13 de Maio uma história mal cantada
É certo que a Campanha Abolicionista não foi obra exclusivamente dos trabalhadores escravizados, ou destes e dos negros libertos. Uniu estes a movimentos de trabalhadores livres, desde os jangadeiros cearenses até o jovem proletariado paulista; a estudantes, intelectuais e outras camadas esclarecidas das camadas médias; por fim, como acontece inevitavelmente em casos assim, cindiu as classes dominantes, atraindo ou neutralizando parte dela. Isto não é um defeito, mas um dos seus maiores méritos.
Pioneira das campanhas nacionais de massas
Foi a primeira vez em que o povo brasileiro funcionou como um povo capaz de produzir um movimento político-social articulado em todo o país, com uma infinidade de formas de luta – desde recitais de poesia até ações armadas e revoltas coletivas nas senzalas – visando a um objetivo comum. Os movimentos avançados anteriores foram fragmentados, com âmbito regional, e esta foi uma das causas de sua derrota.
Mais: a Campanha Abolicionista é a mãe de toda uma prole de campanhas nacionais de massas. Descendem dela, entre outras, a Aliança Liberal que desembocou na Revolução de 30, a Aliança Nacional-Libertadora de 1935, o movimento pelo envio da FEB para combater o nazismo, a Campanha do Petróleo é Nosso! nos anos 1940-50, a Campanha das Reformas de Base sob o governo Goulart (1961-1964), a Campanha da Anistia nos anos 1970, a Campanha das Diretas Já!, que assinou a sentença de morte da ditadura em 1984, ou a do Fora Collor, que levou ao impeachment de 1992.
Alguém com uma suficiente dose de parcialidade sectária sempre poderá encaixar cada uma delas na bitola de “farsas da elite” – e há quem o faça. No entanto, em um país que nunca viveu uma revolução social vitoriosa, elas é que marcaram alguns dos pontos altos da presença do povo na cena político-social, e algumas das suas maiores vitórias.
A criação das condições da Abolição
Passemos, porém, à análise concreta dos fatos da década de 1880. Neles reside, afinal, a chave para se chegar à real história do 13 de Maio.
O Brasil vivia, desde o fim do tráfico negreiro em 1850, a fase caracterizada por Clóvis Moura (Dialética Radical do Brasil Negro) como “escravismo tardio”. A população escravizada passara de 2,5 milhões em 1850 para 1,5 milhão no censo de 1872, concentrada nas três províncias negreiras cafeicultoras (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, que em 1842 representavam 54% do total). A área dinâmica da expansão cafeeira, o Oeste Novo de São Paulo, já empregava o colonato e outras relações de trabalho não escravista. Em 1887 os escravos eram 723 mil. Sua taxa de mortalidade era o triplo da dos brancos e a de natalidade, inferior: o escravismo colonial, que teve no “sistema brasileiro” o seu maior e mais típico exemplo, “gastava” (matava de trabalhar) um ser humano em dez a 15 anos; caso único, era um sistema de relações de trabalho que não permitia sequer a reprodução da sua classe trabalhadora; sem o tráfico, não tinha como repô-la.
No plano externo, o império britânico – depois de dominar o tráfico humano no século XVIII, fazendo dele uma lucrativa fonte de acumulação primitiva de capital – abolira o tráfico em 1807 e passara a pressionar pelo fim do trabalho escravo, por interesse na expansão de seu comércio, e embora a inglesa Saint John d’El Rey MiningCompany mantivesse 1.690 trabalhadores escravizados em sua mina de ouro de Morro Velho, Minas Gerais. A derrota do Sul escravocrata na guerra civil estadunidense em 1865 vibrara um duro golpe no sistema. Com a abolição da escravatura em Porto Rico (1873) e Cuba (1886), o Brasil se tornaria o único pais escravocrata do Ocidente.
Estavam dadas, portanto, as condições históricas para o fim do escravismo. Porém há uma grande distância entre criação das condições e sua efetivação. Os senhores de escravos, uma gorda fatia das classes dominantes do império, resistiam tenazmente.
O “Ventre Livre”, saída dos escravocratas
Em 1866 o imperador Pedro II recebeu um apelo da Junta Francesa de Emancipação, assinado por intelectuais da elite, para que pusesse fim à escravidão. Lisonjeado, mandou o ministro dos Estrangeiros responder que a abolição, “conseqüência necessária da abolição do tráfico, é uma questão de forma e oportunidade”. Datam do mesmo ano as primeiras cartas de alforria concedi¬das pelo paço imperial, a cativos que se alistam para a guerra do Paraguai. Na Fala do Trono seguinte o imperador toca, elipticamente, no “elemento servil”, sugerindo que, “respeitada a propriedade atual, e sem abalo profundo em nossa primeira indústria, a agricultura, sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação”. Dom Pedro II tem então 41 anos de idade e 25 de trono.
