tributo ao Museu do Marajó

Eu me lembro da canoa doida, a noite fria
Credo cruz! Ave Maria…
O remo cansado, a mão adormecida
Três dias e três noites de viagem
Rio acima à procura da sina e de mim.

Eu me lembro do medo em segredo
A primeira noite do mundo
O labirinto e o breu escuro
Três dias e três noites a cabo de remo
Rio acima a desvendar o futuro.

Eu me lembro da menina pobrezinha
Seu cheiro de peixe-mulher, sua sina ribeirinha
Cardume de piranhas, a manha das distâncias
Romaria de canoas famintas ao Lago Arari
A rede rasgada mata-fome, sem saber
Pescador hereditário busca o de comer
Três dias e três noites rio acima em riba da maré.

Eu me lembro do sono e do erro de navegação
As visagens e assombrações
Mil e tontos estirões a bom remar
A ver o peixe estivar e bamburrar na canoa
Três dias e três noites ao inferno verde.

Eu me lembro de nuvens de muriçocas
Antropófagas insaciáveis, a chuva miúda
Encharcando a alma da gente, o limo da terra
A viagem para o tudo e o nada.

De repente a clarinada de um galo imaginário
Boiou do silêncio e da escuridão do lago encantado
Era a madrugada talvez
Daí em diante a manhã se fez
Sobre os telhados da vida adormecida
A garganta vermelha daquele dia em gestação
No bucho da Cobragrande
Repercutiu em mim como mil e um galos
A anunciar a chegada de um certo Giovanni Gallo
Que viria de longe resgatar o último dos últimos
Herdeiros da civilização Marajoara perdida:

Três dias e três noites presas na escura gaiola
Da memória que não quer dormir.

 
Belém, 27 de fevereiro de 2008