José J, Veiga foi profeta: em sua famosa novela, deu-se que os ruminantes invadiram uma cidade, e tomaram de assalto a sua alma. Nenhuma instituição ou cidadão desfrutou de ordem e de paz, depois que os ruminantes (metáfora da brutalidade) chegaram. À época da publicação do livro, que estourou, em sucesso imediato, críticos de plantão cogitaram de ser a horda dos ruminantes uma alusão aos bárbaros (ou à ditadura, que fazia das suas, colocando a liberdade em camisa de força, e costurando a roupa da Constituição Brasileira segundo o molde de seus interesses). Veiga, caladão como sempre foi, não gastou energia em cair na armadilha de rotular-se como papagaio ideológico. Não é função do artista desvendar os véus que colocou em sua obra, a fim de faze-la artística, ou de nela introduzir verdades ocultas à percepção rasteira.

      Eis senão quando, os ruminantes, que só eram muitos para a cidadezinha interiorana, que invadiram com estrondo, tornaram-se mais de 150 milhões, ultrapassando a população humana de nosso país. Pois são favas contadas saber que hoje temos mais bois do que pessoas, no Brasil. Certo, ao menos foi este mais um avanço quantitativo, como se deu nos vinte anos de vigência da ditadura, que dentre outros feitos, deu-nos este, de que se jactava, ironicamente, Alfredo Benetti, pai do meu amigo Nilo Benetti: “A Revolução de 31 de março foi muito boa para o Brasil. Nosso país nunca antes teve cem milhões de habitantes, e agora tem!”.

      Dito isto, faz-se urgente refletir sobre o significado deste avanço a mais, em nossa estatística econômica. A hora dos ruminantes chegou, triunfante, produzindo grande estrondo, e extraordinário avanço predatório em nosso cerrado, campos e florestas. O Brasil passou a ser um país ruminante. É que, para cada boi posto a pastar, energúmeno e forte, necessário se faz desmatar um mar de terras. É de se calcular o preço ambiental de tão vasto ruminar. Tendo, hoje, mais bois do que pessoas, é de se perguntar: e o que será de nossas florestas? Onde passa boi passa boiada – e homem nenhum dá conta de reparar o estrago, quando acontece um estouro.

      Sem falar que a terra tende a tornar-se deserto de areia nua, depois de submetida a pisoteio intenso. Onde passa boi passam boiadas, devastadas com furor selvagem, para que eles possam ser postos a pastar, sem maiores cuidados com o dia de amanhã. Pois que boi no matadouro costuma ser a coisa melhor que há – para quem o cria, para quem o come, quem o comercializa. Principalmente, com sua engorda e seu abate se regala a viúva do erário, ávida por embolsar os impostos e taxas inerentes à carnificina. Onde passa boi, passa boiada, que leva à seara do nada o país da esperança. Para que um quilo de carne bovina possa ser produzido, lá se vão dezesseis mil litros de água doce. Que haverá de fazer muita falta, quando vier a faltar. E atentem para o fato de que em muitos lugares do Brasil maravilha o precioso líquido já é artigo de luxo.

      Onde passa boi, passa boiada. E para cada flato (ou bafo) lá vai, em forma de gás metano, o aumento do descalabro térmico que irá esturricar o planeta em prazo não muito longo. É mole, ou queremos mais? Talvez a hora dos ruminantes, coincidindo com a tragédia planetária do aquecimento global seja propícia a colocar-se em debate um tema que vem sendo objeto de verdadeira e santa cruzada, por parte do senador Cristóvão Buarque: a de que precisamos reeducar o humanismo, ou talvez educá-lo pela primeira vez, já que nunca foi educado. Pois, segundo o senador e ex-reitor, este humanismo representa a arrogância antropocêntrica, burra e irracional, do ser humano diante da natureza.

 Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.