelo no mundo, provocou a explosão da dívida pública, a qual saltou de 28% do PIB, em 1995, para 52% do PIB, em 2003. Pelo menos metade do aumento da carga tributária entre 1988 e 2007 pode ser debita a isso. A respeito disso, Delfim Netto (2008) afirma:

“Enganam-se os que pensam que foram as políticas de redução de pobreza (que consome parcos recursos) ou as políticas que aumentam a igualdade de oportunidade (condição necessária para a sobrevivência da sociedade democrática) ou a generosa política assistencial-redistributiva estabelecida pela Constituição de 1988, as principais responsáveis pelo aumento da carga tributária. Tudo isso somado à eliminação do financiamento inflacionário (até 1994) talvez tivesse exigido um aumento de carga tributária de 24% para 28% ou 30% do PIB [ao invés dos atuais 36%] para garantir o equilíbrio fiscal definitivo. Essa seria uma carga aceitável para um país pobre mas com sensibilidade social”.

Voltando, entretanto, ao sistema tributário atual, é inegável que além do crescimento acentuado da car¬ga tributária total, o mesmo padece de deficiências graves cuja solução exige decisões políticas. Sua cor¬reção envolve escolhas com impactos na distribuição da renda tanto na dimensão de classe (capital x tra¬balho), quanto nas dimensões política (público x pri¬vado), institucional (União x estados x municípios) e federativa (distribuição regional dos recursos). São soluções de elevada complexidade que, pelo menos no curto prazo, não têm como atender às expectativas de todos os envolvidos.

Daí a impossibilidade de se aprovar no Congresso qualquer proposta de refor¬ma tributária sem demora¬das negociações, a menos que se fique apenas em generalidades ou, então, se impeça alguma das partes envolvidas de sentar-se à mesa. A propósito, é sinto¬mático que a grande última reforma tributária no Brasil (1965-67) tenha ocorrido sob um regime político au¬toritário. Se as reformas de 1988 não enfrentaram gran¬des obstáculos foi por duas razões. Primeiro, o clima político então reinante no país, que se reconstruía nos planos político e insti¬tucional, depois de mais de 20 anos de regime mili¬tar, assim o permitia. Segundo, a preocupação maior era de se estabelecer um novo pacto distributivo da renda arrecadada, e não propriamente de reformar a estrutura de arrecadação.

As reflexões acima nos levam a concluir que atri¬buir as dificuldades de se avançar na reforma tribu¬tária à “falta de vontade política do Executivo”, ou à “falta de empenho do Legislativo” é uma meia ver¬dade. O fato de esse tema estar permanentemente na agenda do Congresso demonstra que o que não falta é vontade política de abordá-lo. A questão é que todos pretendem com a reforma ficar numa situação melhor que anteriormente a ela. Na medida em que as discussões avançam e se revela impossível, pelo menos no curto prazo, satisfazer as expectativas de todos, aqueles segmentos potencialmente perdedo¬res tentam travá-las.

Não foi por outro motivo que a votação da pro¬posta de reforma de tributária enviada pelo governo Lula ao Congresso em 2003, apesar de alguns avan¬ços, até hoje não foi concluída.

Outra perspectiva

Dever-se-ia, a nosso ver, abordar essa questão a partir de uma perspectiva diferente. Ao invés de se pensar a reforma tributária como um evento único que se faz de uma vez por todas, mais correto seria abordá-la como um processo permanente de aperfei¬çoamento do sistema, de acordo com a evolução da conjuntura política e econômica, nacional e interna¬cional. De posse de uma espécie de “mapa do cami¬nho” ou “plano diretor” previamente aprovado, que indicasse os pontos críticos do sistema e os objetivos a alcançar, governo e Con¬gresso deveriam, conforme a conjuntura econômica e política o permitissem ou exigissem, avançar, passo a passo, na construção de um sistema que refletisse a von¬tade da sociedade expressa naquele plano.

