Em 1996, o polêmico nascimento da ovelha Dolly revelou ao mundo um campo surpreendente para a ciência, a possibilidade de que células diferenciadas de mamífero fossem capazes de ser reprogramadas para formar qualquer tipo de tecido. Este experimento foi considerado o marco das pesquisas com células-tronco, cujo avanço conseqüente obtido a partir desta descoberta transformou esta linha de pesquisa na base da medicina do novo milênio. Um novo horizonte abriu-se para o tratamento de muitas doenças que afetam hoje milhões de pessoas. Segundo informações da comunidade científica, surgem a cada ano cerca de 18 milhões de pacientes com problemas neuronais.

Em 2007, os geneticistas Mário Capecchi, Oliver Smithies e Martin J. Evans ganharam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia por suas descobertas relacionadas às células-tronco embrionárias e a recombinação do DNA em mamíferos. Não há dúvida de que a concessão do prestigioso prêmio a esses pesquisadores pavimenta de maneira decisiva o reconhecimento da comunidade científica internacional a este ramo da ciência e estimula os estudos na busca de tratamento das enfermidades.

No Brasil, as pesquisas com células-tronco foram liberadas em 2005, quando a Lei de Biossegurança, da qual fui relator na Câmara dos Deputados, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização das atividades que envolvem organismos geneticamente modificados e trata da Política Nacional de Biossegurança. Mas a possibilidade de realização da pesquisa com células-tronco, incluída por mim no projeto do governo, foi a que maior repercussão ganhou durante o debate no Parlamento.

Por dois anos, período em que esteve em votação no Congresso, realizamos ampla discussão sobre o projeto, ouvindo diferentes manifestações de cientistas, professores, pesquisadores, líderes religiosos e pessoas portadoras de doenças degenerativas. Construímos um consenso em torno do tema ao elegermos a vida como o centro das atenções e a ciência como instrumento para melhorá-la.

Mas, a julgar pelo debate atual, não esgotamos a polêmica. As questões de natureza ético-religiosas pesaram sobre a decisão do Congresso Nacional. Ainda em 2005, o então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pedindo a revogação dos dispositivos da Lei de Biossegurança que permitem a pesquisa com células-tronco embrionárias. Fonteles entende que o artigo 5º da lei e seus parágrafos ferem a proteção constitucional do direito à vida e a dignidade da pessoa, uma vez que, argumenta ele, a vida começa no momento da fecundação.

O dilema ético reside fundamentalmente no procedimento utilizado para a retirada da célula-tronco do embrião que, para os grupos resistentes às pesquisas, implica a interrupção da vida. Ocorre, no entanto, que a Lei de Biossegurança permitiu a pesquisa e a terapia apenas em embriões congelados há mais de três anos em clínicas de fertilização e considerados excedentes, por não serem colocados em útero, ou inviáveis, por não apresentarem condições de desenvolver um feto. A lei proíbe o comércio, a produção e manipulação de embriões, assim como a sua clonagem, seja para fins
terapêuticos ou reprodutivos.

O STF iniciou o julgamento da ação do ex-procurador-geral da República no dia 5 de março deste ano. O relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto, não considerou a lei inconstitucional, votando contra a Adin. Contudo, o pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Menezes Direito adiou a sessão. Antes de encerrar as atividades, a presidente do STF, Ellen Gracie, fez questão de declarar seu voto e seguiu o relator, contra a inconstitucionalidade da lei.

Na prática, o STF deverá decidir se laboratórios e cientistas podem, no Brasil, realizar pesquisas científicas com o uso dessas células, como permite a lei. Até que haja uma decisão, as pesquisas estarão paralisadas. Pois, mesmo que a lei questionada esteja em vigência, os comitês de ética não têm permitido a realização dos estudos.

O debate no Congresso

A Lei de Biossegurança figura entre as mais importantes conquistas brasileiras dos últimos anos. Além do avanço obtido para as pesquisas científicas com organismos geneticamente modificados, os estudos com células-tronco embrionárias que, antes ficavam apenas no campo da ficção, tornaram-se realidade. A lei que regia a Biossegurança era de 1995 e não abrangia as conquistas científicas da última década.

Em 2003, o governo Lula enviou à Câmara dos Deputados o projeto de lei da Biossegurança em regime de urgência. Na época, eu exercia o cargo de líder do governo na Casa e coube a mim a tarefa de produzir o relatório sobre o assunto. O projeto original, contudo, não contemplava o uso das células-tronco em pesquisas, cuja proibição era um dos pontos que mais mobilizava a comunidade, sobretudo, a científica.

Iniciamos, então, uma ampla discussão com a realização de várias audiências públicas, para as quais foram convidados representantes de todos os setores envolvidos com o tema. Também organizamos audiências nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso do Sul. Ouvimos cientistas, professores, pesquisadores, deputados estaduais, vereadores, membros de órgãos governamentais e não governamentais, empresários, líderes de movimentos sociais, de associações de portadores de doenças degenerativas, dentre outros.