O tema do “elemento servil” só retorna em 1870 com a volta das tropas do Paraguai, influenciadas pelas idéias abolicionistas. O conservador visconde de Rio Branco, presidente do Conselho de ministros, que em 1867 o achava “inoportuno” e “perigoso”, em 1871 encaminha a chamada Lei do Ventre Livre, que alforria os filhos de escravas, mas os deixa sob a “tutela” dos seus senhores até os 21 anos.
Ainda assim 35 deputados e quatro senadores votaram contra a Lei do Ventre Livre. O gabinete de Rio Branco foi acusado de “governo comunista, governo de morticínio e de roubo”. Ao proferir seu voto, Sousa Carneiro opinou que o projeto não passava de “pretexto para a agitação, revolução e subversão social, aproveitado por anarquistas e gritadores das ruas”, favorecendo “passeatas incendiárias e demonstrações estrondosas”, oriundas de certa “associação comunista” (na verdade a Confederação Abolicionista).
Apesar desses protestos, em 1871 parecia que a “questão servil” seria “resolvida” no Brasil do mo¬do mais favorável aos escravocratas: a conta-gotas. Os nascidos depois da lei iriam se emancipando da “tutela”, a partir de agosto de 1891; e lá por meados do século XX a natureza se encarregaria de acabar com o último preto velho nascido antes do ventre livre e, portanto, escravizado (A mesma lei criou um “fundo estatal de emancipação”, mas este em 12 anos alforriou apenas 11 mil cativos, 0,7% do total). O imperador regozijava-se. A Inglaterra aplaudia.
A Campanha espatifou esse plano
A Campanha Abolicionista é que subverteu e espatifou esse plano, quando ele já estava em pleno andamento e parecia inevitável. Graças a ela, e não a nenhuma princesa ou potência estrangeira, o fim da escravidão no Brasil trilhou o caminho mais avançado e radical, embora vergonhosamente tardio.
Antes da campanha já havia o movimento abo¬licionista, que criara associações (Bahia, 1852 e 1869, Campos, RJ, 1870) e produzira quadros, como o poeta romântico e agitador Castro Alves (1847-1871).
Em geral se considera que a Campanha Abolicionista começou em 5 de março de 1879, com um dis¬curso do deputado baiano Ferreira de Menezes, que prega a emancipação de 1 milhão de brasileiros es¬cravizados – e é aparteado por um parlamentar escravista que protesta: “Brasileiros não!”. Para Joaquim Nabuco (Minha formação), é o Fiat da Campanha.
No ano seguinte, Joaquim Nabuco apresenta um projeto de abolição em dez anos (!), derrotado na Câmara por 77 votos a 16 (!!), e o filho de escravos Ferreira de Menezes funda no Rio a Gazeta da Tarde, jornal de maior tiragem da época, dirigido depois de 1881 por José do Patrocínio e tendo a abolição como pauta central. Em 1883, quando a Confederação Abolicionista lança seu manifesto, num teatro do Rio de Janeiro, conta com dezenas de organizações espalhadas pelo país.
Três correntes dividem a sociedade
Três correntes, permeadas por nuances e meios-tons, dividem então a sociedade:
1. A escravocrata tem seu reduto nos fazendeiros do café do Vale do Paraíba (Rio de Janeiro e São Paulo). Já não defende a eternização do sistema, mas o seu fim suave pela via da Lei do Ventre Livre. Funda os Clubes da Lavoura, que criam Centros, Ligas e Clubes de Defesa Agrícola – os últimos são milícias armadas para fazer frente ao abolicionismo radical.
2. A emancipacionista quer reformas graduais, moderadas, sem afetar a lavoura. Privilegia as vias institucionais, a pressão sobre o Parlamento e especialmente sobre o imperador, seu simpatizante. Foge da agitação de massas e sobretudo da mobilização da escravaria. Seu principal expoente é Joaquim Nabuco (1849-1910), notável tribuno, criado no engenho de sua família aristocrata. “A propaganda abolicionista, com efeito, não se diri¬ge aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e além disso um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição ou ao crime homens que a Lei de Lynch, ou a justiça pública imediatamente haveria de esmagar”, diz Nabuco. Ele teme “a vingança bárbara e selva¬gem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais”.
