Último dia do mês de fevereiro de 1997. Cinco horas da manhã. O ônibus avança, decidido, pela Avenida Professor Francisco Morato, em direção a Pinheiros. Um aviso, escrito com esferográfica, estava fixado logo acima da cabeça do cobrador:

      A partir da zero hora do dia 28/02/97, as passagens terão novas tarifas, passando de R$1,50 para R$2,00.

      Nós, os passageiros, qual bois levados por uma comitiva cuiabana do tempo acasiano, apesar da desilusão, íamos todos aos poucos, passando pela catraca e pagando aquela tarifa exagerada, se comparada aos nossos salários, sem dizer ainda a preocupação advinda disso, uma vez que nenhum de nós tinha ganhado aumentos salariais, de nenhum tipo, há longo tempo.

      Cinco e meia. O ônibus avança devagar. Apesar de já estarmos há meia hora dentro do coletivo, ele não andou mais que oito quilômetros. Observo lá fora que uma chuva fina começava, ou uma garoa paulistana, como diriam alguns. O ônibus pára no ponto do Hospital Iguatemi. Descem dois, sobem três; coisa comum. O cidadão que aqui tomou nosso ônibus tira o lenço do bolso traseiro da calça e enxuga a cabeça molhada, os olhos e a face. Ao lado dele, uma senhora, portanto uma trouxa de roupas passadas, envolvidas em pano de algodão de alva brancura. O cidadão passa seu lenço à senhora que o acompanha; ela repete os gestos dele e devolve o lenço molhado. Ambos estão agora na passagem da catraca: o cidadão saca R$3,00 do bolso e diz ao cobrador:

      – Duas passagens!

      Diz isso enquanto a tal senhora que o acompanha dá um sorriso envergonhado e passa a catraca do coletivo. Ao que o cidadão tenta passar a catraca, o cobrador segura a mesma e diz com toda a autoridade que a função o distingue:

      – São R$ 4,00 !

      – R$4,00?,  retruca o cidadão. Seis como?

      – Leia a placa meu amigo, diz o cobrador. Ali está escrito que a partir da zero hora de hoje, duas passagens são R$4,00.

      – Escrito? Escrito, onde seu besta?

      – Não ofende não, diz o cobrador. Eu não tenho culpa que o senhor não saiba ler.

      – Tá me chamando de analfabeto, seu pai dégua? Tu é que é!

      – E por quê eu sou analfabeto?, pergunta o cobrador.

      – Pois tu num tá vendo que agora são cinco para as seis da manhã e ali está escrito que o aumento é a partir da zero hora?

      – Pois é!, retruca o cobrador. O senhor só é mesmo pobre de espírito, mas pelo menos sabe ler! É isso mesmo, ali está escrito que o aumento da tarifa é a partir da zero hora de HOJE!

      – E apois, cabra safado! Zero hora num é meia noite? Pois num falta quase dezoito horas para o aumento?

      Devo esclarecer que o cidadão não pagou a passagem com o aumento.

      Provavelmente o cobrador se cansou de argumentar em vão e resolveu manter-se quieto, para evitar brigas. Com certeza ele daria um jeito de cobrir aquela quebra de caixa.  Aquele casal continuou ali, próximo do cobrador e de mim, falando das coisas corriqueiras da vida, dos cobradores safados, do governo, da carestia e da ida até Osasco para entregar serviço e receber o devido pagamento.

      Seis da manhã. Depois de uma hora, o ônibus chega no ponto da paineira do Butantã. Descem quinze, não sobe ninguém. Lá fora ficou o cidadão com a senhora. Eles se encaminham para a Avenida Corifeu de Azevedo Marques, rua transversal à Avenida Francisco Morato. Param no primeiro ponto da Corifeu. Esperam o ônibus que os levará a Osasco. Ele, desempregado; ela, lava e passa roupa para fora. Ele vai junto para ninguém roubar o dinheiro que ela vai receber da patroa. Ela, ciente de que sem o dinheiro das roupas não terão comida na mesa.

      A vida segue assim, na periferia. Existe uma guerra não declarada entre a periferia e a cidade. Alguns, por preguiça, não se preocupam em se preparar para enfrentar a disputa por uma oportunidade de trabalho. Outros, por malandragem, tentam sobreviver no mundo das drogas; alguns poucos se perdem ou se viciam, outros jamais deixarão de ser honestos e continuarão lutando pela sobrevivência, bravamente.

      Porém a ignorância, mãe de todas as mazelas, vai deixando suas vítimas, como mostrado nessa foto da periferia..

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.