Há 20 anos viajo regularmente para a Amazônia e, nestes últimos, há um sorriso novo nas crianças. Por volta de 1986 li, em um jornal de Manaus, o seguinte aviso: “procuram-se engenheiros desde que não sejam formados na Universidade do Amazonas”. Ou seja, a Zona Franca, a Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus) se desenvolvia de costas para a universidade. As primeiras discussões com a Suframa sobre investimento na universidade, em ciência e em tecnologia demoraram, sem dúvida, quinze anos. Hoje, há projetos na universidade financiados por ela e até dinheiro que ela diz não poder empregar em ciência e tecnologia por estar contingenciado. Foi criada uma Fundação de amparo à pesquisa que investe 40 milhões em pesquisas e bolsas. As coisas estão mudando por lá, mas não de forma acelerada.

Posso dar um dado simples: o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o museu Goeldi – as duas maiores instituições de pesquisa que têm a Amazônia como campo de estudo – recebem, ao todo, R$ 40 milhões em doação. É um investimento muito pequeno. Só o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por exemplo – que fica em São José dos Campos, São Paulo, e pesquisa as áreas espacial e ambiente terrestre –, recebe R$ 150 milhões. Há um desequilíbrio do desenho político do desenvolvimento da ciência e tecnologia na Amazônia, sobre o qual precisamos pensar.

Todas as exposições e discussões até agora insistem em localizar o gargalo do desenvolvimento na possibilidade de formar quadros especializados, desenvolver pesquisas cientificas e conhecer mais a Amazônia. Como sabemos, a pesquisa científica é, comumente, identificada pelos movimentos sociais, por muitos políticos e por muitos brasileiros, como um instrumento de poder do capital. Devemos mudar esse modo de ver a ciência.

A discussão sobre os transgênicos, por exemplo, se dá por eles serem da Monsanto e não porque a tecnologia de transgenia poderia ou não ser usada para o progresso, para o desenvolvimento e para o bem do povo.

Eu gostaria de perguntar a todos – mesmo àqueles que são contra os transgênicos: se conseguíssemos aumentar a produtividade de álcool, ou de óleo de mamona, ou de dendê, com um dendê geneticamente modificado, mas que dobrasse o seu rendimento, alguém seria contra? Obviamente, desde que não fosse algo mortal para os ambientes próximos, todos seriam a favor.

Precisamos ter cuidado para não alimentar os movimentos sociais com palavras-de-ordem difíceis de serem corrigidas quando essas mesmas técnicas jogam em nosso favor. Ou seja, quando uma empresa como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) fizer um transgênico seguro, com capacidade de melhorar o alimento ou a produtividade, como vamos dizer que agora, feito pela Embrapa, é transgênico “do bem”? Não é uma questão de ser do bem ou do mal. Temos de analisar cada caso. Inclusive as razões científicas devem ser usadas com sabedoria para evitar que os mercados sejam ocupados por interesses que não nos convenham. Sabemos também que a “ciência” – tal qual os advogados – por vezes dá as respostas que convém a quem solicita, ao capital também. Mas isso não deve nos paralisar. A ciência também precisa ser politizada para que sirva aos interesses de todos e não de poucos.

Esse é um primeiro apelo. Além disso quero dizer que percebo que parcelas dos movimentos sociais vêem a ciência e os pesquisadores científicos com hostilidade. Isso pelo fato de os pesquisadores não serem vistos como pessoas generosas a serviço do bem comum. Numa aldeia indígena, um pesquisador poderá ser visto como alguém que pretende se apropriar de determinados conhecimentos tradicionais, ao passo que esta mesma aldeia perdoa padres e pastores, católicos ou evangélicos, que muitas vezes introduzem na cultura indígena as certezas dos evangelhos, o diabo, o pecado e hostilizam os chamãs e os saberes tradicionais.

E eu procurei saber por que os indígenas tratam melhor os padres – que interferem em suas crenças e em sua história e que querem mudar a sua visão do mundo – do que os cientistas, que não questionam esses saberes, pelo contrário procuram preservá-los. As respostas que obtive foram baseadas em argumentos de que os padres e pastores ajudam nos cuidados com a saúde, oferecem instrumentos, medicamentos, ajudam a conseguir instrumentos e vantagens para as comunidades etc.