Com o propósito de contribuir para traçar esse “mapa do caminho” ire¬mos, no que resta deste tra¬balho, apontar os principais impasses do atual sistema tributário brasileiro assim como os princípios gerais que, a nosso ver, deve¬riam orientar sua solução.

O sistema tributário brasileiro e seus principais dilemas

Os principais contornos do atual sistema tributá¬rio brasileiro foram estabelecidos pela Constituição de 1988, atualmente em vigor, conforme se verifica na tabela 1 (página 58).

Principais dilemas do sistema tributário brasileiro

Os principais dilemas do sistema tributário bra¬sileiro estão relacionados a três questões: o nível agregado de taxação (a chamada carga tributária), a equidade do sistema (seu efeito distributivo) e a qualidade do sistema tributário, que tanto afeta a eqüidade do sistema quanto a competitividade da economia.

Carga tributária

A carga tributária, por si mesma, não deveria ser considerada um problema. Resulta de decisão polí¬tica da sociedade quanto ao maior ou menor papel que se queira atribuir ao Estado ou ao mercado no funcionamento e reprodução do sistema. Depende, ainda, de como se queira distribuir a renda entre capital e trabalho, entre as diversas camadas sociais e regiões do país. Como se vê na tabela 2, há países com grau semelhante de desenvolvimento e qualidade de vida e cargas tributárias muito diferentes. Na Suécia e na Dinamarca, a carga tributária gira em torno de 50% do PIB; nos Estados Unidos e Japão é próxima de 25%.

No Brasil, entretanto, há um sentimento generalizado de que a carga tributária é muito alta. Há diversos motivos para isso. Primeiro, no Brasil a carga tributária é sensivelmente maior do que em países com grau de desenvolvimento semelhante ao nosso. Os países da América Latina têm, em média, carga tributária de 24% a 25% do PIB. Os países em desenvolvimento, que são os principais concorrentes do Brasil, têm uma carga tributária em torno de 27%. A China, concorrente do Brasil em diversos mercados, tem uma carga tributária que se estima em 20%. No Brasil estamos com 36%. Conforme estudo realizado por empresários que participam do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão de assessoramento do presidente da República, as empresas brasileiras recolhem 34,5% de seu faturamento em impostos.

Segundo, porque além de alta para os padrões internacionais, a carga tributária brasileira tem aumentado proporcionalmente mais rápido que a renda. A tabela 3 mostra que nos últimos 19 anos o Produto Interno Bruto do Brasil cresceu a uma taxa anual de 2,5%. No mesmo período o PIB per capita cresceu apenas 0,9% ao ano. Entretanto, a carga tributária per capita aumentou 3,3% ao ano. Terceiro, porque esse aumento não tem sido neu tro. Afeta desproporcionalmente os setores sociais e as atividades econômicas com menor capacidade de defender-se do aumento dos impostos ou de repas sá-los para os custos dos bens e serviços. Exemplo típico é a chamada “cunha fi scal”, por meio da qual os bancos repassam para o custo dos empréstimos todos os impostos que o governo supostamente co bra do setor fi nanceiro. Quarto, porque esse aumento tem se dado à custa da qualidade do sistema tributário, como evidencia a participação crescente de impostos sobre a produção e o consumo, ao invés de impostos sobre a renda e a propriedade, e de impostos cumulativos, ao invés de impostos sobre o valor agregado. Conforme se verifi ca na tabela 4 e no gráfi co 1, a principal base de incidência dos impostos no Brasil é o sobre o consumo, que responde por cerca de 50% do total arrecadado. A renda e a propriedade res pondem por cerca de 27% e 3% respectivamente. Os impostos sobre consumo pesam relativamente mais sobre os pobres, que gastam uma proporção maior de seus rendimentos na compra de bens necessá rios à subsistência. Já os impostos sobre a renda e a propriedade, que incidem proporcionalmente mais sobre os mais ricos, respondem por apenas 30% do total arrecadado.