Foi intenso o debate em torno da autorização para a pesquisa com células-tronco embrionárias. A necessidade da inclusão do tema no projeto do governo foi apontada como essencial por vários cientistas. Os especialistas queriam anular a Lei nº 8.974, que desde 1995 proibia o armazenamento de embriões para utilização com material biológico disponível, o que na prática inviabilizava a terapia com células-tronco embrionárias.

A análise rigorosa e a discussão ampla e democrática respaldaram a liberação por meio de meu relatório para a realização de tais pesquisas. Mas a polêmica persistiu, como é natural quando há novidades em ciência e tecnologia. Foi assim, por exemplo, quando da descoberta da vacina contra varíola. Surgida em 1778, as resistências à nova invenção atrasaram em 50 anos o início de sua utilização.

Quando o deputado Renildo Calheiros (PCdoB-PE) assumiu a relatoria do projeto, foi preciso fazer novo acordo com as diversas bancadas, principalmente com as religiosas. O texto de Renildo proibia a pesquisa com células-tronco embrionárias e permitia a pesquisa com células-tronco adultas. Naquele momento, a mudança foi importante porque evitou o confronto, o que poderia resultar até mesmo na rejeição da proposta. A Câmara aprovou o relatório, que foi enviado ao Senado.

Naquela Casa, o debate evoluiu intensamente. Ocorreu grande mobilização dos parlamentares com a colaboração de outras entidades e também dos próprios pacientes e familiares de pessoas cujas patologias potencialmente pudessem merecer tratamento a partir da aprovação da lei. Senadores como Tasso Jereissati (PSDB-CE), Lúcia Vânia (PSDB-GO) e Jonas Pinheiro (PFL-MT) empenharam-se pessoalmente em favor da mudança do projeto da Câmara. O relatório final apresentou uma solução intermediária, que não liberou completamente a pesquisa como sugeria o texto original, mas permitiu a pesquisa e a terapia em embriões congelados há mais de três anos, com no máximo 15 dias de vida.

O texto foi aprovado pelo Senado. Mas, por ter sido modificado, voltou à Câmara. No dia 2 de março de 2005, os deputados aprovaram a Lei de Biossegurança em caráter definitivo por 352 votos a 60 e uma abstenção. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a nova lei no dia 24 do mesmo mês.

Lei de Biossegurança, uma questão mundial

A nova legislação tirou o Brasil do atraso na área de pesquisas e reforçou a soberania nacional em ciência e tecnologia. Se não tivéssemos liberado os estudos com células-tronco por meio desta lei, muito provavelmente hoje estaríamos convivendo com a proibição, pois dificilmente teríamos semelhante oportunidade para aprofundar o debate no país e no Congresso Nacional. A aprovação da lei demonstrou o amadurecimento do Poder Legislativo, que ouviu a sociedade e foi capaz de tomar uma decisão avançada.

Produzimos uma lei equilibrada. Poderão ser utilizados para pesquisas apenas os embriões armazenados há três anos em clínicas de fertilização e considerados excedentes ou inviáveis. O comércio, a produção e manipulação de embriões, assim como a clonagem, seja para fins terapêuticos ou reprodutivos, foram proibidos.

Em grande parte dos países, as pesquisas com células-tronco já foram liberadas. É o caso de Espanha, Reino Unido, Suécia, Finlândia, Grécia, Suíça, Holanda, Japão, Austrália, Canadá, Coréia do Sul e Israel. Nos Estados Unidos, o presidente George W. Bush, pressionado por grupos religiosos, cortou o financiamento público para os estudos, permitidos durante o governo de Bill Clinton. Mas depois decidiu permitir o financiamento limitado.

No Brasil, o governo federal, com base na lei, já investiu, desde 2004, R$ 24 milhões em ações relacionadas a pesquisas com células-tronco. Há forte esperança de encontrar tratamento, e talvez até mesmo cura, para doenças consideradas incontornáveis, como diabetes, esclerose, infarto, distrofia muscular, Alzheimer e Parkinson.

Na Bahia, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz estão tratando com sucesso cardiopatias causadas pela doença de Chagas. Neste caso, o tratamento com células-tronco pode substituir o transplante de coração. No Hospital Pró-Cardíaco do Rio de Janeiro e no Instituto do Coração de São Paulo, células-tronco estão sendo usadas em pacientes que sofreram infarto. As expectativas de tratamento com estas células para os casos de leucemia e certas doenças do sangue também são otimistas.

Sabemos que os resultados práticos para a maioria das enfermidades não aparecerão em curtíssimo prazo por se tratar de um novo ramo do conhecimento. Mas as células-tronco passaram a ser potencialmente uma grande esperança para milhões de portadores de doenças genéticas até hoje incuráveis. As conquistas não podem ser interrompidas. Aguardamos, portanto, com atenção a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Aldo Rebelo é jornalista, deputado federal (PCdoB/SP). Foi presidente da Câmara dos Deputados (2005/2007), ministro da Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República (2004/2005), líder do governo na Câmara (2003/2004) e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (2002/2003)

EDIÇÃO 95, ABR/MAI, 2008, PÁGINAS 77, 78, 79