Essa “troca” os cientistas não fazem. Será por isso que eles são muitas vezes identificados como inimigos? Esse é um problema que quero colocar para debate. Trata-se da defesa das culturas indígenas, e também um eventual compartilhamento dos saberes em mão dupla. Uma convivência que deve ser disciplinada, mas não burocratizada. Deve-se defender os interesses indígenas, mas também se deve defender o fato de que, sem uma possibilidade de colaboração, perde-se a possibilidade de preservar esses conhecimentos e usá-los sempre que possam beneficiar a todos, inclusive aos detentores desses saberes.

Este é um problema político. A repartição de benefícios e a lei de acesso à biodiversidade estão sendo discutidas no governo e em breve no Congresso. É preciso que a lei de acesso à biodiversidade seja vista com olhos de quem quer conciliar os interesses entre o progresso da ciência, a soberania nacional e os interesses dos povos da floresta. E não de quem quer ver na ciência uma ameaça. Ela é necessária para defender a soberania nacional no domínio da biodiversidade.

Lembrando que até agora, neste Seminário, falamos insistentemente que precisamos de ciência para promover o desenvolvimento. O problema é que sendo os investimentos nacionais reduzidos, poucas dezenas de milhões de dólares trazidas pelas associações internacionais acabam direcionando as pesquisas, definindo o que deve e o que não deve ser pesquisado e, em geral, tratam de questões que interessam a eles e nem sempre a nós.

Oras, se nós colocássemos 200, 300 milhões de dólares na pesquisa e em conservação ambiental quem definiria o que e como pesquisar seriamos nós. Se nós conseguíssemos mudar um pouco as prioridades de desenvolvimento provavelmente teríamos recursos para orientar, e inclusive usar a nosso favor, essa meia dúzia de influências estrangeiras.

Não acredito no discurso conspiratório de: “estão querendo internacionalizar a Amazônia”. Os maiores responsáveis pelo lentíssimo desenvolvimento em C&T da região somos nós mesmos e do econômico e social também! Uma política decidida de desenvolvimento cientifico e tecnológico faria com que os recursos internacionais investidos na área seriam apenas uma “sobremesa”.

O imenso Parque Nacional do Tumucumaque no Amapá foi “comprado” pela WWF por 5 milhões de dólares, porque foi a única instituição que colocou dinheiro e gente para fazer as pesquisas necessárias à proteção do parque. Ora, será possível que não tenhamos capacidade de cobrir aquele dinheiro e definir por nossa conta a pauta de pesquisa naquela região cuja extensão é maior do que muitos estados europeus? Será que não conseguimos formar 10 ou 20 mil pesquisadores em dez anos na região amazônica? O que é isso? Se nós conseguimos formar 10 mil pesquisadores por ano no país, por que não poderíamos colocar mil todo ano na Amazônia, ou na Grande Amazônia – no Pará, Amazonas, Amapá, Acre, Rondônia e Roraima? São perguntas para as quais precisamos, de alguma forma, dar respostas.

Temos, sim, de ir para as ruas e socializar, politizar a discussão sobre o desenvolvimento de C&T. Entretanto, ao politizá-la teremos de aprender a lidar com a dura argumentação de que, com a entrada das máquinas, aumentaram as demissões. Para o povo, ciência é equivalente a máquina, e máquina é equivalente a demissão e perda de emprego.

Há muito tempo nossos sindicatos esqueceram, nas negociações, de lutar pela preservação dos empregos quando isso está relacionado com a automação e a modernização das fábricas. Joga-se sempre um contra o outro e, obviamente, quem perde são os trabalhadores.

Quais sindicatos têm, de fato, um atento departamento de ciência e tecnologia, e lutam pela nova qualificação das pessoas expulsas pelas máquinas? Que entrem, sim, os robôs nas fábricas, mas aumente o número de projetistas, vendedores, organizadores, técnicos, engenheiros, daqueles que não podem ser substituídos por robôs, e que podem ser formados.