3. A abolicionista radical, como a chama Clóvis Moura, alia-se com os escravos e os concita à ação direta contra o cativeiro. Seu mais notável representante é o jornalista, poeta e advogado Luís Gama (1830-1882), ex-escravo (foge aos 18 anos), filho da africana escravizada Luisa Mahin, insurreta de 1835 em Salvador da Bahia; proclamava que “o escravo que mata o seu senhor pratica um ato de legítima defesa”.
A versão oficial do 13 de Maio sempre privilegiou o abolicionismo à moda de Nabuco. É uma injustiça e um engodo, no qual caem hoje os militantes do movimento negro que rejeitam a abolição como uma farsa da elite branca.
Os radicais em campanha pela Abolição
Sem prejuízo dos méritos dos emancipacionistas moderados, gradualistas e conciliadores, há evidên¬cias históricas de que o catalisador da crise que preipitou o fim da escravidão foi outro: as agitações de massas, as ações de desafio à ordem escravista e muito especialmente o levante mais ou menos geral dos trabalhadores escravizados que marca a fase fi¬nal da campanha.
Em São Paulo atuam os Caifazes*, tendo como líder o magistrado mulato Antônio Bento, seguidor de Luís Gama. Desfilavam pela cidade exibindo os instrumentos de tortura da escravidão, e as vitimas destes, forras ou fugidas. Organizaram uma rede de estímulo à fuga de escravizados, individuais e coleti¬vas, com apoio de cocheiros e ferroviários. “Não ha¬via trem de passageiro no qual um negro fujão não encontrasse meios de esconder-se, como não havia estação onde diretamente alguém o não recebesse e orientasse”, escreve J. Maria dos Santos (Os republi¬canos paulistas e a abolição).
Em Campos, área de canaviais e engenhos no norte da província do Rio de Janeiro, operam as Bas¬tilhas de Luís Carlos de Lacerda (avô do tristemente célebre Carlos Lacerda que foi um dos líderes paisa¬nos do golpe de 1964). Promoviam palestras, tinham seu jornal. Mas também organizam fugas, queimam canaviais, arrebatam negros do tronco, executam ca¬pitães-de-mato.
Este é também o caminho do Clube do Cupim, fundado em 1884 em Pernambuco e com mais de 300 membros. Em uma única ação, em 23 de abril de 1888 (três semanas antes do 13 de Maio…), em¬barcou 119 ex-cativos para a liberdade. O grupo de Cesário Mendes, em Cachoeira (Recôncavo Baiano), o de Francisco Alves, em Buquim (Sergipe) e outros usam igualmente “todos os meios” contra “a hidra da escravidão”. Pode-se somar a essa vertente o magnífi¬co exemplo de desobediência civil dos jangadeiros do Ceará, liderados por Francisco Nascimento, o Dragão do Mar, que ainda iria ser o estopim de um incidente que desaguaria na Proclamação da República.
Tudo isso acontece em orquestração com um grande movimento de luta de idéias, sem prece¬dentes no país, de mobilizações de massas – as pri¬meiras do Brasil, na acepção moderna do termo –, e subcampanhas para acabar com a escravidão em uma província (Ceará, Amazonas), em uma cidade (Porto Alegre, Petrópolis), em uma vila (Aracape, Ceará), em uma rua (do Ouvidor e Uruguaiana, no Rio de Janeiro, Largo de São Francisco, em São Paulo).
Nestas circunstâncias é votada em 1885 a Lei do Sexagenário. Ultimada no governo do conservador escravocrata barão de Cotegipe, estende a idade da alforria para 65 anos (que só uma ínfima minoria de cativos atinge). Mas tem o cuidado de estabelecer penas mais severas para quem “seduza ou acoite (esconda)” fugitivos da escravidão.
Um movimento quilombola de novo tipo
É uma mentira conservadora e racista dizer que os trabalhadores escravizados foram espectadores passivos da Campanha Abolicionista. Apesar do tra¬balho embrutecedor, da opressão intelectual que lhes vedava o acesso à educação, do isolamento da vida rural, os trabalhadores escravizados perceberam que podiam contar com aliados, que seus senhores esta¬vam divididos, sem discurso, atordoados. Puseram-se em movimento. E há motivos para se concluir que vibraram o golpe de misericórdia na escravidão.
