O mundo econômico-financeiro mudou radicalmente a partir dos anos 1980. Essa mudança, ao mesmo tempo em que reafirmou o dólar como moeda mundial deu fôlego a um complexo mecanismo de novas inter-relações contratuais e institucionais, sob a égide do capital financeiro, ao qual se convencionou chamar “globalização financeira”1. Essa teia de relações envolveu o avanço de instituições financeiras não-bancárias – os chamados investidores institucionais2 –, com a marcha progressiva da desregulamentação e da liberalização financeiras abrindo espaço à exploração de oportunidades advindas da maior incerteza sobre os preços dos ativos que passou a viger a partir da adoção de taxas de câmbio flexíveis e da queda das restrições geográficas e contratuais à atuação das instituições financeiras.

O mundo financeiro tornou-se mais dinâmico, mas ao mesmo tempo mais incerto. Essa incerteza, traduzida na grande volatilidade quanto ao preço dos mais diversos ativos abriu caminho às chamadas “inovações financeiras”, que tecem verdadeira “teia de contratos” que “enrolam”, na feliz expressão utilizada pela revista The Economist (2008), de forma “sistêmica” os diversos mercados de ativos, instituições financeiras e os sistemas financeiros nacionais.

A crise atual põe em xeque esse arcabouço sistêmico, mico, de uma forma na qual ele não havia sido anteriormente testado. Isso decorre do fato de todos os elementos essenciais que caracterizam o processo de globalização fi nanceira – novas instituições, novos atores, novos instrumentos, nova regulação privada – estarem desafiados pelos fatos decorrentes da chamada crise imobiliária – nome equivocado para uma crise de alcance mais amplo e profundo e que, recentemente, tem sido apontada por diversos economistas ligados ao mainstream teórico e institucional como “a maior crise financeira após a década de1930” (Greenspan, 2008). Situamos, na presente análise, a crise que ocorreu entre agosto de 2007 e o final de março de 2008, em uma perspectiva mais ampla, tanto histórica como institucional conec tando os fatos ocor ridos até o momento a uma seqüência lógica das crises fi nan ceiras advindas da própria instabilidade característica do pro cesso de globalização financeira.

Buscamos elaborar, desse modo, uma análise conjuntural – uma vez restrita empiricamente aos eventos que se de senrolaram os últimos nove meses –, mas que situe, mes mo em caráter pre liminar, histórica e prospectivamente os acontecimentos que caracterizam essa crise. 1 – Da crise imobiliária à crise financeira Uma questão ainda não parece estar bem com preendida por diversos analistas: como uma crise de origem na concessão de crédito imobiliário imedia tamente transformou-se em uma crise financeira, interconectando os mais diversos mercados de cré dito pelo mundo afora? O ambiente que deu origem à chamada bolha imobiliária se constituiu a partir da superação da últi ma crise de caráter financeiro com o fim da bolha de ações de empresas de alta tecnologia que elevou a bolsa tecnológica Nasdaq entre 1994/2000. A resposta do Federal Reserve (Fed) à queda no crescimento econô mico incluiu uma forte redução nas taxas de juros, especialmente após os atentados de 11 de Setembro de 2001. Ressabiadas pelas perdas no mercado acionário, as famílias americanas dedicaram grande parte des se novo poder de compra oportunizado pela redução dos juros à compra e à construção de novas residências, dinamizan do novamente a economia do pa ís. Essa atividade levou a um forte aumento especulativo no preço das residências que, por sua vez dina mizou, a partir das mais variadas formas de crédito hipotecário, outros mercados fi nanceiros.

