Certas coisas da infância, vividas na fazenda de café, eu não esqueço. Uma delas era o fato de que os patrões, vez ou outra, “convocava” uma moça dentre as colonas da fazenda, para servi-los na capital, como empregada doméstica. Estava em marcha a formação de mais uma vitalina, ou galo de São Roque:

A)- Como dizia acima, este evento era encarado como “oportunidade de ouro” para tais moças, uma vez que aos olhos dos pais de tão “sortuda”  moçoila e aos dela, principalmente; aquela era a única chance que tinham para evitar trabalhar o resto da vida puxando a enxada nas plantações de subsistência ou nas colheitas de café ou cana. A escolha final era da “mulher do patrão”, que muitas vezes tinha até dificuldade na escolha, dado o grande número de pretendentes. A escolha, em geral se dava para a mais jovem ou para a mais bem apessoada. Via de regra, ser mais jovem e mais bonita eram qualidades tidas como essenciais. Ato contínuo, o fazendeiro chamava o colono, pai da moça escolhida e assegurava a este que faria de tudo pela filha do colono, sendo para ela um verdadeiro pai, ou padrinho. A menina, ou pequena escrava, como queiram, a quem a Lei Áurea da Princesa Isabel nunca soube nem teve ciência, passa a chamar seu “protetor” de padrinho e sente por ele uma enorme gratidão. Essa pequena escrava que o patrão do pai pegou para “criar”, transformando-se numa mártir doméstica: faz todo o trabalho duro da casa. Sempre é ela a primeira a acordar a última a ir dormir. Não há serviço, por pior que seja, que não solicitem a ela que o faça. Muitas vezes tem para dormir um velho e surrado catre ou até uma rede armada num canto da despensa, o mais escondido possível das visitas importantes ou conhecidos da boa sociedade. Tal “afilhada” come às pressas, o resto das panelas, se existirem; veste as roupas velhas das filhas do padrinho; nunca saem para passear ou têm restrições até mesmo para ir à igreja de vez em quando. Roupa nova, só quando de ano em ano, vai fazer uma visita aos pais. Nessa ocasião, o “padrinho” dá um salário extra ao pai da afilhada; sem explicar por que nunca pagou salários para a afilhada. Mesmo assim, o pai de tal mártir acha que tudo aquilo está de bom tamanho para suas pretensões quanto ao futuro da filha. No entanto, tal futuro alvissareiro jamais chega. Essas mártires raramente se casam. Na verdade pouquíssimas chances elas têm, pois as “madrinhas” fazem com que qualquer pretendente desista da sua pequena escrava, com a falsa intenção de proteger-lhes a honra e para que não se percam. Assim os anos vão passando e vão tornando-se vitalinas guardadas no caritó, como se diz no norte e nordeste, ou “galos de São Roque”, como se diz nos sertões do sudeste.

B) – Outra boa fonte de vitalinas e galos de São Roque, são as meninas mais velhas numa família muito pobre. O egoísmo das mães, muitas vezes contribuem para a reclusão da filha, pois a filha mais velha, a partir de sete ou oito anos de idade, já recebe um irmão da enorme prole dos pais, para criar, como se seu fora. Ela assume todas as responsabilidades quanto ao irmãozinho (às vezes já tem outro irmão a caminho); ela faz o mingau, a mamadeira, dá-lhe banho, balança-o nos braços para dormir, vela pelo sono do menino, levanta à noite para atendê-lo e o carrega em seus braços ou nas costa em todo o lugar aonde a família tenha que comparecer. Ainda têm que manter o sortimento de água na casa e outras atividades. Se os irmãos crescem, são elas que lhes lavam e engomam as roupas, que cozinham e mantém a casa em ordem. Quando são agricultores, além de tudo isso, ainda têm a obrigação de arranjar tempo para ir ao eito, trabalhar com os irmãos a quem serve. Muitas vezes a diferença de tamanho é pequena entre a irmã-pajem e o irmãozinho. Aí elas inventam o uso de carregá-lo sobre os quadris, de lado. Não são raras aquela que ficam “tortas”, devido” a esse mister. Enquanto isso a mãe (ou mainha, como se diz no nordeste), vai pondo filhos no mundo; às pencas. Muitas parem uma vez ao ano. Há casos que, com trinta anos de idade parecem velhas de setenta, sem carnes, sem dentes, pele manchada, escangalhadas. E ficam ali, escoradas no batente da porta, ou à beira do fogão de lenha, cachimbando e cismando, enquanto os fetos lhes crescem nas entranhas e as meninas trabalham. E como essas meninas são necessárias, as mães não permitem que namorem ou se casem; daí aparecem de novo a vitalina ou galo de São Roque”.

C) – Entre as citadinas, principalmente nas capitais, aparecem novas solteironas. São as mulheres muitas bem preparadas, com ótimos empregos e ganhando muitíssimo bem. Elas são extremamente exigentes para com os pretendentes, bastando um pequeno deslize para que os afastem de suas vidas. Elas não moram com os pais e não suportam cunhadas ou irmãs casadas dando-lhes conselhos. Freqüentemente viajam, falam pelo menos três línguas e têm um gosto apurado para comidas e bebidas finas. Vez ou outra se dão o direito de ir a um motel de bom nível com um colega de profissão ou de faculdade, porém jamais admitem que estejam apaixonadas. São, sem o saberem, um novo tipo de vitalina e galo de São Roque dos tempos atuais. A diferença é que para estas, ser solteirona é uma opção de vida delas e não de outras pessoas.