A historiografia do movimento quilombola rende homenagem, com justa razão, ao grande reduto ne¬gro de Zumbi dos Palmares. Talvez peque por não fri¬sar com a necessária ênfase que ele não foi um raio em céu azul, e sim um entre milhares de quilombos que acompanharam todos os 377 anos de escravismo no Brasil (a contar dos 36 primeiros escravizados de que se tem registro, indígenas, carregados em Ca¬bo Frio na nau Bretoa em 1511). Certamente peca por subestimar a grande maré de fugas que acompa¬nhou, e provavelmente decidiu, o sucesso da Cam¬panha Abolicionista.
Era um movimento quilombola de novo tipo, poli¬ticamente articulado, tendo como paradigma o grande quilombo do Jabaquara. Este ficava no município de Santos, parte nas encostas da Serra do Mar (no atu¬al município de Cubatão) e parte no Sitio Jabaquara, dentro da própria cidade. Há quem sustente que sua população chegou a superar a de Palmares. Santos foi uma espécie de território livre, um santuário abolicio¬nista encravado na província negreira que é São Pau¬lo. Ali os negros fugidos circulavam simplesmente, protegidos pela cumplicidade dos cidadãos. Quintino de Lacerda, o negro forro que liderava o quilombo, de¬pois da abolição elegeu-se vereador na cidade (1895).
Um quilombo deflagra o processo abolicionista
O quilombo do Jabaquara teve um papel de de¬tonador da crise política que enterrou a escravidão. O enorme e crescente reduto de negros fugidos, em lugar sabido por todos e até dentro de uma grande cidade, parece um insulto aos olhos do gabinete libe¬ral-escravocrata do Barão de Cotegipe. Este ordenou que o exército reprimisse os quilombolas, fazendo o papel de capitão-de-mato – já que, àquela altura, os capitães-de-mato de profissão já tinham que ocultar debaixo de panos as algemas dos cativos que condu¬ziam, para não incorrerem na ira do povo.
O Clube Militar (formado há apenas quatro me¬ses e presidido pelo marechal e herói do Paraguai Deodoro da Fonseca [1827-1892]) respondeu com uma “súplica” à princesa regente: “Não consinta que os soldados sejam encarregados de captura de pobres negros que fogem à escravidão”. Já não havia capitães-de-mato que pudessem manter pela força uma relação de trabalho que somente na força po¬deria se apoiar.
A carta de Deodoro é de 26 de outubro de 1887: seis meses antes do 13 de Maio.
Àquela altura os dias da escravidão estavam contados. Calcula-se que mais de um terço dos 100 mil escravos de São Paulo fugiram antes do Parla¬mento e da princesa se resolverem a libertá-los. Nos engenhos de Campos os fujões chegaram a mais da metade. O insuspeito Oliveira Viana, historiador oficial das classes dominantes da república Velha, descreve:
“Os escravos se levantavam, passavam a desco¬nhecer a autoridade dos senhores. Desertavam das senzalas; partiam em massa; cerca de 10 mil desce¬ram as encostas do Cubatão para o asilo de Santos. Outros fizeram-se conspiradores em conspirações perigosas. Outros, rebelando-se, assassinavam os se¬nhores”.
O gabinete Cotegipe caiu, como resultado da rebel¬dia dos militares que não aceitam reprimir a rebeldia dos escravizados. Estávamos então em 10 de março de 1888, a 64 dias do 13 de Maio. E a princesa regente chamou para formar governo o conservador, porém emancipacionista, João Alfredo Correia de Oliveira.
Um parêntese sobre a princesa Redentora
Aqui vale um parêntese sobre Isabel Cristina de Bragança e Bourbon, a princesa imperial, e o seu pa¬pel na Abolição. No dia 13 de maio de 1888 ela tinha 41 anos de idade e exercia a regência há 10 meses. Sua conversão ao abolicionismo, porém, estava com¬pletando 90 dias. Fora em 12 de fevereiro, durante o Carnaval daquele mesmo ano, em Petrópolis (Rio de Janeiro), que a regente explicitara essa adesão, ao participar de uma “batalha de flores” abolicionista (eram mesmo incontáveis as formas de luta que a campanha empregava).