Não é mistério para ninguém que isso ocorre na Europa, mas entre nós isso parece meta distante, ainda não ocorre. Portanto, temos um sensível campo da política de C&T e seu impacto social para atuar.

Diria mesmo que se nós não conseguimos acelerar o desenvolvimento em C&T, é porque as relações entre movimentos sociais e comunidades acadêmicas e científicas não são firmes, cúmplices, solidárias. Não contamos com o apoio da sociedade, dos trabalhadores nessa luta. Falta, portanto, uma discussão mais profunda, mais ampla, sobre como vemos a ciência e a tecnologia. E quando falo em ciência falo do uso da ciência para aliviar a fadiga humana, da formação de gente, do uso de inteligência, da capacidade de vencer batalhas e usar o conhecimento para beneficio de todos.

Todos sabem que se um estrangeiro ou um brasileiro leva para o exterior um microorganismo da Amazônia isso comove, preocupa as autoridades e os políticos muito mais do que a queimada de 10 mil km2.

Ou seja, admitimos a destruição, mas não a exportação, mesmo que seja para fins de pesquisa. Sabemos que 20% de áreas de florestas podem ser desmatados legalmente, fora o que ocorre de forma ilegal com a omissão das autoridades de controle. No entanto, se um sujeito levar uma garrafa com água do rio Negro temos um escândalo nacional. Acontece que combater o contrabando de microorganismos ou o seqüestro da água do rio Negro é tarefa impossível. E esse é o grande problema.

Ou nós aprendemos a ler, a estudar, a retirar as vantagens da água do rio Negro por nossa conta, antes que outros o façam, ou o jogo estará definitivamente perdido para nós. Não vai ser colocando filtros na foz do Rio Amazonas que impediremos o contrabando. As águas do rio Negro carregam microorganismos que desembocarão no oceano adentro. Não adianta querer controlar os microorganismos. Na minha saliva tem milhões de microorganismos. Tenho, então, de pedir ao Ibama para me dar uma licença para poder salivar, visto que os microorganismos são patrimônio genético da nação? É absurdo!

Temos de nos armar com outros instrumentos. Claro, esses microorganismos constituem um patrimônio da nação e devemos protegê-los. Mas constituem um patrimônio que deve ser conhecido para ser defendido. Não se pode defendê-lo com escudo e nem com atiradeira. Precisamos defendê-lo com pesquisa, com laboratórios, com capacidade de explorar, utilizar, os nossos recursos genéticos antes dos outros.

Para combater a “biopirataria” sugiro a criação de biocorsários, os piratas do rei, os nossos piratas! A Inglaterra não fez a sua riqueza com os corsários? Quem eram os corsários? Os piratas que, a serviço da rainha Elizabeth, corriam os mares e se apropriavam de tudo o que pudesse enriquecer a Inglaterra. Defendo que devemos nos apropriar dos conhecimentos que valorizem o patrimônio genético da biodiversidade para o enriquecimento da nossa nação.

É tempo perdido ficar correndo atrás de alguém que, por exemplo, leva dois macacos para a Holanda. Temos coisas mais importantes a discutir do que o rapto dos macacos. Quem já foi para a França sabe que se compram as borboletas da Amazônia em lojas especializadas em Paris (com certificado de coleta autorizada).

É crime comprometer os equilíbrios ecológicos, provocar a extinção de espécies, sim. Mas devemos imaginar métodos inteligentes de proteger as borboletas sem ter de colocar redes nos aeroportos. E as aves que voam e atravessam oceanos? Como faríamos? Controlaríamos o seu passaporte? Não é com redes e detectores de microrganismos que defenderemos os interesses nacionais.

Precisamos é mudar o quadro, o controle não pode ser apenas físico. A raiz do crime, que alimenta a pirataria, está no fato de os institutos de pesquisa da região receberem apenas 40 milhões. E se o Congresso Nacional não souber corrigir isso será cúmplice da biopirataria ou do que antigamente chamávamos de omissão frente aos crimes do imperialismo – hoje já não sei mais como é denominado.

Conhecemos apenas um centésimo da potencialidade dos segredos e riquezas de cada árvore, de um hectare da floresta e, mesmo assim, derrubamos um hectare de floresta para que uma cabeça de gado possa pastar livremente ou colher dez sacas de soja.

