O Supremo Tribunal Federal começou a julgar, no dia 5 de março de 2008, a constitucionalidade do uso, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco embrionárias humanas produzidas in vitro e não utilizadas no respectivo procedimento. As pesquisas com as células-tronco, que vinham sendo feitas desde 2005, após a aprovação da Lei de Biossegurança foram prejudica das devido a uma ação direta de inconstitucionalida de (Adin 3510), movida pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles.

Foi o 1o julgamento no STF aberto ao público na história do Brasil, para o qual foram convidados 34 cientistas para depor sobre as implicações éticas da pesquisa em questão. O tom do debate que se travou no Tribunal foi acentuadamente filosófico, tendo co mo centro a questão sobre o início da vida e o direito à vida. Por um lado, o advogado-geral da União José Antônio Dias Tóffoli defendeu que apenas a partir do nascimento o embrião tem direito à vida, e, por outro, Ives Gandra Martins, da CNBB (Conferência Na cional dos Bispos do Brasil), argumentou que a vida tem início no momento em que o embrião é fecundado. Pela opinião sustentada pela CNBB, o debate sobre o uso das células-tronco ignora o significado de um embrião e as conseqüências para a criação de uma mentalidade desumana.

Pelo Congresso Nacional, o advogado Leonardo Mundim defendeu que a manutenção da pesquisa com o uso das células-tronco, sob a luz do controle social, evitaria o uso clandestino e irregular. Ainda segundo alertou Mundim, nos países mais ricos a pesquisa avança e se a decisão for de proibi-la no Brasil, ficaremos para trás na posição de importadores de tais terapias. Ele levantou que as entidades científicas de maior porte apóiam a pesquisa, assim como os órgãos de imprensa, o governo e a opinião pública.

A revista Princípios conversou com o cientista e professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Julio Voltarelli sobre a atual polêmica em relação ao uso das células-tronco em pesquisas científicas e sobre a expectativa em relação ao julgamento em processo no STF. Voltarelli é um dos cientistas que tem acompanhado de perto e exercido influência no que diz respeito ao uso das células-tronco embrionárias. Seus estudos têm proporcionado contribuições para a medicina nesta área.

Princípios – Quais resultados concretos as pesquisas que utilizam as células-tronco já apresentaram ao mundo?
Voltarelli – Transplantes de células-tronco da medula óssea adulta ou do cordão umbilical têm sido realizados há várias décadas para doenças do sangue (como leucemias) com bons resultados e já constituem tratamento convencional para muitas dessas doenças. O uso clínico dessas células para terapia regenerativa e para tratar doenças auto-imunes avançou muito nos últimos anos, com resultados positivos em muitas doenças, mas esta terapia ainda é considerada experimental. Já as células-tronco embrionárias ainda não foram utilizadas em experimentos clínicos em humanos.

Princípios – Segundo afirmou o advogado da CNBB, Ives Gandra, hoje em dia, através da reprogramação celular, com a implantação de quatro genes, é possível tornar as células adultas tão plásticas e flexíveis quanto as células-tronco. Qual o fundamento desta afirmação?
Voltarelli – Esta pesquisa realmente ocorreu, mas os quatro genes empregados têm propriedades oncogênicas, isto é, podem fazer essas células se transformarem em tumores, portanto, o uso terapêutico dessas células, se ocorrer, vai demorar muito tempo até que os problemas de segurança sejam resolvidos.

Princípios – O avanço da pesquisa com as células-tronco pode, eventualmente, desencadear algum tipo de violação à vida ou ao corpo humano?
Voltarelli – Não acredito nisso, pois a proposta é utilizar embriões criados em laboratório que nunca serão implantados no útero humano, portanto, nunca se desenvolverão em seres vivos individualizados.

Princípios – No processo pela proibição das pesquisas com células-tronco surgiram diversas teorias a respeito do início da vida humana. A comunidade científica tem alguma opinião consensual sobre este assunto?
Voltarelli – Não existe consenso, um grande número de cientistas situa o início da vida independente no início do desenvolvimento do sistema nervoso.

Princípios – Qual o estágio da pesquisa do Brasil?
Voltarelli – O Brasil ocupa um papel de destaque, no cenário mundial, em ensaios clínicos com células-tronco para doenças cardíacas, neurológicas, vasculares e auto-imunes, há vários estudos concluídos e publicados na literatura internacional e outros em andamento. Além de desenvolver a ciência nacional a continuidade da pesquisa no Brasil pode, devido à sua posição de liderança científica na América Latina, incentivar o estudo com células-tronco na região.

Princípios – O senhor acha que a liberação da pesquisa seria, além de um avanço na área das ciências biológicas, um avanço cultural, no sentido de desmitificar algumas doenças e seus tratamentos?
Voltarelli – O maior avanço seria o de desvincular as crenças religiosas (como a do início da vida no zigoto) da legislação brasileira. A condição do Brasil como Estado laico ou teocrático está no debate.

Princípios – Por último, qual sua expectativa quanto ao julgamento, ainda em processo, pela proibição do uso de células-tronco em pesquisas? No caso da liberação, pessoas que apresentam, hoje em dia, doenças passíveis de serem curadas através da plasticidade das células-tronco podem já ter a esperança de cura?
Voltarelli – A aprovação da lei, mais provavelmente, vai levantar falsas esperanças (de cura rápida para um grande número de doenças), porque o progresso nesta área será necessariamente lento.

Carolina Ruy é Secretária de Redação de Princípios

EDIÇÃO 95, ABR/MAI, 2008, PÁGINAS 73, 74