A tardia opção da princesa não foi a única. Obe¬deceu a todo um movimento no andar de cima da pirâmide social do império, admitindo que se tor¬nara indispensável sacrificar o escravismo para sal¬var o resto do edifício social existente. No caso da chamada Redentora, influiu também sua devoção de católica extremada (embora não como sua avó, Do¬na Maria, a Louca, cuja loucura era mania religiosa). Em janeiro, Nabuco voltara ao Rio de uma de suas muitas viagens à Europa. Relatara à imprensa uma audiência que tivera com o papa Leão XIII, e a pro¬messa do pontífice, não cumprida, aliás, de incluir em sua próxima encíclica uma condenação da escra¬vatura no Brasil. A princesa ouviu a voz de Roma e por fim decidiu-se: foi à “batalha de flores”; indicou João Alvredo para formar governo; encaminhou ao Parlamento em 3 de maio uma Fala do Trono pedin¬do a extinção do elemento servil” (“Que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido”); e promulgou a lei. Um papel positivo, mas secundário e dramaticamente tardio. Nem de longe justifica o pedestal que a histo¬riografia oficial lhe erigiu.
O Parlamento faz a lei cercado de povo
O gabinete João Alfredo assume em plena crise. Os escravizados já estão votando, com os pés, o fim imediato da escravidão. Um derradeiro projeto gra¬dualista, do conselheiro Antônio da Silva Prado (da poderosa oligarquia cafeicultora dos Prado de São Paulo), ainda tenta fazer com que os escravizados por fim libertos sejam obrigados a permanecer nas fazendas por dois anos; naufraga em 20 de abril, a 24 dias do 13 de Maio.
O leitor há de perdoar a insistência com a crono¬logia da crise. Ela é importante para dar idéia de sua extensão e profundidade.
Em 3 de maio o Parlamento abre sua sessão, com a leitura da mencionada Fala do Trono. Em volta do prédio, um sobrado no centro do Rio de Janeiro, uma enorme multidão cerca e vigia os parlamentares; per¬manecerá a postos até a saída da lei, onze dias depois.
No dia 7 o ministério João Alfredo se apresenta. Nabuco discursa. Diz: “é este, incomparavelmente, o maior momento da nossa pátria”, que se encontra “à beira da catadupa dos destinos nacionais”. O tema único é a abolição.
No dia 8, uma terça-feira, a Câmara recebe o pro¬jeto do Executivo, lido pelo ministro da Agricultura, Rodrigo Silva:
“Artigo 1º – É declarada extinta a escravidão no Brasil.
Artigo 2º – Revogam-se as disposições em contrário.”
A tramitação é velocíssima. No mesmo dia o pro¬jeto é votado, recebendo 64 votos favoráveis e nove contrários (!). O relator, Duarte de Azevedo, requer que se dispense a impressão do resultado para que a tramitação se acelere em um dia.
O projeto chega ao Senado no dia 10, quinta-fei¬ra. Os senadores estão tomados pela mesma pressa febril. O debate é sumaríssimo. Cotegipe, um dos poucos oradores, adverte que, embora não seja con¬tra a Abolição, acha o projeto “precipitado” e até “visionário”. Admite porém ser naquele momento “o homem mais impopular do pais”. Paulino Soares de Sousa vai pelo mesmo caminho, lamentando que não se espere pelo menos a próxima safra. Não há mais oradores. Não há observações à ata; não há ex¬pediente; não há pareceres. Os senadores (todos in¬dicados pelo imperador e não eleitos) não têm tem¬po a perder. A votação acontece às 11 horas do dia 13, um domingo, fato nunca visto nem antes nem depois em toda a história do Senado. Do lado de fora a multidão os vigia. Ainda assim, cinco senadores votam contra a Lei Áurea (!).
A essa altura a princesa já desceu de Petrópolis, pois também tem pressa. Recebe a delegação de par¬lamentares com o projeto aprovado, visivelmente nervosa, com um discurso de dez segundos, assina a lei e volta logo a Petrópolis. É a multidão, 20 mil pes¬soas, que toma conta da missa campal que se segue.
A Campanha Abolicionista venceu. Em toda a linha. Não foi um negócio de brancos. Não foi tam¬pouco a revolução social que o Brasil ainda não fez e um dia fará. Mas foi a maior batalha social já venci¬da pelo povo brasileiro.
Acusações a-históricas
Acusam o 13 de Maio de não ter completado o fim da escravidão com a indenização dos escravos nem com uma reforma agrária que lhes desse aces¬so à terra. É uma crítica a-histórica, que não parte da realidade concreta dos anos 1880, mas de for¬mulações que só nasceram algumas gerações mais tarde.
A bandeira democrática da reforma agrária foi introduzida no Brasil mais de uma geração depois, pelo Partido Comunista fundado em 1922, com base no modelo da revolução russa de 1917. E apenas no intervalo democrático de 1945-1964 deixou de ser uma palavra-de-ordem de propaganda para se trans¬formar em grande movimento social concreto, incor¬porando-se em caráter permanente ao programa das lutas sociais e políticas brasileiras.
