Conquistas e desafios do movimento LGBT
A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (AGLBT), presidida por Toni Reis foi fundada em 1995, com o objetivo de lutar pelos direitos humanos e civis de todos aqueles que são discriminados por sua orientação sexual. Para Reis, somente com um projeto social de educação, que contemple o respeito à diversidade e às diferenças, os LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) poderão assumir seu lugar de cidadãs e cidadãos plenos na sociedade brasileira.
Em sua opinião, qual a origem da homofobia (não só no Brasil, mas mundialmente)?
Uma das principais causas da homofobia é o fundamentalismo religioso, seja de religiões cristãs ou de outras. No caso da cultura ocidental, em que estamos inseridos, há duas principais conseqüências disso. Na época da Inquisição as pessoas que assumiam publicamente a homossexualidade eram queimadas na fogueira, por serem “pecadores nefastos”. A condenação religiosa da homossexualidade também passou a integrar a legislação de muitos países, de modo que neles a homossexualidade foi criminalizada, às vezes durante séculos. Na América Latina a homossexualidade foi considerada crime no Chile, Equador e, até o ano passado, também na Nicarágua. A partir do século XIX, em muitos países passou a ser considerada uma doença, e foi incluída na Classificação Internacional de Doenças pela Organização Mundial da Saúde de 1948 até 17 de maio de 1990. Portanto, a homofobia tem uma origem milenar: primeiro o fundamentalismo religioso, depois a criminalização e, por último, a atribuição da noção de doença. É relativamente recente o reconhecimento oficial das homossexualidades como mais uma forma das múltiplas expressões da sexualidade, comparado com a milenar condenação da homossexualidade pela tradição judaico-cristã. Portanto, as atitudes contrárias à homossexualidade são fortemente arraigadas na nossa sociedade e somente com a educação pelo respeito à diversidade e às diferenças é que gradativamente os GLBT (1) (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros) poderão assumir seu lugar de cidadãs e cidadãos plenos na sociedade brasileira.
O preconceito religioso é um dos entraves mais sérios no debate sobre homossexualidade. A posição conservadora da igreja foi reafirmada por Papa João Paulo II e pelo Papa Bento XVI. Como você avalia o peso da igreja sobre a comunidade GLBT?
Na América Latina este peso é muito grande. Muitas vezes, embora as Constituições dos países garantam o Estado como laico, ou seja, independente das religiões, no Legislativo há bancadas religiosas bastante grandes. No Brasil, por exemplo, existe a bancada evangélica, com força dentro do parlamento. A igreja católica também, de certa maneira, tem influência sobre muitos dos parlamentares. Isto tem pesado muito nas decisões de nosso parlamento. Basta ver o Projeto de Lei 1151/1995, de parceria civil registrada, que está no Congresso Nacional há treze anos e não é votado. Levando em conta estereótipos, aceitação, preconceitos qual a situação do homossexual na sociedade brasileira? Como você avalia as condições e pressões sociais na decisão de assumir a homossexualidade?
A UNESCO fez uma pesquisa intitulada “Juventudes e Sexualidade”, que proporciona um panorama claro dessa situação. Ela foi realizada em 2000 e publicada em 2004. Foi aplicada em 241 escolas públicas e privadas em 14 capitais brasileiras. Foram entrevistados 16.422 estudantes, 3.099 educadores(as) e 4.532 pais e mães de estudantes. Entre os diversos resultados, os seguintes dados retratam o preconceito ainda existente em relação aos homossexuais: 40% dos estudantes masculinos não gostariam de ter um colega de classe homossexual, 35% dos pais não gostariam que seus filhos tivessem um colega, de classe, homossexual, e 60% dos professores afirmaram não ter conhecimento o suficiente para lidar com a questão da homossexualidade na sala de aula.
Conforme revelaram as pesquisas realizadas pelo Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) nas Paradas GLBT em Rio de Janeiro (2004), São Paulo (2005) e Pernambuco (2006), 56% dos GLBT entrevistados já sofreram agressão verbal e 19% agressão física. Um total de 69% já sofreu discriminação por ser GLBT. As travestis e transsexuais foram as que mais sofreram violência física (72%), seguidas dos gays (22%) e das lésbicas (9%).