Daqui a dez anos vamos voltar aqui e perceber o crime que foi cometido. Isso porque 1 hectare da floresta vale muito, mas muito mais do que os R$ 600,00 que possa valer uma cabeça de gado. Os óleos, as resinas, os venenos de cobras e aranhas, as moléculas das secreções que circulam por lá, e principalmente os segredos dos equilíbrios ecológicos, valem ouro. Ouro-conhecimento e ouro metálico.

É preciso explorar o ouro-conhecimento. Ele é o principal, é o que vale no mercado internacional hoje, e não inflaciona, nem desvaloriza! E é muito mais valioso do que o ouro metal.
Nós mal sabemos como a seiva da árvore sobe até lá em cima, não sabemos como as formigas se comunicam, não sabemos o que vêem as aranhas. Sabemos que a serpente só enxerga no infravermelho, só enxerga calor. Para estes assuntos os estudos ainda deveriam ser muito mais numerosos.

Um parêntese: estamos tentando criar em Manaus, na Reserva Ducke, um grande Museu vivo, e um laboratório em que espalharemos sensores: óticos de aromas, de sons, de radiações e de interações entre o bioma e a atmosfera, sua temperatura etc – sensores que ofereçam informações que permitam estudar a floresta de uma outra maneira. E divulgar, fotografar, filmar, mostrar os detalhes de uma formiga, de uma abelha, de uma aranha em grandes telas para a criançada das escolas. Podemos fazer pesquisa e podemos também fazer educação, alimentar uma exposição para o público. Atrair as crianças, os estudantes para o estudo da floresta. Uma floresta que é vista como inimiga, um mato hostil, pelas crianças das escolas de Manaus (e da população também). Isso, a meu ver, é muito grave, o sistema imunológico contra a biopirataria está comprometido!

Estou dizendo isto porque precisamos de muita gente para trabalhar na educação ambiental nos laboratórios da biodiversidade e das florestas. E nesse ponto quero relembrar o que disse no início, quando mencionei que havia mudado o panorama na Amazônia, no Acre, no Amazonas, no Pará. Cem mil estudantes se inscreveram no vestibular da Universidade do Estado do Amazonas.

Nem todos foram aprovados, mas o número de estudantes nas escolas da Amazônia e na Universidade do Estado do Amazonas é cem vezes maior do que há dez anos atrás. Em breve será mil e aí o quadro deve mudar. Mas, cuidado, a questão não é apenas numérica. A cor do gato importa! Não basta que ele coma os ratos! Lembram?

Hoje, o Amazonas é um dos estados que mais investe em ciência e tecnologia. Espero que os números dos últimos anos sejam confirmados nos próximos anos. Embora ainda esteja longe de atrair jovens pesquisadores, quadros técnicos recém-formados em outras partes para lá. Isso indica que há consciência política do valor da Ciência e Tecnologia e que há muita coisa para estudar.

É concreta a possibilidade de mudar a situação, desde que um grande número de pessoas qualificadas seja formado na Amazônia. Apelo para o partido que tem influência entre os jovens em toda parte que os convoque para que se dediquem a engenharia, medicina, física, matemática, química e se dediquem aos problemas de seus estados e também à Amazônia, abraçando a grande batalha nacional pelo conhecimento desse grande território que é também brasileiro.

Não tenho nenhuma dúvida em dizer que o conhecimento, a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico da Amazônia são o Araguaia dos nossos dias. Sei que será uma batalha muito dura, por ser contra a incompreensão, contra as crenças e a desinformação – lembrem do simbólico boi por hectare de floresta – e os grandes interesses predatórios. Uma batalha para convencer o governo a definir claras prioridades de investimentos em ciência e tecnologia na Amazônia, na formação dos jovens da região.
Será uma batalha em todas as frentes. Mas não podemos tolerar que os principais institutos de pesquisa de lá recebam 40 milhões, que é um troco perto daquilo que deve ser investido com toda cautela, mas com firmes propósitos e diretrizes.