Quanto à bandeira da indenização, ou reparação, é ainda mais recente. Entrou em cena nos Estados Uni¬dos em 1988, depois que o então presidente Ronald Reagan decidiu compensar com uma indenização em dinheiro os cidadãos estadunidenses de origem japonesa internados em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. E só ganhou algum relevo fora dos EUA a partir da conferência da ONU contra o racismo em 2001.
Exigir que os abolicionistas empunhassem estas demandas nos anos 1880 é, pior que uma injustiça, um completo anacronismo. A imprensa abolicionista chegou inclusive a abordar os dois temas, no âmbito da propaganda de denúncia do regime escravocrata. Mas não se poderia exigir da Abolição que abraçasse causas ainda não nascidas.
A grande batalha das indenizações
Entretanto, a Campanha Oposicionista enfrentou – e venceu! – uma enorme batalha estratégica ligada ao tema indenização: impediu que os senhores de escravos fossem indenizados pela perda de suas “propriedades”.
Em meados da década de 1880 – quando o abolicionismo já tinha se tornado um rio caudaloso, formado sua Confederação e forçado a sua inclusão na plataforma do Partido Liberal – as hostes do escravismo recuaram para esta última trincheira da sua desesperada resistência. E nela combateram, com unhas e dentes, até mesmo depois do 13 de Maio; foi para inviabilizá-la que Rui Barbosa, já na República, mandou queimar os arquivos da escravidão, causando inestimável prejuízo ao estudo do tema.
O discurso dos escravistas seguia a seguinte lógica: Admitimos que a liberdade é um direito dos seres humanos. Mas o direito à propriedade é igualmente sagrado. Não se pode espezinhar este em nome da defesa daquele. Aceitamos a abolição, mas exigimos a indenização.
Em favor dessa tese os escravistas esgrimiam argumentos internacionais. Também o império britânico seguira o mesmo raciocínio, quando libertara os escravos de suas colônias, em 1838. A burguesia inglesa, intransigente do direito de propriedade, reservara então um fundo público de 20 milhões de libras para a indenização dos ex-proprietários de seres humanos. A França seguiu o mesmo caminho quando, depois da revolução de 1848, extinguiu a escravidão em seus domínios coloniais (pela segunda vez; a primeira, fruto da revolução de 1789, fora revogada por Napoleão em 1802).
A ala latifundiário-emancipacionista da Campanha dispôs-se a conciliar com essa reivindicação dos senhores de escravos. Porém a ala popular-radical atacou-a de frente, evidenciando a completa imoralidade de se indenizar alguém por ter escravizado seres humanos. Ao fim de uma luta de idéias e projetos como nunca se vira no país, venceu a alternativa mais avançada. O texto da chamada Lei Áurea, na concisão dos seus dois artigos, expressa essa vitória, que merece ser aquilatada em seu justo valor pelo movimento negro e todas as forças progressistas da atualidade.
A Abolição teve também seus limites. Não foi, repetimos, uma revolução social (ao contrário do que defende o historiador gaúcho Mário Maestri, que em outros aspectos traz uma interessante contribuição para este debate); não derrubou do poder político as classes dominantes da sociedade brasileira. Ao manter intactos o latifúndio e o poder dos latifundiários, atirou os cativos recém-libertos no porão da pirâmide social, tanto no campo como nas cidades, onde não por acaso nasceram então as primeiras favelas. Manteve uma sociedade feita à imagem e semelhança das idéias e práticas de suas classes dominantes, discriminatória, preconceituosa, racista, apesar de seu discurso hipocritamente benévolo.
Por isto, continua a haver no país uma questão negra, e um imenso espaço a ser ocupado por um movimento negro, parte integrante das forças avançadas do país. Em seu combate, ele já inscreve com orgulho o quilombo de Zumbi dos Palmares; é de justiça que inscreva também a Campanha Abolicionista de Luís Gama, Antônio Bento, Quintino de Lacerda e tantos outros.
Bernardo Joffily é jornalista e editor do Portal Vermelho
Nota: O intrigante nome Caifazes vem de uma frase atribuída ao sacerdote Caifás no evangelho de São João (Jo. 11,50): “Vós nada sabeis, nem compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo todo não pereça?”
EDIÇÃO 95, ABR/MAI, 2008, PÁGINAS 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55