Equidade do sistema tributário

Um sistema tributário pode ser progressivo, proporcional ou regressivo. O sistema é progressi vo quando os mais ricos pagam proporcionalmente mais impostos que os mais pobres. É proporcional quando todos pagam proporcionalmente a mesma coisa. É regressivo quando os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos. Con siderando-se ser justo os ricos pagarem proporcio nalmente mais impostos que os pobres, um sistema progressivo é mais justo do que um sistema propor cional que, por sua vez, é mais justo que um sistema regressivo. A justiça tributária, por sua vez, não depende ape¬nas das alíquotas dos impostos, mas também da sua base de incidência, ou seja, do que será tributado. Três coisas podem ser tributadas: a propriedade, a renda e o consumo.

Um sistema tributário que tributa mais a propriedade e a renda do que o consumo tende, te¬oricamente, a ser mais progressivo, pois os ricos têm mais propriedades e renda do que os pobres. Já um sistema tributário que tributa mais o consumo tende a ser regressivo, pois enquanto os pobres geralmente gastam grande parte de sua renda no consumo, os ri¬cos gastam uma parcela menor, acumulando o exce¬dente na forma de propriedade ou poupança.

O imposto sobre a propriedade e a renda é cha¬mado de imposto direto, pois incide diretamente sobre a renda bruta do contribuinte. Já o imposto sobre o consumo é um imposto indireto, pois é inclu¬ído no preço dos bens e serviços que a pessoa adqui¬re. Quem recolhe o imposto do consumidor final não é o governo, mas quem vende o bem ou o serviço, que deve repassá-lo ao fisco. Daí por que o governo incentiva os consumidores a pedir nota fiscal em to¬das suas compras; é a única forma de o governo con¬trolar a parcela que o comerciante deve repassar-lhe de cada venda efetuada e, assim, evitar a sonegação. Em alguns países não pedir a nota fiscal é crime, da mesma forma que não dá-la.

Se considerarmos, como se vê na tabela 4 e no gráfico 1, que no Brasil os impostos sobre a renda e a propriedade respondem por apenas 30% da arreca¬dação total e o consumo por mais de 50%, não resta dúvida sobre o caráter regressivo do sistema.

É possível, entretanto, abrandar o caráter regres¬sivo dos impostos indiretos. Por exemplo, estabele¬cendo alíquotas diferentes para os produtos conforme sua essencialidade. No Brasil, o principal imposto so¬bre o consumo é o ICMS, cobrado pelos estados. De forma geral, as mercadorias essenciais têm alíquota menor. Já produtos considerados supérfluos, como um carro de luxo ou bebidas alcoólicas pagam alíquo¬tas acima da taxa padrão que é de 18%. No estado de São Paulo, até janeiro de 2007, diversos produtos que compunham a cesta básica ou eram bastante consu¬midos – como arroz, farinha de mandioca, feijão, pão francês, ovo, lingüiça, mortadela, salsicha e vinagre – pagavam 7% de ICMS. A partir daquela data tive¬ram suas alíquotas majoradas para 18%.

Estabelecer alíquota zero para alimentos tornaria o sistema tributário mais progressivo, mas resultaria em grandes perdas de arrecadação, dado o peso desses im¬postos na arrecadação total. Cerca de ¼ da tributação indireta no Brasil incide sobre alimentação. Exigiria, por outro lado, elevar muito o imposto sobre o consu¬mo de outros itens, afetando negativamente a renda e o emprego das pessoas naqueles setores. Além disso, os estados mais pobres, cuja arrecadação depende mais da venda de alimentos, seriam ainda mais prejudicados.

Para tornar o sistema tributário mais justo a re¬forma tributária deveria, portanto, aumentar a parti¬cipação dos impostos sobre a renda e a propriedade e diminuir os impostos sobre o consumo e a produção. Corrigir esse tipo de distorção, entretanto, não é tare¬fa simples. A opção por impostos indiretos se faz tam¬bém por razões de ordem prática. Primeiro, porque são impostos considerados de alta produtividade, ou seja, têm elevada capacidade de arrecadação e baixo custo de fiscalização, principalmente quando se utiliza o me¬canismo de substituição tributária. Esse mecanismo permite concentrar nas primeiras etapas da produção – normalmente na própria indústria – toda cobrança que se daria ao longo da cadeia produtiva, até a che¬gada do produto no varejo. Isso facilita a fiscalização e elimina boa parte da sonegação que em determinados setores muito pulverizados é bastante elevada.

