A ética do Ócio deve ser o exercício da liberdade com responsabilidade: não se pode viver boa preguiça a prevaricar, desperdiçar, roubar, violentar, matar o tempo ou tirar a vida de alguém. Não pode haver ócio com dignidade explorando trabalho alheio ou a morrer de tédio… Domenico De Masi cita J.L. Borges num conto no qual o personagem afirma que o paraíso existe sim, na própria Terra. “Mas o inferno também existe: e consiste em não se dar conta de que vivemos num paraíso”.

      O Diabo é colonialista, sua astúcia é fazer crer que ele não existe e que a colonização foi positiva para os povos colonizados. A cegueira amazônica denunciada no paradoxo do peixe de quatro olhos (tralhoto) em terra de cegos, no “Sermão aos Peixes” (pe. Antônio Vieira, Maranhão, 1654); é, sobretudo, a contradição da pobreza do povo em região tão rica. Gente que passa fome, vitima de trabalho escravo e de endemias tropicais, gemendo e chorando na velhice face à morte inevitável… Enquanto a miséria humana contrasta com a incrível biodiversidade e diversidade cultural extraordinária.

      O mundo não sabe que a seguir as trilhas do sol poente a brava gente brasileira conquistou o “rio das Amazonas”, melhor dizendo os Tupinambás à procura do paraíso selvagem conquistaram a antiga terra dos Tapuias; os quais a tinham ocupado há milhares de anos antes da Colonização…

      Com o choque colonial, o Bom Selvagem devorou a civilização ocidental. Subverteu a igreja colonizadora e assim obrigou, “sem querer, querendo”; a vinda da primeira visitação do Santo Ofício a Bahia e Pernambuco, no final do século XVI: era a heresia dos índios. No mesmo tempo, mercadores Hereges (protestantes) penetravam o rio Amazonas e alicavam índios do Amapá e ilhas do Marajó com escambo de miçangas em troca de drogas do sertão e gados do rio, a fim de ter passagem franca às cobiçadas minas do Peru.

      Enquanto, a União Ibérica (1580-1640) acudia o Maranhão e Grão-Pará com armas e missionários; no Nordeste a Inquisição procurava cortar o mal pela raiz; extirpando, em 1592, a perigosa parceria entre cristão velho descendente de Pedro Álvares Cabral e a seita de catimbó do Engenho Jaguaripe. Dos autos da devassa ficou-se sabendo, por exemplo, que o principal índio herético o qual pretendia talvez ser papa da igreja mameluca do Brasil sertanejo, antes dele ser declarado culpado e silenciado pela forca, declarou como dogma: Deus (ou Tupã) criou os homens para dormir e sonhar…

      Está claro que índios sonhavam com uma certa “Terra sem males” (onde não há fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte). Já os colonos sonhavam com o ouro do El-Dorado no país das Amazonas. Deste desacordo de disparatados sonhos estamos vivendo hoje os últimos dias, para o bem e para o mal.

      No extremo-norte das Amazônias, o explorador Henri Coudreau, seduzido pela Floresta tropical densa na França Equinocial (Guiana francesa), sem saber da seita antropofágica do índio brasileiro, acabou por repetí-lo de outro jeito, conforme Emmanuel Lézy. O autor de “L'Avenir de la capitale du Pará”, que dizia ser a cidade de Belém do Pará raínha das águas tropicais da América;  e deu sua palavra de honra, de que, na Amazônia profunda, o melhor que há a fazer é sonhar.

      Tal qual Robinson Crusoe com o índio Sexta-Feira, Coudreau – que morreu e se enterrou com seu sonho na floresta amazônica, em terra de mocambos do rio Trombetas – escreveu que sob o “olhar paternal de meu (sic) índio” lhe ocorriam “sonhos inesquecíveis”. E concluiu, “o sonho, como todos sabem, é o que há de melhor na existência”.

      Porém, o sonho civilizador do século XIX nos levou ao inferno atômico e a outros terrores jamais imaginados antes. Enquanto a heresia dos índios do século XVI pretendia levar o Bom Selvagem ao paraíso na terra dos Tapuias… Que podemos fazer agora, no século pós-colonial, num mundo embriagado de mentiras e fantasias, mas sem esperança?

      Boca da noite: ócio e peixe frito para todos – À margem da baía do Guajará, cidade morena de Belém do Pará, dia 2 de maio de 2008, Academia do Peixe Frito reunida depois da sesta e da chuva da tarde, lugar de costume (mirante do restô do hotel Ver o Peso) para ver o sol dormir atrás da ilha das Onças e soltar o verbo e cantoria no sarau à “Boca da Noite”.