Todos esses dados revelam o quão a homo/lesbo/transfobia ainda permeia nossa sociedade, sendo responsável pelo preconceito e pela discriminação a GLBT, por exemplo, em locais de trabalho, escola, igreja, rua, posto de saúde ou em qualquer outro lugar, e também na falta de políticas públicas afirmativas que contemplem GLBT.
Existe alguma explicação para o fato de o Brasil estar no 1º lugar do ranking sobre ocorrência de morte por violência contra a comunidade GLBT?
Realmente, há muitas mortes devido à homofobia e a situação é agravada pelo alto índice de impunidade. Mas, há países em que a situação é ainda pior. Em sete deles (Afeganistão, Arábia Saudita, Iêmen, Irã, Mauritânia, Paquistão e Sudão), a homossexualidade é punida com a pena de morte, e, em mais aproximadamente setenta, a homossexualidade ainda é proibida por lei. O Brasil está no primeiro lugar do ranking porque são poucos os países em que há esse levantamento, em particular o México e os Estados Unidos.
Quais as principais vitórias: leis (união civil, adoção, criminalização do preconceito), espaço na sociedade (mídia, parada gay etc) conquistadas pela comunidade?
Uma de nossas principais conquistas foi o atual compromisso do governo federal e o Programa Brasil Sem Homofobia, com 53 ações de combate à homofobia e promoção da cidadania GLBT por 10 ministérios e secretarias especiais.
O judiciário tem avançado consideravelmente e há várias jurisprudências importantes para a comunidade GLBT: o reconhecimento da união homoafetiva; a concessão de direito à herança à/ao sobrevivente de companheira(o) falecida(o); a alteração de nome e sexo de transsexual no registro civil; a adoção conjunta; companheira(o) de funcionária(o) pública(o) reconhecida(o) como dependente; entre outras.
A mídia, por um lado, tem sido outra área de importantes mudanças positivas em termos do tratamento das questões GLBT. Os jornalistas foram a primeira classe de profissionais a incluir em seu código de ética a proibição da discriminação por orientação sexual. Também temos visto na mídia escrita, principalmente nos jornais, que poucos desses meios de comunicação ainda mantêm uma linguagem homofóbica ou discriminatória. Na televisão, nas novelas há personagens que retratam de forma cada vez mais positiva os GLBT. Por outro, ainda há alguns programas humorísticos que insistem em utilizar estereótipos negativos que apenas servem para reforçar o preconceito.
Há outro avanço em relação a eventos de visibilidade massiva, principalmente a partir de 1995. Em 2007, houve 177 eventos e paradas do Orgulho GLBT. Em maio de 2008, já estamos em torno de 100 eventos e paradas cadastrados.
Há pelo menos 92 municípios (incluindo 9 capitais) e 14 estados já com leis específicas proibindo a discriminação por orientação sexual.
Sem dúvida, a maior conquista foi a convocação, pelo presidente Lula, da I Conferência Nacional GLBT, precedida de 27 Conferências GLBT Estaduais e 114 Conferências GLBT Municipais/Regionais, tendo como objetivo propor as diretrizes para a implementação de políticas públicas e o plano nacional de promoção da cidadania e direitos humanos de GLBT, bem como avaliar e propor estratégias para fortalecer o Programa Brasil Sem Homofobia. Fale sobre as principais ações da ABGLT. Qual a interlocução da entidade com outros movimentos sociais?
A atual missão da ABGLT é promover a cidadania e defender os direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais, contribuindo para a construção de uma democracia sem quaisquer formas de discriminação, afirmando a livre orientação sexual e identidades de gênero. A instituição tem como visão unir esforços para a conquista de uma sociedade igualitária.