Um segundo fator que favorece os impostos indi¬retos é a menor resistência ao seu pagamento, pois o imposto vai embutido no preço da mercadoria. Im¬postos que exigem cálculos por parte do contribuinte são mais difíceis de serem cobrados e aumentados do que aqueles impostos menos transparentes. Um aumento de impostos que exigem cálculos do con¬tribuinte, como o imposto de renda de pessoa física, será imediatamente percebido como uma subtração direta de sua renda e gerará resistência imediata. Já o aumento de um imposto indireto, embutido no preço da mercadoria, por não exigir cálculos do contribuinte, gera menor resistência. Voltemos ao exemplo citado acima do aumento do ICMS de 7% para 18% para os produtos da cesta básica no Estado de São Paulo no início de 2007. A questão mereceu algumas notas no noticiário econômico dos jornais e não se falou mais no assunto. Já se a prefeitura de São Paulo resolvesse aumentar o IPTU – um imposto direto – dos moradores da periferia o efeito econô¬mico seria o mesmo, mas a resistência e as críticas seriam muito maiores. Há que se considerar, ainda, que um aumento de imposto indireto, pode não ser imediatamente repassado para o preço final do pro¬duto.

Se o setor econômico onde ocorreu o aumento for muito competitivo, há a possibilidade de parte do aumento ser absorvida pela indústria, pelo atacado ou pelo varejo, por meio da redução na margem de lucro, não afetando diretamente o consumidor.

O aumento das alíquotas marginais do imposto de renda, por seu turno, embora correto do ponto de vista da justiça fiscal, pode ser pouco efetivo, ca¬so não se tenha uma administração fazendária com os meios necessários para exercer a fiscalização da arrecadação de impostos cujo controle é mais difícil. Além disso, as pessoas situadas nos estratos mais elevados de renda são aquelas que, normalmente, têm mais recursos para subtrair-se ao pagamento dos impostos, por meio das técnicas de “planejamen¬to tributário”. Desse modo, a elevação das alíquotas marginais, sem os meios necessários de controle, po¬de resultar em menos ao invés de mais arrecadação. Como se verifica na tabela 5, a maior alíquota mar¬ginal do imposto de renda pessoa física no Brasil é 27,5% e a parcela arrecadada pelo imposto de renda pessoa física responde por apenas 36% do total do imposto de renda arrecadado. Nos Estados Unidos, a maior alíquota é de 40% e o imposto de renda pessoa física responde por 82% do total do imposto de renda arrecadado. A diferença, entretanto, é que nos Esta¬dos Unidos, ao contrário do Brasil, a administração fazendária dispõe de meios mais eficazes de contro¬le, inclusive uma legislação mais rigorosa.

Qualidade do sistema tributário

O sistema tributário brasileiro, além dos proble¬mas já mencionados, padece de outras deformações que comprometem a competitividade das empresas e da economia como um todo. Dentre elas se des¬tacam a complexidade do sistema e as incidências cumulativas.

As mudanças introduzidas pela Constituição de 1988 – ao aumentarem as transferências da União para estados e municípios, ao vincularem parte da receita União com os gastos em educação e segu¬ridade social, ao universalizarem o atendimento à saúde por meio o Sistema Único de Saúde (SUS) e ao ampliarem a cobertura do sistema previdenciário a praticamente toda população com idade superior a 65 anos sem dotar a União dos meios necessários – criaram um desequilíbrio no orçamento federal.