      Sarau (do latim seránus, o entardecer),  evento cultural e musical  onde  amigos se encontram por lazer ou para festejar algo em comum. Desta maneira, deu-se como instalado o picaresco “fórum Çocial ribeirinho – fÇr”. Isto mesmo, Çocial com cê cedilha… Caboquice! Quem não pode com o pote não pega na rodilha (quem sai na chuva é pra se molhar). Vésperas cabocas em expectativa do Fórum Social Mundial (FSM) de 2009, em Belém do Grão Pará. Só Deus sabe o que será.

      Enquanto o FSM não vem vamos soltar o verbo, cantar a saga dos Tupinambás e fazer cantoria de peixe. Ensinar a ver o peixe para descobrir a tragédia do amigo pescador. Pelejar para a República Federativa do Brasil construir no velho Port of Pará o maior parque aquático, centro de pesquisa ictiológica e Aquarium Amazonicum do mundo… Antes que o mundo cruel nos deixe de tangas a ver navios com os gados do rio (peixe-boi, pirarucu, tartarugas) a nos matar de inveja lá fora. Com dantes foi embora a Borracha, o Cacau e agora o Açaí já vai querendo dar adeus aos ribeirinhos enganados desde meninos.

      Sairé ou Sairé na reponta da maré – Segundo o Glossário Paraense de Vicente Chermont de Miranda (personagem paradigmático de cidadão do mundo naturalizado no mato longe de ar condicionado), deve-se ao Vocabulário Indígena de Barbosa Rodrigues a invenção gráfica de nomes tupi com “cê cedilha” na inicial de certas palavras, para as quais a fonética latina parece incapaz de corresponder à necessidade de escrita mais próxima da realidade da fala. E olha! Não se está a falar de todas mil e tantas línguas nativas do Brasil, mas apenas, genericamente, do tupi. Que é um tronco lingüístico com dezenas de centenas de idiomas aparentados. Prestem atenção aonde vamos chegar com o tal fórum Çocial com cê cedilha… Invento supimpa (pra inglês ver) destas ilhas filhas da Cobragrande.

       Na expedita opinião de Chermont de Miranda o expediente de Barbosa Rodrigues “mesmo em tupi é uma inutilidade”.  De todo modo, para a APF o Çairé é uma curiosidade dentro da diversidade cultural do dialeto paraense. Cuja memória no virtual fórum ribeirinho serve para demarcar diferentes identidades e escapar da geléia global.

       Daí que o “Social” civilizado e o “Çocial” caboco devem marcar suas diferenças sem deixarem de dialogar entre si. Que nem as águas barrentas do rio Amazonas a correr para o mar profundo e as esverdeadas lendas do muiraquitã no curso do Tapajós a trazer para nós provectos sígnos a engrossar a corrente do rei dos rios – mundial e regional, respectivamente – com suas peculiaridades, todavia de modo complementar e dialético. O que é global etecetera e tal lá em riba e local cá nas ilhas e na beira do rio: mas porém sem se perder o fio da meada.

       A catequese de índios do Grão-Pará (Amazônia lusófona) valeu-se do culto da lavoura e fertilidade da terra para festejar o apóstolo das Índias, São Tomé (em nheengatu Sairé ou Çairé, alegoria do Espírito Santo levada em procissão pelo povo tocando tamborim e cantando em nheengatu). Conforme o historiador Domingos Antônio Raiol, Barão do Guajará; até a revolução amazônica de 1835/36, chamada Cabanagem; a população de origem indígena praticava correntemente o Çairé em Belém no dia da festa de Reis, 6 de janeiro (cf. Raiol em “Motins Políticos”), a romaria meio católica, meio pagã; percorria ruas da Campina em direção à igreja matriz (Catedral da Sé).

      Por este motivo, na tarde do dia dos Reis Magos (pra não dizer pajé) do ano de 1835, o Çairé serviu de capa ao desembarque de cabocos na praia do Ver o Peso: assim, o movimento passou desapercebido da guarda provincial. Enquanto se preparava o assalto a Belém a partir de Barcarena através da ilha das Onças, lugar Bacuri, Guamá e outras localidades até a pororoca impetuosa  vingar a morte do lider paraense padre Batista Campos; na madrugada de 7 de janeiro (200 anos depois da revolta dos Tupinambás, de 7 de janeiro de 1619). Por que lembrar agora? Para curar a ferida daquele decepado dedo da História. Esquecer  anestesia, mas não cura a dor.

