Fim de tarde, oito crianças arrumadas, banho tomado, cabelos molhados e penteados. Solange, uma de minhas irmãs, tinha cachos feitos – confesso que minha vontade era ter cabelos encaracolados. Sentados na calçadinha de ladrilho, em frente ao jardim, dentro do saguão de casa, aguardávamos o jantar. O prato chegava com capitães – capitão de feijão com arroz – capitão de baião-de-dois, um pouco de farinha para poder amassar com a mão e não queimar. A temperatura no grau certo… e aquela fumacinha que saia à medida que o capitão se abria, apenas exalava um cheiro cativante do tempero maternal. Estava pronto para comer. Que delícia! Sabor indescritível! Trocávamos pequenas porções. A comida era a mesma, mas tinha um gosto diferente em cada prato. Era o gosto do amor. Pedaços de ternura. Bocados de carinho. 
          
      Final do dia – o sol vai embora e a lua não tarda. O céu ainda era claro: raios da despedida do sol e luz da saudação do luar. Um jantar que se tornava solene pela delicadeza do simples – sabor que era realçado pela beleza do sentimento… e o jardim, onde o azul dos miosótis enchiam os olhos de cor… ambiente tomado pelo agradável perfume da infância.
             
      Naquela época criança era criança. As conversas eram sobre as brincadeiras do dia que terminava e os planos para o dia seguinte. Soltar papagaios; andar de bicicleta; jogar triângulo, bilas, trisca ou futebol; pular cancão ou corda; brincar de bonecas… e as leituras de cordéis, gibis, peterpan e sininho…e Monteiro Lobato que chegou revolucionando as nossas leituras. E o que não podia faltar: o rio, cheio ou seco, sempre presente. As brincadeiras variavam dependendo da época.
              
      Época em que sonhar era permitido todas as horas. Faz de conta… um era médico, outro motorista, uma professora, outro vaqueiro, uma aeromoça, outro comerciante, uma cozinheira… e nossa imaginação nos levava mundo a afora. Doces e lindos sonhos de criança.
              
      Os sinos tocavam. Era a hora da Ave Maria. Momentos sagrados de refeição e de oração. O nosso jantar era um momento sagrado, era uma mistura de proteção e carinho. Esse era quase um ritual diário ao cair da tarde, variando apenas o cardápio. Um cuidava do outro. Um admirava o outro. Afagos e carícias. Aquele pedacinho do tempo era só nosso. Meninos e meninas – simplesmente irmãos. O silêncio era lindo. Os olhares falavam alto.Os sorrisos de cumplicidade. Segredos da infância. Mistérios do jardim…  Nada que  pertubasse o jantar do papai. 
             
      Um gato passava arisco… o cheiro do café chegava. Sinal que na sala o jantar terminou. Depois de lavar as mãos – uma bacia de ágata, branquinha, sempre cheia d'agua, ao lado do tanque – aos poucos íamos nos sentando nos degraus que dividiam as salas de refeições e cozinha, parecia uma bancadinha. Ali ouvíamos a conversa dos adultos. Momentos de reunião familiar. Ocasião onde as crianças apenas escutavam. E ali embaixo, as brincadeiras, agora mais afetuosas, talvez adocicadas pelo brilho da noite, engoliam o tempo. Como que num passe de mágica a outra mesa já estava  preparada… Como tinha vontade de tomar café… só podia um pingo no leite. Então era leite com um pingo de café. E depois do leite quente íamos direto para o quarto. Época em que criança dormia cedo. E antes de adormecer, o que não demorava, trocávamos as últimas  palavras – acertos do novo dia. 
              
      Um barulho diferente vinha da sala. Era o noticiário – a Voz do Brasil. Um chiado, ruidos da transmissão, e vozes que chegavam aos pedaços, nos ajudava a rapidamente cair no sono. A noite toda, no canto de cada quarto, ficava acesa uma pequena lamparina, meia luz que permitia nossa movimentação noturna sem tropeços. Não éramos de muitos beijos e abraços, mas no meio da noite nos juntávamos e amanhecíamos, quase sempre na mesma cama, aquecidos pelo amor fraternal.
                 
      Lembranças! Belas lembranças! Lembranças que ficaram pra sempre com gosto de quero mais.