Ensaios da modernidade
O público brasileiro tem nova oportunidade de travar contato com a obra densa, luminosa e cheia de poesia do poeta inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822) com a nova publicação de Uma defesa da poesia e outros ensaios (Landmark, 2008). Na edição bilíngüe, o leitor terá oportunidade de conhecer, também em inglês, ensaios que certamente cumpriram papel importante no delineamento da estética e do conceito de subjetividade que guiariam escritores dos séculos 19 e 20.
Uma defesa da poesia e outros ensaios apresenta o espírito inquieto e minuciosamente especulativo de Shelley. O talento do jovem poeta (morto prematuramente em um naufrágio na Itália) exibe-se em textos que podem ser divididos em duas categorias abrangentes. A primeira delas compreende escritos cujo assunto central gira em torno de temas filosóficos, éticos e morais. Fazem parte desse conjunto os ensaios: “Sobre o amor”, “Sobre a vida”, “Sobre a existência de uma vida futura”, “Sobre as especulações da punição da morte”, “Sobre a moral” e “A necessidade do ateísmo”.
Neles, é possível encontrar um Shelley que combate com fervor no terreno das idéias, sem perder as rédeas da elaboração do estilo poético, que é cultivado com cuidado no discurso dos ensaios. Assim, defesa de idéias e poesia caminham juntas, mostrando a luz de uma mente capaz de captar a exigência de seu tempo. No texto sobre a pena de morte, por exemplo, é impressionante o modo com Shelley sublinha que a organização racional do mundo caminha juntamente com uma brutalidade surda, que faz o discurso em favor do bem aparecer com sua contraface de barbárie. É também marcante a voz de Shelley em “A necessidade do Ateísmo”, de 1811, que condensa as idéias que fizeram o poeta ser expulso da Universidade de Oxford. Diz ele a seco: “Deus é uma hipótese e, como tal, permanece na necessidade de prova: o ônus da prova permanece com os teístas”. Há ainda trechos de uma belo quase maneirista, que jogam com a delicadeza das metáforas e a torção de conceitos, como em “Sobre o amor”: “Tão logo este querer ou poder [o amor] está morto, o homem torna-se um sepulcro vivo de si mesmo, e o que nele ainda sobrevive torna-se mera casa daquilo que foi um dia.”
Outro grupo de textos de Uma defesa da poesia… é o que trata da poesia e das artes em geral. Aí se encaixam os ensaios “Sobre a literatura, as artes e os hábitos dos atenienses”, “Prefácio ao banquete de Platão” e o texto de maior fôlego, que dá título à publicação. Nesses textos, Percy Shelley mostra conhecimento profundo da arte na Antiguidade Clássica. “Uma defesa da poesia” é uma argumentação cuidadosa, apaixonada e bela. Shelley arma-se de palavras e retórica para mostrar a imbricação entre a arte e a comunidade grega e como essa imbricação foi cambiando nas eras seguintes, contribuindo de modo decisivo com o vetor civilizatório da evolução humana. Segundo ele, as tragédias gregas eram “como espelhos nos quais o espectador observa a si mesmo, sob um frágil disfarce de circunstância”. É por isso que para Shelley, como representação da grande arte, “um poema é a própria imagem da vida, expressa em sua verdade eterna”. Eis por que ela é necessária.
Os ensaios de Shelley trazem, entretanto, muito mais do que isso. Lendo-os com atenção é-nos concedido um mapa, ainda que difuso, das fronteiras que a arte e a subjetividade burguesa construíam para si mesmas no século 19. Trata-se do esforço de esquadrinhar, em tempo real, um contexto filosófico/social onde, como diria outro ilustre inglês, o crítico Terry Eagleton: “a arte ainda poderia falar do humano e do concreto, permitindo um descanso bem-vindo frente aos rigores alienantes dos outros discursos mais especializados, e oferecendo, no coração mesmo desta grande explosão e fragmentação dos saberes, um mundo residualmente comum”. Esses resíduos civilizadores da substância humana é que formam o delicado material de trabalho dos brilhantes ensaios de Shelley.