      Ora, desde 1920, com Curt Nimuendaju desvendou-se a religião antropofágica dos Tupinambás em busca da “terra sem males” (lugar mítico onde não há fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte). Profetas caraíbas medonhos, provavelmente para fugir à pressão dos Íncas através do altiplano da Bolívia, conduziram migrações tupi-guarani da região do Chaco para leste anunciando a “terra da promissão” aonde o sol nasce. Chegaram em ondas sucessivas pelo Paraguai até o litoral do Sudeste e Nordeste brasileiro.

      Evitentemente, o mito criado diante da opressão dos Incas esbarrou na impossibilidade física de atingir a “terra sem males” em pleno Oceano. Com a extração do pau-brasil e plantação de canaviais no Nordeste os índios teriam conhecido tudo ao contrário do que esperavam quando chegaram no litoral do Brasil pré-colonial. Muitas suposições podem ser feitas sobre a saga dos Tupinambás, mas um fato não pode ser desconsiderado: a certeza de que eles já se encontravam no Pará antes da chegada dos europeus e muito depois dos Tapuias…

      Pelo menos, desde o Maranhão para o Norte referem-se índios e mamelucos (mestiços) ao pôr do sol como “o lugar aonde o sol ata a rede para dormir” (Araquiçaua, em língua-geral). Fácil deduzir que o lendário acerca da “terra sem mal” (ver Ronaldo Vainfas, A Heresia dos Índios) permanece no subconsciente dos cabocos ribeirinhos. A crônica colonial, sem saber o porquê, registra com abundância de dados o fervor guerreiro dos Tupinambás em todos movimentos que se lhes acenava para conquistar e ocupar o “rio das Amazonas”: por coincidência, cortando traversalmente a região em sentino leste-oeste…

      Renascença do peixe frito  –  A APF teve início na década de 30 e 40 do século passado, geração espontânea de intelectuais, boêmios e artistas dentre os quais o compositor Tó Teixeira, poetas Bruno de Menezes e Rodrigues Pinagé, romancista Dalcídio Jurandir, contista Jacques Flores, folclorista e historiador Vicente Salles no ambiente popular da grande síntese amazônica e universidade aberta que é o Ver o Peso.

     Na feira do Ver o Peso, sexta-feira, 23 de março de 2007, eramos sete como os sete caciques nheengaíbas que trataram as pazes com o payaçu Antônio Vieira nas Ilhas do Marajó. Lá estávamos, impávidos e anônimos, em meio a multidão de mil e uma caras e bocas do suarento formigueiro sob sol e chuva: Anayza, em papel de vigilante do grão-matriarcado das populações tradicionais;  Manoel mestre de cerimônia da sexta-básica; o decano Zé Caboco do tempo das igarités; mestre Pedro, representante apostólico do santo Pescador que ele leva no nome próprio; Benedito, juiz de direito e de fato do mastro do patrono da feira (saravá, nosso pai Bruno de Menezes!); Maurício, embaixador honorário da França Equinocial; Velho Lúcio, no ofício de ecônomo do acaso: este fenômeno sensacional, que na história faz mais milagres do que mil teses acadêmicas.

      Pronto, foi feito assim a primeira sexta-básica de São Benedito da Praia na única e legítima academia do Peixe Frito renascida. Lavou-se na Ata antropoética na memória dos contadores de “causos”, entre montes de bacuri, copuaçu, uxi, mari, pupunha e toda esta exuberância tropical de frutos da terra, misturados aos de fora e a quantidade incrível de muambas made in China importadas do Paraguai e da Zona Franca de Manaus.

      Sem falar de bocados de camarão com farofa e peixe frito regado à cervejinha gelada na barraca de “dona menina” na esquina do cais. Um olho de boto em toda paisagem e outro na baita malandragem. Não se assuste! Quem é afilhado da cobra Jararaca, mestra da antiga gente marajoara a inventar cerâmica como nexo entre vida e morte; e a transformar veneno em remédio; “está por dentro”. Quem for pagão no pedaço “está por fora”… Dali em diante, a APF pediria abrigo ao hotel Ver o Peso, sempre na hora do almoço na primeira sexta-feira de cada mês. Esta fase duraria um ano, até o dia 4 de abril deste. Doravante, depois das cinco (nós não temos chá da cinco, nem Big-Bem, meu bem. Mas porém, a Praça do Relógio anuncia o tacacá sensacional).

Belém, PA – 02/05/2008