As coisas podem mudar, e estão mudando. Não soubemos criar um pólo tecnológico em Campinas em torno de uma universidade? Não soubemos criar universidades pelo Brasil afora e em lugares distantes? Encontrar petróleo nas plataformas de água profundas? A meu ver, devemos também insistir até conseguir romper as barreiras políticas que travam o desenvolvimento científico e tecnológico da Amazônia.

E, nessa batalha, o principal inimigo, em minha opinião, não é o externo, somos nós mesmos. A nossa burocracia, o conservadorismo da economia que vê com desconfiança todos aqueles que têm ideais, que se empenham em deslocar montanhas – como recomendava um velho mestre, hoje por demais esquecido.

Esquecemos até que é possível deslocar montanhas. Só tememos as ameaças que vêm de fora. Elas terão sucesso se o generoso pensar dos jovens for esterilizado. Em todo caso, estou seguro de que nenhum país estrangeiro tem condições de deslocar um exército de cientistas e técnicos para a Amazônia e estudá-la. Porque não é uma questão numérica, nem de tecnologias. Os ambientes são hostis ao que os invadem sem saber como caminhar. Se os filhos da terra souberem caminhar e estiverem mobilizados a “invasão” é impossível. Lembrem do Vietnã.

E é isso o que podemos e devemos fazer: fornecer as armas da educação e do conhecimento aos filhos da terra, e incluir aí as próprias comunidades indígenas, que podem e devem participar desse esforço preservando e desenvolvendo seus próprios conhecimentos. Por vezes vemos os conhecimentos tradicionais como algo estático. Heranças que devemos preservar. Não é isso não. Os conhecimentos indígenas também podem e devem se desenvolver, crescer, e formar. Formar cientistas, pessoas em quem as comunidades confiem.

Uma das grandes questões da Amazônia é a perda dos mateiros – o pessoal que conhece o mato, sabe andar na floresta. Mas não existem apenas mateiros de andar, há também os mateiros que reconhecem as espécies, sabem onde encontrá-las – onde está isso, onde está aquilo, para que serve isso etc. Essas pessoas estão envelhecendo e não temos modo de incentivar a sua reprodução, de fazer com que elas se multipliquem. Por quê? Porque eles não têm lugar no nosso sistema de formação e remuneração de recursos humanos especializados. Não se consegue perceber o valor destes “práticos da floresta” e de seu valor para o estudo, tenham eles escolaridade A ou B.

Ora, isso não é coisa do imperialismo norte-americano! Isso é coisa do nosso subdesenvolvimento intelectual e da nossa pequena-burguesia provinciana e mal-aculturada, formada longe dos laboratórios naturais, da floresta, e que defende a atribuição aos títulos escolares e universitários privilégios muito “mal educados”.

Por isso, temo os inimigos internos mais do que os externos. O que vejo, isso sim, são objetivos de luta. E eles são claros. É preciso lutar contra o desemprego quando associado ao desenvolvimento científico e tecnológico, sempre que for fator de risco no trabalho, como ocorre no caso da cana e na expansão de seu cultivo.

Precisamos fazer com que muitas crianças possam ter escola e universidade digna, e que sejam, assim, bem formadas, na região. Além disso, temos de fazer com que os estudantes formados na região amazônica lá permaneçam, se estabeleçam por lá.

Oitenta por cento dos formados na região amazônica vão para o sul. Há mais paraenses nas universidades de São Paulo do que na universidade do Pará. Essa realidade está mudando, mas não acredito que sem apoio político dos governos federal e estaduais isso mude.

Há quinze anos atrás lembro que fizemos um seminário em Belém – o Sim-da-Amazônia – no qual dizíamos que, dali em diante, todos os estudantes universitários da Amazônia deveriam permanecer na região. Esta região tem hoje dois mil doutores, e naquela época havia quinhentos. Mesmo tendo multiplicado por quatro, há quinze anos, imaginávamos projeções em que teríamos hoje 10 mil. Estamos muito aquém das metas projetadas.

