Pedro e seu cavalo (2)
Entre Silas e Caríbdis, o espeto e a brasa, o Céu e o Inferno, vagam Pedro e seu cavalo no dia incômodo e chuvoso do Cerrado. Goiânia perplexa, indaga: quem é o cavaleiro de bronze, polaina e chapéu que deseja pousio e pastejo para seu rocinante? Ninguém responde. Ou melhor, tanta gente contesta, que já não se sabe de onde vem a fala. Eco. Assim o clamor retumba de prédio em prédio, de praça em praça, em busca da palavra definitiva, misteriosa, esotérica. Onde pousar o cavalão e seu cavaleiro. Digo que na medida em que a cidade foi crescendo, depois do gesto gerador, gestador, paridor e desplacentador de Pedro e seus companheiros estadonovistas, o maior trabalho de sua gente foi exercitar o esquecimento. Aqui nada envelhece, tudo é arrasado em nome do novo. O belo edifício art dèco vai ao chão ou o cobrem de placas e luminosos. A ganância imobiliária espalhou a cidade em inumeráveis bairros, com imensos vazios reservados à especulação. Os mais pobres se escafedem por trás das grotas, dos montes, ainda que poucos e distantes. O que resta de terreno entre a população esgarça, vai virando filé da especulação. Verticaliza-se a cidade com o solo criado nas incorporações e, num lote de quatrocentos metros, se levantam edifícios de vinte andares com centenas de apartamentos, com preços nas nuvens. Vendem o solo, a rua, a paisagem que resta e o sonho que o mercado inventa. Depois a moradia dos panfletos, dos vídeos gritantes, dos anúncios de meia página, acolhe o incauto que pagará toda a vida, por umas gavetas aéreas, umas catacumbas apertadas. Tudo, talvez, para que se acostume à exígua terra que o espera, ao indiferente e impessoal jazigo dos cemitérios que brotam, a cada dia, para acolher a população silenciosa. Esses terrenos também vão às alturas. Devem ser comprados para garantir que o morto tenha digna inumação, depois lentamente enganchado em alguma UTI paga por bolso próprio ou pela viúva previdência que, que, sem servir à vida, serve bem ao mercado da morte. Sem consentimento para morrer em paz, estufa, inchado, quase podre, dos oxigênios, soros e aparelhos conservadores da carne final. É, então, agarrado, por um sinistro proselitismo de enfermeiros, serviçais e catadores de corpos em disputa, são levados às morgues, destripados, formolizados, remanufaturados, maquilados, para que tenham aquela mesma cara cerosa e isenta dos velórios. Aí, podem esperar os ritos, as velas, as flores, as missas e o desespero dos vivos, cujo temor da dor, dos deuses e da morte, simulam breve consolação. Enquanto madames puxam pelas mãos adolescentes grávidas pelos mercados, a classe média entretém o ócio nos parques, vão torturando meninas, abusando e matando meninos. Enjaulada, gente ainda capaz de alegria elege, sacolejando, a Miss Eixão navegante num esqueleto de transporte caótico que atravessa a Avenida Anhanguera rasgando insolente a antiga harmonia art-dèco.
(Continuo na próxima semana.)