Esse desequilíbrio foi amplificado com a política macroeconômica adotada a partir de 1994, no primei¬ro governo Fernando Henrique Cardoso. Baseada na elevação dos juros aumentou a dívida pública de 28% do PIB, em 1995, para 52% do PIB, em 2003. Graças à manutenção de elevados superávits primários e à pequena queda nas taxas de juros, a proporção entre dívida pública e PIB tem caído. Em 2007 alcançou 42,8% do PIB. O valor absoluto da dívida líquida do setor público, entretanto, só tem aumentado. Ao fi¬nal de 2007, o saldo era de R$ 1,15 trilhão de reais, o que resultou em um gasto com juros de R$ 159,5 bilhões, o que equivale a cerca de 6% do PIB.

Tanto o aumento das transferências aos estados e municípios e dos gastos sociais quanto a eleva¬ção da dívida pública exigiram a elevação da arre¬cadação do governo federal e, em conseqüência, da carga tributária. Como se observa na tabela 6, o au¬mento de arrecadação ocorreu, basicamente, pelo aumento da participação das contribuições sociais na arrecadação total. A opção pelas contribuições e não pelos impostos, como veremos a seguir, se deu por motivos de ordem prática.

A Constituição de 1988 aumentou os percentuais de repasse do IPI e do IR para o Fundo de Participa¬ção Estadual (FPE) e o Fundo de Participação Mu¬nicipal (FPM). A participação desses fundos na arre¬cadação federal desses impostos era da ordem de 9% em 1979/80. A Emenda Constitucional 23 de 1983, elevou a participação para 12,5% e 13,5% respectiva¬mente. Com a Constituição de 1988, essa participa¬ção subiu para 21,5% e 22,5%, respectivamente.

Como qualquer aumento nesses impostos se¬ria automaticamente partilhado pela União com os estados e municípios, a solução foi recorrer às con¬tribuições sociais, que não precisam ser repartidas. Desse modo, foram criadas ou aumentadas diversas contribuições, como a CPMF, PIS, Cofins (antigo Finsocial) e Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). Como se verifica na tabela 6 (página 62), a participação dessas contribuições na receita da União aumentou de forma expressiva desde o início dos anos 1990. A Cofins é hoje, depois do imposto de renda, a principal fonte de arrecadação da União.

O problema das contribuições, exceto a Cofins, a partir de 2005 transformada num tributo sobre o valor agregado, é que são tributos cumulativos ou “em cascata”. Tal fato tem um efeito perverso sobre a competitividade da produção nacional, tanto nas exportações quanto na competição com os produtos importados. Esse efeito negativo sobre a competitivi¬dade ocorre porque hoje é universalmente aceito que as exportações não devem ser tributadas na origem, uma vez que o serão nos países de destino. Caso se tribute as exportações, os produtos serão tributados duplamente, tornando-se, assim, menos competiti¬vos nos mercados externos. Como os impostos cumu¬lativos não têm como ser compensados, acabam in¬cluídos no preço final das mercadorias exportadas; desse modo, junto com as mercadorias, exportam-se também os impostos.

O Imposto sobre Circu¬lação de Mercadorias e Ser¬viços (ICMS), por ser um imposto sobre valor agre¬gado, não padece do pro¬blema acima mencionado. Entretanto, sua sistemática de cobrança afeta a compe¬titividade das exportações, além de agravar os desequi¬líbrios regionais existentes no país.

O ICMS é um imposto sobre valor agregado es¬tadual. É cobrado na origem, ou seja, no local onde a mercadoria é produzida, e não no destino, ou se¬ja, o local onde a mercadoria é consumida. O fato de ser um imposto estadual já trás um problema: a complexidade. Cada estado tem seu próprio regula¬mento para o ICMS, que freqüentemente é alterado. Além disso, um mesmo produto pode ter alíquotas diferentes em cada estado. Isso faz com que as em¬presas precisem conviver com um verdadeiro cipoal de normas e tarifas, gerando elevadas despesas na sua administração tributária e, conseqüentemente no seu custo de produção. O fato de ser cobrado na origem gera, por sua vez, dois tipos de distorções: a guerra fiscal, que afeta as finanças dos estados, e o não pagamento dos crédi¬tos tributários gerados pe¬las exportações, que afeta a competitividade das expor¬tações.

