Poeta Morto
I
Que bom, assim, de golpe, desenterrar teu nome, amigo;
ser de novo, ao pé de ti, a mão que reencontra
aquela antiga mão, aquele mistério
de homem que punha sua vida, suas potências
a desandar caminhos sem paradas!
Quando dizias: – “Dai-me aqui o arrebol, dai-me o alegre,
dai-me o tardio azul com tantos pássaros,
e o olor da terra dai-me, para cerrar meus olhos
a essa luz poderosa que não sei de onde brilha, e me fatiga
em tudo quanto miro, no que toco
como um cego de inábeis mansidões.”
Porque tu tinhas tantos anos obscuros, tantos
anos detrás de teu coração, e em frente apenas
aquele muro sem fé, aquele muro a cair-te
diante dos olhos teus.
Porque te desprendias de teu corpo a pedaços
cada instante, e cavavas raivosas rachaduras
em ti mesmo, em teu passado, como um velho cavalo
que suas noites perdeu em galopes selvagens,
e ora está num rincão de soledades mordendo sua amargura.
Porque irremediavelmente eras uma ardente batalha,
uma árvore só e triste desfolhando-se no outono.
Eras o inimigo de tua mesma claridade, o lobo
de tuas próprias entranhas, irremediavelmente.
E ao chegarem os tantas vezes cegos,
os distantes dessa potência amorável da vida,
tu saías a repartir teu amor, tua palavra
rigorosamente guardada nos livros, tua voz
singelamente cheia de experiência, tua ilusão
que desde largos anos te crescia no peito.
Que bondade, Senhor, ai, que bondade
tão cegamente compartida, tão raivosamente compartida!
Lenho bom, lenho de rachaduras recentes,
lenho como uma cruz por todos combatida.
E hoje, que simples, vê, assim, de golpe,
desenterrar teu nome, amigo, desenterrar teu nome…
E dizer para que compreendas os que agora me acompanham:
– “Era um homem bom, e justo. Um homem vivo,
cheio de claridade ao pé de uns versos tristes.
Um homem puro e certo, como um homem.”
II
Chegas. Não te foste. Falas.
E tua voz começa a desprender-se
como o fruto de uma árvore
quando o outono a golpeia.
És tu? Não te foste. Falas.
Cai teu coração cada instante
sobre estas coisas. Como se
um vento poderoso te privasse
de espaço para amar, e a golpes
fosses fazendo um vão, uma muralha,
defendendo-te a sós, defendendo-te
no poema escrito, no papel
que tantas vezes cai lá fora para
que venham uns pés apressados,
uns pés, e o desgarrem e o atirem
a morrer como uma coisa inútil.
Porque é tarde. E sabes que outro dia
te esteve acompanhando, foi
um barro mais para medir teu tempo.
E é hora de pensar. É hora
de fechar os olhos para ver
onde andam tuas lembranças, onde
puseste aqueles trajes, aquele chapéu,
aquele sapato velho, o cachecol,
aquele livro de escura mansidão,
e o peso da pena com que escreves
tantos versos debalde, tantas cartas
que te obrigam a ser um solitário.
É nada, já, mirar-te e não sentir-te.
E nada, sim, que teus olhos se fechem,
que se mergulhem numa escura selva,
numa paisagem de desolados pinheiros.
Está tua carne alerta. Está tua alma alerta.
E Deus, que te vigia, está em teu sonho.
A noite entra em teu quarto. Como criança
cresce teu coração dentro do sonho,
e docemente vens, vens e te entregas
a essa senda recôndita onde um lábio
te chama com um nome, com um raro
metal de flor que nasce a cada instante.
Amanhã porventura, sim. Talvez amanhã.
Grandes vozes líricas hispano-americanas
Seleção e Tradução: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
Editora Nova Fronteira – edição 1990