Subjacentes a essa facilidade na concessão de crédito encontra vam-se a elevada liquidez e a ga rantia com base em um ativo com o preço em c o n s t a n t e elevação – o imóvel em si. Assim, uma com plexa cadeia de contratos envolvendo os mais diversos títulos tendo por base a ven da e o pagamento dos imóveis ganhou forma e importância. A securitização dos créditos imobiliários envolvia os banos comerciais e os bancos de investimento e a criação de títulos baseados diretamente nas hipotecas (Residential Mort gage Backed Securities – RMBS) os quais tinham seu risco de crédito aferido e chancela do pelas agências de rating. Esses títulos (as RMBS’s), mesclados a outros créditos com origem na venda de automóveis, de imóveis comerciais, de parcelamentos com cartões de crédito e de créditos estudantis, dentre outras origens possíveis, eram então “empacotados” sob a forma de Collateralized Debt Obligations (CDO), geralmente emitidas por bancos de investidores institucionais do mundo todo, notadamente a partir de 2006. Os CDO também eram objeto da apreciação das agências de rating, que auxiliavam na apreciação do risco de cada uma de suas partes (tranches), que eram distribuídas conforme o risco a diversos tipos de investidores.

A situação se deteriora em definitivo quando, ao final de 2005, com o Fed retomando uma situação de normalidade nas taxas de juros, o preço dos imóveis deixa de aumentar e, a partir de 2006, passa a se reduzir. Essa queda nos preços estimula a desistência de pagamentos de parte dos compradores em 2007, uma vez que o valor das dívidas começa a su¬perar o valor dos imóveis3. Para piorar, muitos desses empréstimos hipotecários foram concedidos no valor de 100% do imóvel, sem a necessidade de comprovação da documentação (hipotecas subprime e Alt-A) e contendo os chamados teasers, condições de pagamentos facilitadas nos primeiros anos do contrato, mas que, quando reajustados, alteram profundamente o valor das prestações.

Com as mudanças na situação econômica e dadas as especificidades da concessão do crédito imobiliário, a reversão das expectativas aumenta dramaticamente a inadimplência em todos os segmentos do mercado imobiliário e não apenas no chamado mercado de alto risco (subprime). Os títulos que têm por subjacente o pagamento dos créditos imobiliários começam a enfrentar defaults em seus pagamentos, perdendo valor em mercados ilíquidos que se formaram a partir de derivativos de balcão, negociados diretamente entre as partes. Esse processo de queda nas vendas dos imóveis e de deterioração no pagamento das hipotecas leva, portanto, a uma crise financeira, de origem imobiliária, que se manifestará em meados de agosto de 2007.

Mas, o mais interessante e que reforça o caráter de “crise da globalização financeira” é que esses elementos já apontados contagiam outros mercados de ativos que, em princípio, não estariam diretamente conectados à questão imobiliária em si. Ou seja, as portas corta-fogo estão abertas, o incêndio se alastra.

2 – As três ondas da crise de crédito: os mecanismos de contágio e a atuação “em última instância” dos bancos centrais

Em meados de julho de 2007, um até então desconhecido índice do mercado de derivativos de crédito que avalia uma cesta de RMBS’s baseadas em hipotecas de tipo subprime (ABX-HE, elaborado pela empresa MarkIt) começa a dar fortes sinais de stress para as tranches mais arriscadas desses títu¬los (BB e notas inferiores). Em 22 de julho de 2007 o banco de investimento Bear Stearns aponta que dois de seus fundos hed¬ge, baseados em hipotecas de alto risco, apresenta¬ram uma perda superior a US$ 3,2 bilhões. Os lucros e a solvência dos bancos e de outras instituições fi¬nanceiras começam a ser questionados. O ambiente de negócios se deteriora. A crise de crédito se inicia.

Podemos observar no Gráfico 1 que, entre me¬ados de julho de 2007 e março de 2008, tivemos ao menos três momentos de elevação na desconfiança bancária medida pelo TED Spread, um indicador do nível de stress financeiro que atinge o mercado interbancário4, sendo estes em agosto e dezembro de 2007, com o último se de¬senrolando em março de 2008. Nesses momentos, o spread superou os dois pontos percentuais, denotan¬do um risco quatro vezes superior ao observado em tempos de tranqüilidade. É importante salientar que isso ocorre mesmo após o Fed e outros bancos centrais terem reduzido a taxa de juros-alvo, o que deveria ter por efeito uma queda nesse spread.

