tributo a Camillo Martins Vianna

      Camaradas,

      Do Brasil sentinela do Norte, canta alto e forte o Hino do Pará. Nestes tempos de águas turvas e ameaças à soberania do povo brasileiro nas fronteiras da Amazônia, carece prestar mais atenção ao extremo-norte do País deitado eternamente em berço esplêndido. Ano de 2008, o Pará velho de guerra tem história para contar, soldados e povo unidos lutaram para romper o cordão colonial. Patriotas paraenses sufocados em Belém reagruparam-se na ilha do Marajó, na heróica vila de Muaná. Onde, em 28 de Maio de 1823, proclamaram Adesão do Pará à Independência do Brasil. A reação contrária foi mais dura e irracional do que se podia creditar à inteligência humana.

      Ainda assim, não desistimos nunca em ser brasileiros de parte inteira: esmagados pelos colonias em luta armada, condenados à morte e deportados líderes para injusto cárcere em Portugal, alguns mortos à bordo da nau Andorinha do Tejo e outros nas masmorras de São Julião da Barra. Enganados no conluio do Paço (a risível “data magna” de 15 de agosto), violentados e humilhados pelo agente imperial inglês na “tragédia do brigue Palhaço”, presos e assassinados 252 patriotas por asfixia no porão do navio. Desesperaram-se os paraenses, enfim, da falsa “independência” e enveredaram pela Cabanagem de 1835. Tudo causado pela obtusa incompreensão imperial a respeito do movimento popular-militar 14 de Abril… Agora, decorridos 185 anos destes feitos, reina silêncio no noticiário da imprensa (sempre ocupado por escândalos baratos, factóides políticos, sexo e violência na televisão, crises sem fim).

      Uma metrópole ribeirinha que cresceu de costa para o rio e um país-continente que não conhece a verdadeira história do grande mar de água doce (Grão-Pará), abafada que foi pela lenda do “rio das amazonas”… Uma brava gente brasileira que pagou caro o direito à Terra-Firme (isto é, de os tapuias habitar o chão continental) na federação do Arapari. Ou seja,  formação autóctone da antiga terra Tapuia (Grão-Pará luso-tupi) sob a constelação do Cruzeiro do Sul. É claro que isto é apenas rascunho da memória que não se apaga, por grande teimosia de quixotes mal amados pela gloriosa sociedade pragmática industrial. Caso, por exemplo, do decano ambientalista doutor Camilo da Sopren.

      Estava eu a matutar sobre a chuva e o sol poente visto da academia do Peixe Frito, querendo escrever sobre um olvidado “Projeto Tapuia”, depois ir ao Ver-o-Peso espiar de lomge a ilha das Onças desde a praça do Pescador; antes de ir à cerimônia da Prefeitura, no Solar da Beira, e festejar a feira apontada como cartão-postal da cidade. Quando – macacos me mordam! – , me lembrei, hoje é 14 de abril.

      Sem foguete e sem bilhete no país do pau-brasil, me deu na telha flanar pela Praça Brasil. Lugar simbólico aonde se pode ver a estátua muda do esquecido índio Nheengaíba em riba do monumento público. Que beleza de metáfora na cidade desmemoriada! Que calada pancada na democratização da educação nacional (caducos de 180 anos a querer debitar sem desconto tudo de uma vez, em apenas 8 anos, às costas largas de Lula lá no Planalto; e o Povão: “me engana, que eu gosto”…).

     Paira ao alto, debaixo de sol e chuva, a estátua do bárbaro ribeirinho pacificado pelo Padre Antônio Vieira (a fazer 350 anos em pleno Fórum Social Mundial, ano que vem). Por ironia, o “negro da terra” imortalizado em bronze confronta o tribunal de Justiça do Trabalho, bairro do Umarizal. Onde a negritude do poeta Bruno de Menezes cantou e dançou ao som do batuque. Bairro emblemático de nomes de ruas e travessas que falam da luta desigual do povo armado ou não pela Adesão do Pará à Independência do Brasil.