Atualmente as linhas prioritárias de atuação da ABGLT incluem:
• O monitoramento do Programa Brasil Sem Homofobia;
• o combate à Aids e a outras doenças sexualmente transmissíveis;
• a defesa da livre orientação sexual e identidade de gênero no âmbito do Mercosul;
• advocacy para aprovação de leis e garantia de orçamento para políticas afirmativas voltadas para GLBT;
• capacitação de lideranças lésbicas em direitos humanos e advocacy;
• capacitação de profissionais do Direito em questões de cidadania GLBT; e
• a promoção do Estado laico e o combate ao fundamentalismo religioso.
Desde sua fundação, a ABGLT procura manter diálogo com outros movimentos sociais. Isto ficou expresso na Carta de Princípios aprovada quando da criação da instituição em 1995: “A ABGLT estará ao lado de todas as entidades, organizações populares e movimentos que almejam transformar a vida das pessoas, fazendo-a mais livre e digna. Estará ao lado das mulheres, dos negros, trabalhadores do sexo, das chamadas minorias e de todos os grupos vítimas de opressão generalizada ou específica”.
No início da atual gestão da ABGLT (no começo de 2007) foi realizada uma reunião de planejamento estratégico que, além da diretoria da ABGLT, envolveu a participação de lideranças do movimento estudantil, o movimento de mulheres, o movimento negro, o movimento sindical, o movimento Aids e a academia. Com esses movimentos é que temos interlocução, e também vimos tendo interlocução com o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Federal de Serviço Social.
Quanto à Conferência Nacional – o caminho para garantir a cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais (Brasília 6 a 8 de junho de 2008), a primeira no mundo a abordar o tema em caráter nacional e institucional – , o que pode mudar no cenário com a sua realização?
Esta é a terceira grande conquista do movimento GLBT brasileiro. A primeira foi a retirada do código 302.0 da classificação internacional de doenças pelo Conselho Federal de Medicina, em 1985. O Brasil foi o quinto país a retirá-lo, como resultado de esforços muito grandes, principalmente por parte do Grupo Gay da Bahia e do ativista João Antonio Mascarenhas. A segunda foi o Programa Brasil Sem Homofobia, como mencionado acima. E agora teremos a I Conferência Nacional GLBT, convocada pelo governo Lula por reivindicação do movimento social. Quinze ministérios discutirão políticas públicas para a comunidade GLBT. Desta conferência deve sair o plano nacional de políticas públicas para GLBT, com atividades, orçamentos, responsabilidades, prazos e metas que possibilitarão uma avaliação na II Conferência. Ela é importante porque envolve todos os estados. Todos(as) os(as) governadores(as) convocaram as conferências estaduais e houve uma grande mobilização acerca do tema. Com certeza, além do impacto nas políticas nacionais, também haverá repercussões positivas no âmbito dos governos estaduais e municipais.
Como você avalia a atitude do governo em tratar desse tema como uma política de Estado?
A questão dos direitos humanos e da cidadania é uma questão de Estado. Dada a universalidade dos direitos humanos, políticas públicas de Estado que não incluem as questões GLBT são políticas incompletas. Neste sentido, vejo com bons olhos a boa vontade política do atual governo em tratar desse tema como uma política de Estado.
Qual valor você, enquanto militante e uma referência importante no movimento GLBT, atribui à realização dessa Conferência?
É uma grande reivindicação do movimento GLBT o fato de querermos políticas públicas específicas. Assim, a Conferência, e todo o processo que a envolveu, é fundamental. De igual importância é a sensibilidade social do atual governo que está implantando uma política de promoção da inclusão social. O atual partido governista e os partidos aliados, na maioria, são os que têm uma história de luta pela inclusão da comunidade GLBT.
Adalberto Monteiro é editor da Princípios e presidente da Fundação Maurício Grabois
Nota
1 – A entrevista foi concedida antes da realização da I Conferência Nacional GLBT, na qual se estabeleceu o uso da sigla LGBT em vez de GLBT.
EDIÇÃO 96, JUN/JUL, 2008, PÁGINAS 51, 52, 53