O primeiro momento marca a surpresa pela vi¬rulência da crise, sendo iniciadas as especulações sobre as perdas e a solvência das instituições finan¬ceiras. Fica claro, a partir do episódio dos fundos do banco Bear Stearns – seguido pela corrida bancária que vai determinar a estatização do banco inglês Northern Rock – que muitos bancos, comerciais e de investimento, têm, fora de seus balanços, ex¬posição com as chamadas Entidades de Propósito Especial – Special Purpose Entities (SPE), das quais a mais importante, quanto ao tamanho da exposição bancária, é constituída pelos Structured Investment Vehicles (SIV). Os SIV são importantes elementos na propagação da crise para o mercado monetário, pois interligam os CDO e as RMBS, títulos de renda fixa de longo prazo, ao mercado de commercial papers, a partir da emissão de Asset Backed Commercial Papers (ABCP), títulos de curto prazo (entre 30 e 90 dias, geralmente). Esses ABCP financiam a compra e a manutenção das tranches mais arriscadas dos CDO fora dos balanços dos bancos. Na medida em que o mercado para a emissão desses instrumentos “seca”, dado o risco evidente de default dos CDO, esses instrumentos voltam para dentro dos bancos5. Opacos, eles alimentam o jogo de adivinhação quanto a quem carrega o “mico”. O Fed e outros bancos centrais respondem relaxando a política monetária, cortando as taxas de juros-alvo e de redesconto.

Nos meses de outubro a dezembro a crise recrudesce. Ao contágio trazido pelos SIV se soma a deterioração da situação das seguradoras de títulos, chamadas monolines por atenderem principalmente aos estados e municípios americanos. Com o passar do tempo, essas empresas, que emprestam uma garantia com rating AAA aos empréstimos realizados pelos entes federativos, passaram também a segu¬rar títulos privados, dentre eles CDO com forte presença de créditos originários das hipotecas. A possível insolvência dessas empresas, que dependem de forma crucial da manutenção de sua notação pelas agências de rating para sobreviverem, é também fonte de preocupação para os bancos, que teriam de admitir prejuízos em títulos mantidos em seus balanços com valor superior devido à garantia das seguradoras de bônus. Os problemas continuados com os SIV e a deterioração da situação das monolines marcam a segunda onda da crise.

O stress se torna insustentável e vai exigir uma atuação coordenada de injeção de liquidez de cinco bancos centrais – Fed, Banco Central Europeu (BCE), Banco da Inglaterra, Banco Nacional da Suíça (BNS) e Banco do Canadá. O Fed ainda coloca à disposição do BCE e do SNB linhas de swap em moeda estrangeira, respectivamente, no montan¬te de US$ 20 bilhões e US$ 4 bilhões. Essas operações foram realizadas com o propósito de diminuir a pressão sobre as taxas de juros interbancárias – em particular a Libor (London Interbank Offered Rate), re¬ferência internacional para empréstimos entre bancos. Ademais, o Fed anunciou a decisão de utilizar um instrumento temporário para o fornecimento de liquidez ao sistema bancário: Term Auction Facility (TAF). Mediante a realização de leilões de dinheiro, o Fed passou a conceder aos bancos empréstimos de curto prazo (acordos de compra e venda por 28 dias) com taxa de juros inferior às operações de redescon¬to, aceitando como garantia os títulos do Tesouro e das agências federais6.

No final de fevereiro e início de março de 2008, os bancos começam também a exigir depósitos de margens mais altos (haircut contagion) para refletir os novos preços dos ativos. Os hedge funds e outros investidores altamente alavancados tomam recursos de um financiador (inclusive para comprar tranches residuais ou tóxicas de CDO), oferecendo como ga¬rantia ativos de seus portfólios. Quando o valor dos ativos cai, a alavancagem sobe, podendo ultrapassar o limite estabelecido pelo financiador que exige sua redução pela venda dos ativos ou por aumento da margem. As vendas compulsórias, para se readequar às regras do financiamento da alavancagem, conduzem ao aumento da volatilidade retransmitido para outros mercados (Locatelli, 2008). Se o fundo de investimento ainda enfrentar pedidos de resgates dos investidores, há a necessidade de vender mais ativos, forçando uma espiral deflacionária nos preços e/ou o fechamento do fundo (como ocorreu com o Carlyle Capital Corporation).