E no Amapá, na foz do Amazonas, um local estratégico no mundo – que vale bilhões do ponto-de-vista ouro-conhecimento científico, porque é o único no mundo capaz de monitorar um ecossistema em interação viva com outro, a água doce do rio e a salgada do oceano – temos dez especialistas na área. Se é que temos, precisaríamos de quinhentos e um instituto de pesquisas de grande porte! A França está fazendo isso em Cayenna (investindo 200 milhões de Euros) e daqui a algum tempo nos oferecerá, ou venderá, informações sobre a foz. Com que cara vamos acusá-la de hidro-pirataria?

Portanto, a situação é dramática, sim, mas tem solução. Custa pouco. Duzentos ou trezentos milhões por ano seriam suficientes. Uma vírgula nas contas dos banqueiros. Onde vamos buscar esse dinheiro? Os fundos setoriais são a principal fonte de recursos da Finep, financiadora de estudos e projetos, presidida pelo Luis Fernandes. São recursos que financiam toda pesquisa no país.

Metade desses recursos está retida, pretensamente, para pagar os juros da dívida. Mas na verdade está retida porque não se consegue convencer a área econômica de que há melhores maneiras de investir do que fazer render esse dinheiro nas bolsas financeiras e nos investimentos especulativos. Ou seja, porque não temos projetos que possam render mais do que os investimentos especulativos.
De fato, não podemos demonstrar com facilidade que a Amazônia é um campo de investimentos que rende mais do que R$ 600 da cabeça de boi por hectare/ano.

Essa demonstração exige um exame da questão tanto na esfera técnico-científica como na política e econômica. Devemos promover esta discussão e tentar mudar o quadro de desconfiança quanto aos investimentos em ciência e tecnologia e na educação.

Aliás, o desenvolvimento de tecnologias para transformar celulose em etanol está avançando lentamente em nossos institutos de pesquisa. Tenho notícias de que na Califórnia há dois mil pesquisadores trabalhando nesse programa. Esta é uma batalha que não podemos perder.
Novamente, para não perder a guerra, é preciso mais e mais gente bem formada, muito bem formada.

Ainda desperdiçamos muitos bons talentos ao excluir mais da metade de nossa população da oportunidade da educação média e superior. A meu ver, esse é que é o grande gargalo. Eu trocaria a palavra-de-ordem “contra o imperialismo” pelas palavras “precisamos de mais gente capacitada em nossos institutos, em nossas escolas, e lá onde for necessário distinguir 1 de 2”.

A meu ver, este é o quadro que nos paralisa hoje, é o desafio que temos pela frente em nossos programas de ação. Repito, devemos discutir de forma franca as relações entre a ciência e os movimentos sociais. Podemos mostrar que a ciência, por vezes, está a serviço do capital sim, mas tem também uma rica história de independência, que foi contra o poder dominante, o capital.

Alguém pode até dizer que a internet foi inventada pelo capital para aumentar o controle sobre os indivíduos, e aumentar a taxa de lucro – o que a meu ver não é verdade. Isso ocorre, mas também ela democratizou o conhecimento e a distribuição de informações. Não se pode negar que hoje qualquer pequena comunidade tem acesso a bibliotecas imensas, a conhecimentos, informações que há dez anos atrás paralisavam nossos projetos de educação e ciência para todos.

Não se podia desenvolver ciência em nenhum lugar porque faltavam informações básicas. Hoje temos informações básicas e ainda não conseguimos superar nossa própria desconfiança com o uso dessas informações. Duvidamos quanto e qual será nosso futuro se soubermos mais, se conhecermos mais a respeito da floresta. Tememos que esse conhecimento seja usado contra o interesse de nosso povo. E hostilizamos a produção do próprio conhecimento! É uma conclusão em branco e preto. Interpretem isso de modo simbólico e encontrarão as outras cores da mesma questão. Conhecer é necessário para que as mil flores possam florescer…

Ennio Candotti é professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participou da criação da revista Ciência Hoje, da qual foi editor de 1982 a 1996. Foi presidente da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (1989-1991, 1991-1993, 2003-2005, 2005-2007). É um dos presidentes de honra da SBPC. Este artigo é derivado da intervenção feita pelo autor no Seminário “Meio Ambiente e desenvolvimento”, promovido pela Fundação Maurício Grabois e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), em Brasília, em 10 e 11 de abril de 2008

EDIÇÃO 96, JUN/JUL, 2008, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28