“Eu não deveria te dizer,/mas esta lua, este conhaque/deixam gente comovido como o Diabo”. Carlos Drumond, o anjo gauche, vindo das montanhas de Minas, escreveu estes versos por saber que os anjos são impassíveis às nossas angústias, e só o Diabo pode se comover. Inútil nos fiar no poder que as palavras, em estado de poesia, possam ter. Pois segundo Luis Costa Lima, “A poesia não salva ninguém. Ao contrário, nos deixa tortos, em nossos cantos”. Em meio à fumaça e ao furor do tempo das máquinas insones, Drummond fez a poesia da blague e do humor negro, assumidamente anti-convencional, sendo ele próprio a imagem do homem convencional em tudo. Praticou o anti-lirismo do estranhamento. Sem saber, ou de caso pensado, passou a ser uma pedra no sapato dos anjos perfeitos.

      O poeta itabirano assume mergulhar nas inquietudes do Eu, não para tentar entendê-lo, mas para exercê-lo. Não se refugia no reino das palavras para se afastar do conflito, mas para torná-lo criativo. Em Minas, de uma roda de mentes brilhantes, o que mais reluziu, como perfeito diamante, foi o anjo torto itabirano – o mais namorador, e o menos bem informado. Estranha ironia, a confirmar que nem sempre os mais eruditos são iluminados pelo dom da criação. Dentre os anjos conformados, o poeta é o anjo bêbado, que desafina no coro dos contentes: “Tudo é aparência/tudo é espuma./Muito poucas coisas são importantes na vida/”.

      Uma voz silenciosa, surgindo das áspedras montanhas de Minas, parecia dizer ao magro vate, em seu espanto perante a máquina do mundo: “O amor no escuro, ou no claro, é sempre triste, meu filho Carlos”. Não desejando ser poeta de um mundo caduco, Drummond também não quis cantar o mundo futuro. Em sua angústia criativa, a ele só interessava a matéria do presente. O tempo foi a sua matéria. O tempo presente. A vida presente: “Chega um tempo em que a vida é uma ordem/a vida, apenas/sem mistificação/”.

       Depois, da descrença niilista, passa ao instante de participação na marcha do existir. É quando descobre que a flor pode furar o asfalto, “vencer a dor, o medo, o nojo e o ódio”. Então, “no auge de um porre de esperança”, segundo Leandro Konder, ingressa na militância comunista, e não se adapta à rigidez da burocracia partidária. Ao brigar pela posse de um livro de atas, o poeta rompe com o partido. Mais tarde, procurado por uma militante, que pedia-lhe para assinar um manifesto pela paz, encabeçado pelo Partidão, recusa-se a fazê-lo. Diante da insistência, e da insinuação de que ele seria pela guerra, ele perde a placidez: “Sou sim, minha filha! Sou contra a paz e pela guerra!”.

      “Foi preciso que um poeta mineiro, não dos maiores, mas entre os mais galhofeiros”, visse na alegria triste de Carlitos a sua própria tristeza de nunca ter encontrado a criança que foi. E assim se viu seguindo de mãos pensas, neste mundo habitado de dor e desesperança. Que outro poeta, senão este, que procurava elidir o peso da gravidade de existir poderia invocar uma namorada que morreu de apendicite? A morte, em sua forma bem banal, vem ressaltar o destrambelho das paixões do desenfreio. O que difere da morte madrugadeira, do entregador de leite: “A noite geral prossegue/mas a manhã custa a chegar/”. Mesmo numa aurora de espanto e sangue inocente, em que, muitas vezes, a viaja.

      Tendo sido a palavra seu exílio voluntário, foi sob o signo de seu mistério que vislumbrou o sentido possível do mundo. Se tudo nesta vida são meras miragens, amores que nos ferem “sete vezes por dia, em sete vidas de ouro”, são só imagens do sonho humano o jogo da poesia. Deu-se, então, que no entardecer de sua existência, em pleno crepusculário dos oitent´anos, o poeta recolheu-se em si mesmo. E, tal como Raduan Nassar, fez um acordo com o mundo. Em troca de seu barulho, deu-lhe o seu silêncio.

 O anjo escrevedor

Não querendo aprender
a decifrar a alma dos negócios,
fez-se anjo torto,
e não entrava em clubes
que o aceitavam
como sócio.

Entre as montanhas de minas,
no brejo das almas,
o poeta-gauche
entrou no som do caminho
e foi fazer destino
como perfeito burocrata
e alquimista do Verbo.

Não sendo homem
de ócios capadócios,
viveu tentando ocultar
sua magra figura
do olhar do absurdo,
mesmo sabendo:
ninguém, jamais,
há conseguido.

Assim, foi um ser tão discreto
que não foi tentado
pelos anjos da ingenuidade,
nem por demônios per-versos.

Em um mundo governado
menos pelos vivos
e mais pelos mortos
e seus vampiros,
foi mais um anjo escrevedor
a desafinar
no coro dos contentes.

Bêbado de lucidez,
só andou de mãos pensas
na desordem espandongada
da máquina do mundo.

 Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.