A desvalorização dos preços força outros fundos a reconhecerem perdas porque obrigados a registrar o valor dos ativos no nível das negociações que ocorrem no mercado, por meio da marcação a mercado, incentivando outros investidores a também resgatarem suas cotas (parte dos fundos de pensão administrados pelos hedge funds). Isso pode levar a círculos viciosos de vendas forçadas de ativos, bem como de aumento de taxas de juros em vários mercados (para viabilizar as chamadas de margens).

Os boatos se sucedem e em março de 2008 o banco de investimentos e corretora Bear Stearns, que acabara de apresentar prejuízo em seu balanço trimestral, mostra-se insolvente. O Fed organiza o resgate do banco de investimento no final de sema¬na dos dias 15 e 16 de março, culminando com o anúncio de sua aquisição pelo JP Morgan Chase. Para tanto, o Fed repassa US$ 29 bilhões ao JP Morgan Chase, de modo a que esse possa criar um veículo es¬pecial separado de seu balanço que permita segregar os ativos mais arriscados pertencentes ao Bear Stearns. Ao mesmo tempo, o Fed abre a possibilidade de acesso ao redesconto aos bancos de investimento – entidades não reguladas pela instituição –, de modo a garantir um retorno à confiança entre os bancos e impedir uma “corrida bancária” generalizada aos bancos de investimento, dadas as incertezas relacionadas aos mercados de derivativos7.

Nesse momento, o Fed anuncia uma nova modalidade de auxílio ao sistema bancário: Term Securities Lending Facility (TSLF). Sob essa nova modali¬dade, realizará empréstimos de até US$ 200 bilhões em títulos do Tesouro contra garantia de um amplo conjunto de ativos, incluindo aqueles lastreados em hipotecas, que possuem rating AAA/Aaa (federal agency debt, federal agency residential-mortgage-backed securities e non-agency AAA/Aaa-rated private-label residential-mortgage-backed securities)8.

O resgate do Bear Stearns, a abertura do redescon¬to aos bancos de investimento e a aceitação de hi¬potecas privadas garantidas por outros investidores, que não as agências federais, foram, até o momento, as medidas mais importantes – e controversas – to¬madas pelo Fed. A partir delas ele deixa claro que irá às últimas conseqüências para garantir a solvência do sistema, ainda que para isso seja necessário apoiar instituições financeiras que não estejam sob sua supervisão direta. Também fica claro que mesmo instituições aparentemente menores podem apre¬sentar risco ao sistema, dada sua exposição à com¬plexa teia de contratos de derivativos de crédito, o caso do Bear Stearns.

4 – Quem perdeu o que até o momento: uma crise global

Uma das tarefas mais difíceis tem sido a de esti¬mar possíveis prejuízos ocasionados pela crise. Dois fatores cuja extensão ainda não se conhece em to¬talidade são cruciais para conhecermos o tamanho final dessas perdas: a extensão da queda nos pre¬ços dos imóveis e o alcance da recessão que atinge a economia americana. Estimativas realizadas pelo economista Nouriel Roubini (2008) apontam para um total de perdas, dada uma queda adicional de 10 pontos percentuais no preço dos imóveis – já caíram cerca de 10 pontos percentuais frente ao seu pico até janeiro de 2008 –, de um montante de US$ 1,15 trilhão9. Destes, as hipotecas e os títulos daí derivados (prime e subprime) responderiam por cerca de US$ 400 bilhões, aos quais seriam adicionados US$ 150 bilhões pelo downgrade das monolines e outros US$ 600 bilhões de problemas financeiros causados pelo avanço da recessão – perdas com títulos derivados de dívidas com cartões de crédito, automóveis, crédito estudantil, imóveis comerciais, títulos derivados oriundos da compra alavancada de empresas pelos fundos de private equity (Leveraged Buy-Outs), SIV e derivativos de crédito. Essa estimativa desconsidera a perda no valor venal dos imóveis nos EUA, entre US$ 4 trilhões e US$ 6 trilhões.

