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    Comunicação

    Poeta Morto

    I  Que bom, assim, de golpe, desenterrar teu nome, amigo; ser de novo, ao pé de ti, a mão que reencontra aquela antiga mão, aquele mistério de homem que punha sua vida, suas potências a desandar caminhos sem paradas! Quando dizias: – “Dai-me aqui o arrebol, dai-me o alegre, dai-me o tardio azul com tantos […]

    POR: Redação

    4 min de leitura

    I

     Que bom, assim, de golpe, desenterrar teu nome, amigo;
    ser de novo, ao pé de ti, a mão que reencontra
    aquela antiga mão, aquele mistério
    de homem que punha sua vida, suas potências
    a desandar caminhos sem paradas!
    Quando dizias: – “Dai-me aqui o arrebol, dai-me o alegre,
    dai-me o tardio azul com tantos pássaros,
    e o olor da terra dai-me, para cerrar meus olhos
    a essa luz poderosa que não sei de onde brilha, e me fatiga
    em tudo quanto miro, no que toco
    como um cego de inábeis mansidões.”

    Porque tu tinhas tantos anos obscuros, tantos
    anos detrás de teu coração, e em frente apenas
    aquele muro sem fé, aquele muro a cair-te
    diante dos olhos teus.
    Porque te desprendias de teu corpo a pedaços
    cada instante, e cavavas raivosas rachaduras
    em ti mesmo, em teu passado, como um velho cavalo
    que suas noites perdeu em galopes selvagens,
    e ora está num rincão de soledades mordendo sua amargura.

    Porque irremediavelmente eras uma ardente batalha,
    uma árvore só e triste desfolhando-se no outono.
    Eras o inimigo de tua mesma claridade, o lobo
    de tuas próprias entranhas, irremediavelmente.
    E ao chegarem os tantas vezes cegos,
    os distantes dessa potência amorável da vida,
    tu saías a repartir teu amor, tua palavra
    rigorosamente guardada nos livros, tua voz
    singelamente cheia de experiência, tua ilusão
    que desde largos anos te crescia no peito.

    Que bondade, Senhor, ai, que bondade
    tão cegamente compartida, tão raivosamente compartida!
    Lenho bom, lenho de rachaduras recentes,
    lenho como uma cruz por todos combatida.

    E hoje, que simples, vê, assim, de golpe,
    desenterrar teu nome, amigo, desenterrar teu nome…
    E dizer para que compreendas os que agora me acompanham:
    – “Era um homem bom, e justo. Um homem vivo,
    cheio de claridade ao pé de uns versos tristes.
    Um homem puro e certo, como um homem.”

    II

    Chegas. Não te foste. Falas.
    E tua voz começa a desprender-se
    como o fruto de uma árvore
    quando o outono a golpeia.
    És tu? Não te foste. Falas.
    Cai teu coração cada instante
    sobre estas coisas. Como se
    um vento poderoso te privasse
    de espaço para amar, e a golpes
    fosses fazendo um vão, uma muralha,
    defendendo-te a sós, defendendo-te
    no poema escrito, no papel
    que tantas vezes cai lá fora para
    que venham uns pés apressados,
    uns pés, e o desgarrem e o atirem
    a morrer como uma coisa inútil.
    Porque é tarde. E sabes que outro dia
    te esteve acompanhando, foi
    um barro mais para medir teu tempo.
    E é hora de pensar. É hora
    de fechar os olhos para ver
    onde andam tuas lembranças, onde
    puseste aqueles trajes, aquele chapéu,
    aquele sapato velho, o cachecol,
    aquele livro de escura mansidão,
    e o peso da pena com que escreves
    tantos versos debalde, tantas cartas
    que te obrigam a ser um solitário.
    É nada, já, mirar-te e não sentir-te.

    E nada, sim, que teus olhos se fechem,
    que se mergulhem numa escura selva,
    numa paisagem de desolados pinheiros.
    Está tua carne alerta. Está tua alma alerta.
    E Deus, que te vigia, está em teu sonho.
    A noite entra em teu quarto. Como criança
    cresce teu coração dentro do sonho,
    e docemente vens, vens e te entregas
    a essa senda recôndita onde um lábio
    te chama com um nome, com um raro
    metal de flor que nasce a cada instante.
    Amanhã porventura, sim. Talvez amanhã.

     

    Grandes vozes líricas hispano-americanas
    Seleção e Tradução: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
    Editora Nova Fronteira – edição 1990
     

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