D) – Ainda temos aquelas que, por sua feiúra e triste figura, tendo ainda uma irmã mais bonita, ficam ali, administrando a casa. Quando pequena cuida dos irmãos e da irmã mais bonita, Depois que todos se casam, elas passam, via de regra, a tomar conta dos pais velhos e doentes. Muitas vezes ainda, os pais fazem pedidos estranhos à filha, tais como cuidar de um irmão descabeçado ou irmã que briga com o marido. Assim, os pais garantem que aquela vitalina ou galo de São Roque nunca mais tenha a chance de se casar. Ela fica ali, ao lado deles, até que morram, quando então vai morar na casa de um irmão casado, sob o jugo da cunhada, que passa então a desfrutar dos serviços de tal escrava. E ela passa a cuidar dos sobrinhos, até que um dia a velha senhora de negro, desdentada e de muitas faces, venha buscá-la para levá-la ao descanso final, junto ao pai eterno. E vai, sem nunca ter sentido o carinho íntimo de um homem: invicta, vitalina, galo de São Roque.

E) – Por que “Galo de São Roque”? -É difícil precisar a razão; o que temos são sinais das razões de se chamar assim as moças solteironas nos sertões do sudeste. Na iconografia de São Roque, vemos que, geralmente ele é representado em trajes de peregrino andante (ao que parece ele tornou-se mesmo peregrino depois que doou, aos vinte anos de idade, toda sua fortuna aos pobres de Montpellier, na França, no século 16), às vezes aparece vestido com roupa típica dos peregrinos do “Caminho de São Tiago de Compostela”, as “vieiras”, com um longo bordão (borduna) nas mãos, no qual pende uma cabaça, tão nossa conhecida, para transporte de água. Em muitas ilustrações, aparece visível uma ferida, próxima ao joelho, oriunda do “bubão” (da peste bubônica, epidemia fatal que matou milhares de pessoas em todo o mundo, especialmente na Europa). Sabe-se que São Roque cuidou e curou muitas pessoas, porém acabou por pegar a doença. Depois de infectado, foi morar numa floresta, sozinho. Diz a lenda que um galo o acordou, com seu canto, justamente quando ele estava à beira da morte; e teria morrido de fome e sede se um cão providencial não lhe trouxesse diariamente um pão e se da terra não brotasse uma fonte de água com a qual matava a sede. Diz ainda a lenda que o cão lambia-lhe a ferida, terminando por curá-lo de tal moléstia. Tal cão aparece em muitas das ilustrações, porém o galo não. Como um dos preceitos de vida de São Roque era servir e não ser servido pelo Homem, acredita-se que nesse aspecto as moças solteironas acreditam nesse preceito e o perseguem à exaustão. Elas, santamente, servem a todos da casa e não se servem de nenhum homem.

F) – Por que “Vitalina e Caritó”? Como aprendi, lendo Rachel de Queiroz, cearense inesquecível, o caritó é a pequena prateleira no alto da parede das casas de alvenaria ou madeira, ou buraco (ou nicho) nas casas de taipa ou pau-a-pique, onde as mulheres escondem fora da curiosidade e do alcance das crianças (e muitas vezes do marido), o carretel de linha, o pente bonito, o pedaço de fumo do bom, o cachimbo, o vidrinho de perfume, um papel com uma oração, uma velha foto dos pais, uma garrafa de vinho, etc. Já a Vitalina é a solteirona, a moça velha que, embora muitas vezes se enfeita, porém nunca encontra marido. E assim, diz-se, especialmente no nordeste, que a “vitalina” ficou lá no Caritó, na prateleira, num cantinho, sem uso, esquecida, guardada intacta como nasceu.

G) – E hoje, como estão as solteironas? -Nos sertões, já sabem, através do rádio ou da televisão as novidades do século 21. As camponesas que ainda trabalham no campo, não raro fazem cursos noturnos de alfabetização e se tornam pessoas interessantes. Interessantes o suficiente para arranjar marido, embora saibam que a vida pode oferecer algo mais que uma vida cheia de sacrifícios. Muitas são líderes de sindicatos, viajam, têm contatos com rapazes interessantes. Algumas chegam até a ter posições políticas dentro da comunidade onde vivem. E como os homens também mudaram de comportamento, hoje eles aceitam essa importância que se dá às mulheres. Nas cidades pequenas, elas formam um grupo poderoso, são diretoras de hospitais e de escolas, professoras ou garis. No entanto descobriram que podem viver sozinhas com dignidade e não precisam viver sob o tacão de quem quer que seja. Nas capitais, algumas mulheres, depois de um árduo dia de trabalho, ainda têm que fazer cursos noturnos ou aos sábados, escova no cabeleireiro, maquiar-se, passar hidratantes e filtros solares (querem retardar a velhice), tem que escolher roupa para o dia seguinte, combinar sapatos e acessórios, sabendo que no dia seguinte vai meter-se de novo no trânsito engarrafado, e correr o risco de serem assaltadas, terão que disfarçar o mau humor das TPM, de ter que ficar ereta na frente do computador, telefone ao ouvido, resolvendo problemas que nem sequer são delas. E como se não bastasse, são auditadas, avaliadas, fiscalizadas, cobradas; não podendo apresentar-se sem que estejam impecáveis, magras, depiladas, em forma, sorridentes e solícitas, cheirosas, de unhas feitas, sem falar do currículo impecável, recheado de mestrados, doutorados e especializações. E ainda ganham menos que os homens para a mesma função! – Ainda assim são “vitalinas”; são “galos de São Roque”. 

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.