Um dos problemas enfrentados está na característica dos títulos estruturados envolvidos no pro¬cesso de securitização das hipotecas imobiliárias. São títulos não homogêneos, negociados “em balcão”, ou seja, de parte a parte. Os compradores de ativos – hipotecas, créditos corporativos, produtos estruturados, derivativos – desaparecem do mercado no exato momento em que a crise de liquidez provoca, em muitas instituições, a necessidade de vendê-los para se fazer caixa (atender chamadas de margem e efetuar resgates dos investidores). Nesse momento se torna praticamente impossível identificar o valor de determinados ativos nas carteiras das instituições (sobretudo dos mais complexos e pouco negociados). Se um ativo é amplamente negociado, por exemplo, em uma Bolsa de Valores, os preços praticados são públicos e sua avaliação diária torna-se um parâmetro para os agentes. Se não há negociação, mas há ativos com características semelhantes, tais como risco de crédito e duração, tomam-se os preços desses outros ativos como referência. Em um mercado paralisado, no entanto, torna-se muito difícil obter medidas “exatas” para o valor desses ativos.

Até o início de abril de 2008, considerando os balanços já divulgados do quarto trimestre, as perdas contabilizadas por seguradoras, bancos comerciais e bancos de investimento montam, aproxima¬damente, a US$ 232 bilhões (Tabela 1)10 espalhados por todo o mundo.

Esses prejuízos tiveram como resposta a busca de capitalização de parte das instituições financei¬ras atingidas. Assim, foram buscados cerca de US$ 135 bilhões, junto aos fundos soberanos e ao público em geral (Tabela 2), o que compensa em grande parte os prejuízos apontados anteriormente. A participação dos fundos soberanos dos países deten¬tores de grandes reservas no processo de recapitalização das instituições financeiras em sido objeto de grande controvérsia nos pises desenvolvidos, sobretudo nos EUA, que têm exigido maior “trans¬parência” por parte dos gestores desses fundos. É interessante ressaltar que, seja pela atuação do Fed de outros bancos centrais como market maker of last ressort, seja pela atuação dos fundos soberanos, a presença de capital estatal tem aumentado substancialmene nas instituições financeras ameaçadas pela crise. 5 –

Considerações finais

Dada a ferocidade da crise financeira, não por acaso a expressão “pensar o impensável” começa a freqüentar cada vez mais as discussões daqueles que buscam soluções para a deflação de ativos e, por algumas vezes, já evitada “em última instância” pela atuação dos bancos centrais. Em um contexto de desvalorização “forçada” nos preços dos ativos, uma política monetária agressiva pode ter efeitos limitados sobre o desempenho da economia.

Para fazer frente à crise, os bancos centrais das principais áreas monetárias injetaram elevados volumes de recursos nos mercados para tentar conter a crise de liquidez. Merece destaque a atuação do Fed, que passou a utilizar diversos instrumentos: mercado aberto, redesconto, leilões de hipotecas por dólar, leilões de hipotecas por títulos do Tesouro americano, swaps de linha de crédito com outros bancos centrais, refinanciamento de um banco de investimento (Bear Stearns). Os bancos centrais tendem nesse momento de crise a se transformarem nos “compradores de ativos ilíquidos em última instância”, tal como vem ocorrendo com o Fed e o Banco da Inglaterra (Buiter, 2008).

A despeito dessas operações, persiste o temor de as perdas incorridas pelas instituições financeiras, sobretudo os bancos, induzirem uma forte contração