A guerra fiscal é um ins¬trumento por meio do qual os estados disputam entre si a atração de empresas, oferecendo vantagens rela¬cionadas ao pagamento do ICMS. Vejamos um exemplo. Suponhamos que o estado de São Paulo cobre 19% de ICMS sobre um determina¬do produto.

Produzindo em São Paulo, a empresa deverá recolher para o fisco de São Paulo os 19% sobre o valor do produto, caso ele seja vendido no próprio estado. Caso seja vendido fora de São Paulo, serão recolhi¬dos 7% em São Paulo e os outros 12%, corresponden¬tes à alíquota interestadual, serão pagos no estado de destino do produto. Para atrair essa empresa para seu território, o que um estado pode fazer? Oferece para a empresa, caso ela se mude para lá, um finan¬ciamento em 20 anos sem juros nem correção para o pagamento da parcela do ICMS que deverá ser re¬colhida no estado. Na prática isso significa isentar a empresa do pagamento daquela parcela do imposto, pois daqui 20 anos esse valor estará totalmente de¬preciado. A empresa muda-se para o novo estado. Supondo que a alíquota do ICMS seja a mesma, o fato de sair de São Paulo para um estado conside¬rado mais pobre pelas normas atuais do tributo já inverte a alíquota interestadual 2. No exemplo em tela, a empresa deveria, então, recolher os 12% no estado para onde se mudou e pagar os restantes 7% no estado de destino do pro¬duto. Como, entretanto, o estado para onde a empresa se mudou ofereceu o finan¬ciamento para aquela par¬cela que seria paga em seu território, a empresa que, em São Paulo, deveria re¬colher 19% sobre o valor do produto pagará apenas 7%, embolsando a diferença. O problema com esse tipo de instrumento é que acaba se tornando um jogo de soma zero, pois todos os estados pas¬sam a oferecer as mesmas van¬tagens e tornam-se reféns das empresas que acabam fazendo um leilão para ver quem ofere¬ce mais vantagens. O resultado é a redução da arrecadação com efeitos negativos sobre a oferta dos serviços públicos.

Já o acúmulo de créditos tri¬butários ocorre porque a sistemá¬tica de cobrança na origem im¬pede que se isente do pagamento do ICMS a compra de insumos destinados à produção de bens finais para exportação que, teori¬camente, são isentos do imposto. Como as empresas vendem tanto para o mercado interno quanto para o mercado externo, não há como saber antecipa¬damente qual parcela de um determinado insumo se¬rá utilizada em produtos destinados à exportação. A solução é, ao final do processo de produção, gerar um crédito tributário para o exportador final do produto no montante dos impostos que ele pagou ao adquirir os insumos utilizados. O problema, entretanto, é que como o ICMS é um imposto estadual, esse crédito de¬ve ser pago pelo estado onde a exportação está sendo realizada. Ocorre, entretanto, que pela sistemática de cobrança na origem, os impostos sobre os insumos foram recolhidos no estado onde foram adquiridos, que nem sempre é o mesmo onde o produto final é produzido e exportado. Dessa forma, cria-se um pro¬blema insolúvel, pois um estado deverá devolver ao exportador um imposto que foi recolhido em outro estado. Obviamente ninguém (exceto o Estado de São Paulo, com condiciona¬lidades), está pagando esses créditos tributários gerados pelas exportações. Na práti¬ca, um imposto sobre valor adicionado, como o ICMS, acaba gerando as mesmas distorções que os impostos cumulativos.