     Pois bem, na Praça Brasil em Belém posso eu, que nem doido, sentar praça e parar em frente ao hospital geral do Exército perguntando aos passantes, para remédio da memória, se acaso sabem do que trata o dia 14 de abril. Logo vai aparecer alguém menos apressado que confundirá a pergunta com a rua 14 de Abril. Gentilmente me ensinará o caminho. Mas, justamente, eu é que o queria encaminhar ao tempo histórico destas ruas do Umarizal. Já sei que meu ouvinte está com pressa, infelizmente. Fica a conversa para outra hora. É pena. Pois é importante refrescar a memória do Povo Brasileiro acerca de seus direitos históricos na Amazônia.

     Volto ao “Projeto Tapuia”, o outro lado da conversa. Pelo ano de 1975 Camilo Viana “batia lata” para acordar o Pará velho de guerra… Dez anos anos antes eu o conheci pelejando ao lado da educadora Ana Rosa Bittencourt, a fazer extensão universitária na ilha do Marajó. Fiquei seu fã. Então, o perigoso Camilo inventou uma agitação de idéias chamada Amazoníada. Aquilo era, paresque, uma piada para sacudir a estudantada e matar de rir aos professores… Todo nobre representante e doutor pesquisador muito ocupados, e o danado a revirar cabeças, à conquista de corações e mentes do interior.

     Foi assim que ele me convocou um dia, em cima da hora. Oh, meu doutor, o que eu havera (assim sem acento agudo) de dizer? Te vira, caboco e abre a boca. Saí correndo, botei no papel umas idéias que vinham da fronteira, lá de Roraima com a Venezuela… Entrei pelo cano: atrasado, no meio do fogo. Olha a platéia com olhos plantados em mim: esse cara é doido? Vai ver que sim… Eu queria inventar educação popular à distância (a televisão acabava de chegar em Parintins-AM… levei um susto ao deparar a cidade deserta, até descobrir o povo apinhado pra ver novela).

      Pois, o sonhador queria televisão a dar aulas à plebe rude. Uma loucura! Uma mestra nascida lá naquelas bandas isoladas, criticou o projeto tapuia dizendo ela (com razão) que se não há eletricidade, não tem como ligar  televisão. Por isto, não, professora; disse o caboco. Eu saí do mato e passei pela Zona Franca de Manaus onde vendem motosserra à beça e também gerador elétrico portátil. Debalde: não era recurso técnico que faltava, nem mesmo verba, era a tal vontade política.

      Depois, como eu insistisse muito com o ensino à distância com a cara caboca mais inocente do mundo; para se livrar do aperreio o amigo vice-reitor, delicadamente, aceitou estudar o dito projeto “Tapuia”. Não duvido que tenha feito e até mesmo que ainda esteja a matutar sobre o assunto. Sem jamais atinar se isso é para o bem ou para o mal da boa gente de cor do interior, tão prestativa aos brancos. Principalmente agora, que ele e eu nos aposentamos.

     Me lembrei do caso do dr. Ritacínio Pereira, médico de saúde pública que queimou pestanas a pesquisar hábitos alimentares da população amazônica. Ele escreveu o ensaio “O tipiti e os gados do rio”. Morreu de velho a bom esperar que lhe publicassem o trabalho. Não sem escutar promessas firmes de colegas médicos e amigos reitores, que lhe teriam dito que o livro iria ao prelo por relevante utilidade pública, nem mesmo o conselho estadual de cultura regateou a importância da obra.

      Quando acaba, mingau de bacaba e necas de pitibiriba. Muitas águas rolaram sobre a solitária estátua do índio da Praça Brasil. Ensino popular à distância e difusão do saber tradicional, um dia ainda há de vir à praça (talvez agora que Marajó se prepara a ser reserva da biosfera pela Unesco). Chove nos campos de Cachoeira e Dalcídio Jurandir já morreu. Com o premiado projeto “Nossa Várzea” de regularização fundiária é como se, por acaso, o projeto tapuia tivesse fugido da gaveta onde jazia entregue à troça das traças. A academia do peixe frito dá o grito do tipiti e os gados do rio: o tempo começa a circular pelas margens da Ilha dos Nheengaíbas e arredores. Mas, o pior cego é o que não quer ver o peso da cultura popular.

  

Belém- PA, 14 de Abril de 2008