Notas

1 Para as transformações no sistema financeiro contemporâneo, ver Cintra & Cagnin (2007), Aglietta & Rebérioux (2005), Braga & Cintra (2004), Aglietta (2004), Belluzzo & Coutinho (1998) e Minsky (1986).
2 Os investidores institucionais compreendem os fundos de pensão, fundos mútuos, fundos hedge, as se¬guradoras, e, mais recentemente, os fundos de private equity e os fundos soberanos. Esses agentes são os centralizadores da poupança financeira ao mesmo tempo em que provêm liquidez às aplicações e ao crédito nos mais distintos mercados, sejam de renda fixa, sejam de renda variável.
3 Ao final de 2007 e durante o primeiro trimestre de 2008 pode ser percebida uma tendência ao chamado jingle mail, ou seja, o abandono puro e simples das residências cujas dívidas superam em muito o valor dos imóveis. Esse comportamento torna a extensão da queda no preço dos imóveis uma variável-chave para a avaliação da duração e dos prejuízos que podem ser causados pela crise. Nesse sentido, Belluzzo (2008) indica a reestruturação das dívidas das famílias como uma decisão importante para conter o aprofunda¬mento da crise.
4 O TED Spread é medido pela diferença entre a taxa Libor (London Interbank Offered Rate) do dólar de três meses de maturidade (normalmente um indicador do custo do empréstimo interbancário) e a taxa dos Treasuries de três meses de maturidade (T-Bills), um indicador da confiança no sistema em geral (uma redução nos T-Bills representa uma demanda maior por títulos de curto prazo seguros, portanto, uma “fuga para a qualidade” no jargão financeiro). Podemos notar no Gráfico que, em momentos normais, esses spreads giram em torno de 0,5 ponto percentual, o que não mais foi atingido após o início da crise. Spreads maiores indicam uma desconfiança maior de um banco em relação ao outro.
5 A emissão de ABCP caiu em cerca de US$ 400 bilhões desde o início da crise, conforme dados do Fed (disponível em http://www.federalreserve.gov/releases/cp).
6 No sistema financeiro americano há um amplo conjunto de agências federais que apóiam o financiamento imobiliário, a agricultura, as exportações, a pequena e média empresa etc. O sistema imobiliário, por exem¬plo, conta com quatro instituições: Federal Housing Administration (FHA), Government National Mortgage Association (Ginnie Mae), Federal National Mortgage Association (Fannie Mae) e Federal Home Loan Mort¬gage Corporation (Freddie Mac).
7 Em grande parte a operação de resgate do Bear Stearns esteve relacionada com suas posições no merca¬do de derivativos. O volume nocional de suas operações com derivativos financeiros foi estimado em US$ 13,4 trilhões, aproximadamente o PIB (Produto Interno Bruto) dos EUA. Esse volume nocional representava um risco de perda real estimado em US$ 270 bilhões para suas contrapartes, uma vez que o valor de mercado bruto corresponde a 2% do valor nocional.
8 Para maiores detalhes sobre a atuação dos bancos centrais, ver Guttmann (2008) e Freitas & Cintra (2008).
9 Inicialmente estimados em cerca de US$ 200 bilhões, os prejuízos potenciais com a crise foram se avolumando ao ponto de o FMI apontar para uma estimativa padrão em torno de US$ 1 trilhão (IMF, 2008).
10 Existem inúmeros subterfúgios para postergar a admissão de perdas de parte dos bancos nos EUA. Dentre estes se destaca o chamado “level 3”, pelo qual é admitida a não necessidade de “marcação a mercado” do valor dos títulos cujo mercado esteja apresentando problemas de liquidez, como é o caso das RMBS e dos CDO. Esses títulos têm seu valor contábil estimado pelos próprios bancos, o que retarda a divulgação dos prejuízos efetivamente já incorridos pelas instituições bancárias. do crédito, com efeitos cumulativos sobre o consumo das famílias e os investimentos das empresas. A recessão americana se perfila como uma certeza neste início de abril.
Ainda que a atuação do Fed possa ter trazido alguma calmaria aos mercados financeiros após o evento Bear Stearns, agora é o desaquecimento econômico que potencializa a possibilidade de um “ciclo vicioso” econômico-financeiro – queda no consumo, queda na produção, queda nos investimentos, aumento dos defaults de empresas e, tal qual os problemas financeiros resultaram em contração econômica, a contração econômica pode resultar em maior stress financeiro –, de conseqüências impossíveis de prognosticar em detalhes até o momento. As propostas de reforma do sistema financeiro se sucedem, mas apenas poderão ter efeitos sobre a próxima crise. O certo é que o arcabouço teórico-institucional vigente a partir de meados dos anos 1980 enfrenta sua mais profunda crise e, quase certamente, não sairá intocado dessa exposição pública de suas fragilidades.

André Luís Forti Scherer é economista, técnico da Fundação de Economia e Estatística (FEE/RS) e professor do Departamento de Economia da PUCRS.
Marcos Antonio Macedo e Cintra, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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EDIÇÃO 95, ABR/MAI, 2008, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13