É preciso considerar, fi¬nalmente, que a sistemática de cobrança do ICMS na ori¬gem atenta contra a própria justiça tributária. Isso ocorre porque no caso das opera¬ções interestaduais quem pa¬ga o imposto é o consumidor do estado onde a mercadoria está sendo vendida e quem recebe o benefício do imposto é o estado onde a mercadoria foi produzida. Como, normalmente, os produtos de maior valor são feitos nos esta¬dos mais ricos, o consumidor do estado mais pobre acaba por pagar o imposto para o estado mais rico. Para atenuar esse problema, nas operações interestaduais existe a chamada alíquota interestadual, já mencionada acima, de forma que parte do imposto fica no es¬tado de origem e parte vai para o estado de destino.

A única forma de eliminar essas distorções decorrentes da sistemática de cobrança do ICMS é estabelecer o princípio da cobrança no destino. Cobrando o ICMS no local de consumo da mercadoria se acaba com a guerra fis¬cal entre os estados, pois nenhum estado teria como utilizar a parcela cobrada na origem como moeda de barganha para atrair as empresas para seu território. Acaba também o problema do crédito tributário na exportação, pois como não foi pago antecipadamen¬te não tem por que ser devolvido.

Mas, com soe acontecer, falar é mais fácil que fazer. Na verdade, esse tem sido um dos principais entraves para a conclusão da reforma tributária en¬viada pelo governo ao Congresso em 2003. A primei¬ra dificuldade para aprovar esse tipo de medida está relacionada com o impacto redistributivo que vai ge¬rar. Os estados mais ricos, com elevada concentração da atividade industrial, que são “exportadores líqui¬dos” de mercadorias para os estados mais pobres, perderiam parcela importante da arrecadação atual do ICMS, que representa, em média, 80% da arreca¬dação estadual. Como resolver os problemas gerados por essa perda de receita no financiamento da edu¬cação, saúde, universidades, investimentos em in¬fra-estrutura, pagamento do funcionalismo etc.? A segunda dificuldade vem dos estados que entraram na guerra fiscal, pois desmonta todo o esquema e deixaria os estados que fizeram acordos formais com essas empresas numa situação difícil. Por isso, os es¬tados mais ativos no uso desse mecanismo da guerra fiscal nos últimos anos, mesmo que se beneficiassem no longo prazo com a mudança de sistemática, no curto prazo não teriam como honrar os compromis¬sos assumidos para atrair as empresas.

Conclusão

As questões acima destacadas, que proposita¬damente chamamos dilemas e não simplesmente distorções, exigem escolhas da sociedade. Tais es¬colhas são dilemas porque não são neutras. Como já afirmamos anteriormente, reforma tributária diz respeito, em última instância, a como a sociedade deseja repartir a renda gerada pelo trabalho entre os diversos segmentos que a compõem. Vivêssemos em sociedade igualitária, estaríamos frente a uma questão puramente administrativa. Como vivemos em uma sociedade desigual em suas mais diversas dimensões, estamos frente a um problema político, cuja solução nunca será definitiva. Aplica-se, neste caso, o conselho de Deng Xiaoping: “Atravessar o rio pisando nas pedras”.

Aldo Rebelo é jornalista, deputado federal (PCdoB/SP). Foi presidente da Câmara dos Deputados (2005/2007), ministro da Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da Repú¬blica (2004/2005), líder do governo da Câmara (2003/2004) e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (2002/2003)
Luís Antonio Paulino é doutor em economia pela Unicamp e mestre em Economia e Finanças Públicas pela FGV/SP. É professor de economia na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP/Marília. É membro do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP

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Notas
1 – Segundo a mitologia grega, Sífiso, filho do rei Éolo, da Tessália, e Enarete, era considerado o mais astuto dos mortais. Por ter enganado os deuses diversas vezes, quando morreu foi condenado a rolar com as mãos, por toda a eternidade, uma grande pedra de mármore até o cume de uma montanha; toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser considerada “Trabalho de Sísifo”
2 – Os estados que a legislação atual do ICMS considera mais ricos e que nas vendas interestaduais ficam com a menor parcela do imposto são MG, PR, RS, SC e SP. Todos os demais, ao realizarem um venda interestadual, ficam com a maior parcela do imposto

EDIÇÃO 94, FEV/MAR, 2008, PÁGINAS 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64