O centenário da Imigração japonesa
Princípios – Qual o contexto histórico da imigração dos japoneses para o Brasil a partir de 1908?
MÁRCIA TAKEUCHI – O Brasil e o Japão vivenciavam situações diversas, mas os seus interesses se conjugaram no contrato entre o governo paulista e a Companhia Imperial de Colonização Ltda., em 6 de novembro de 1907. No caso japonês, havia pressão social, representada pelos camponeses empobrecidos, por terem ficado à margem do processo de modernização empreendido pela Restauração Meiji (1868), e terem sido oprimidos pelos impostos sobre as suas terras. Além disso, havia o retorno dos soldados que lutaram na guerra Russo-Japonesa, sem perspectiva de colocação. Um segundo fator que fez o governo japonês visualizar a possibilidade de encaminhar seus súditos ao Brasil foi o fechamento das portas à entrada de seus súditos nos Estados Unidos, com a assinatura do Gentleman’s Agreement Act nesse mesmo ano. Com este acordo, apenas os japoneses com cartas de chamadas de compatriotas já estabelecidos nos EUA poderiam ingressar em seu território. Do lado brasileiro, havia a valorização do café a partir de 1906, que chamou a atenção do governo paulista para o fenômeno representado pelo maior número de saídas de imigrantes do que de entradas, entre 1903 e 1907. Parte desse processo foi resultado da proibição – estabelecida pelo governo italiano, em 1902 – de que cidadãos italianos aceitassem transporte subsidiado ao Brasil, diante das constantes queixas de exploração e de maus tratos nas fazendas cafeeiras.
Princípios – O conflito no Oriente (a invasão da Manchúria e a guerra contra a China), a Segunda Guerra Mundial e o início da Era Vargas no Brasil marcaram a segunda fase da imigração, iniciada em 1930. Foi um momento de inflexão deste processo, superado no pós-guerra, já na segunda metade do século XX. Você diria que a imigração se deu de forma descontínua?
MÁRCIA TAKEUCHI – O processo imigratório japonês no Brasil conheceu descontinuidades por diversas razões. Até 1922, o governo paulista subvencionava as passagens dos imigrantes – prática interrompida temporariamente em 1914 para ser retomada em 1917. Essa retomada – em 1917 – ocorreu em função da queda do ingresso dos imigrantes europeus, especialmente italianos e espanhóis, em razão da Primeira Guerra Mundial. A atitude paulista comprova, portanto, que os imigrantes japoneses eram encarados tão somente como substitutos temporários dos trabalhadores brancos, lembrando que uma das razões alegadas para o fim do subsídio foi a necessidade de avaliar a influência da raça japonesa na formação étnica brasileira.
Em 1924, os Estados Unidos aprovaram uma legislação de cotas para os imigrantes, conhecida como Lei da Origem Nacional, que vedava o ingresso de estrangeiros considerados incapazes de serem naturalizados. Diante disso, o Japão viu-se forçado a manter aberta a possibilidade do encaminhamento de seus súditos pobres para o Brasil – até então tida como segunda opção – em um contexto de superpopulação e desemprego no campo. A saída foi Tóquio passar a subsidiar as passagens e as companhias de emigração que adquiriam terras no Brasil – que eram revendidas aos futuros colonos. Estes poderiam produzir as matérias-primas de que o Japão carecia, viabilizando também o intercâmbio comercial entre os dois países.
Com o incentivo do governo japonês, a entrada de japoneses no Brasil cresceu ano a ano atingindo seu auge no início da década de 1930. Esse ingresso, tido como maciço, repercutiu entre autoridades e intelectuais antinipônicos, que acusavam o Japão de possuir intenções políticas e imperialistas em seu programa de imigração. Daí os debates na Assembléia Constituinte de 1934, que resultaram na aprovação do artigo 121 – que estabelecia cotas para imigrantes –, que visava especificamente aos japoneses. O governo Vargas, desde o início, sinalizava seu caráter autoritário, centralizador e nacionalista. Com o início da Segunda Guerra Mundial, a imigração japonesa foi suspensa, sendo retomada somente após o reatamento das relações diplomáticas entre os dois países em 1952. Contudo, entre o final da guerra e 1952, ocorreram os conflitos relacionados à Shindo-Renmei que reacenderam o sentimento antinipônico no Brasil.
Princípios – A partir da terceira fase, no pós-guerra, a imigração se consolidou e os japoneses passaram a compor a heterogeneidade do povo brasileiro. Em sua opinião quais as especificidades da contribuição japonesa à identidade do brasileiro?
MÁRCIA TAKEUCHI – Há diversas contribuições dos japoneses. Eles auxiliaram na atual configuração do Brasil: um país multicultural e multiétnico. Os descendentes atuam em todos os setores da sociedade – inclusive artes, esportes, ciência – mas, sem dúvida, eles e seus antepassados foram importantíssimos no desenvolvimento agrícola. Introduziram gêneros até então ausentes do cardápio nacional – como laranja poncã, caqui, acelga dentre outros produtos –, além de difundir a culinária nipônica, que a partir dos anos 1970 foi incorporada pelos brasileiros em geral. Não podem ser deixadas de lado também as cooperativas japonesas, um sistema popularizado pelos japoneses no Brasil.
Princípios – Admiração e medo embasaram o imaginário brasileiro em relação à vinda dos orientais ao Brasil. Como poderíamos exemplificar estes dois aspectos contraditórios?
MÁRCIA TAKEUCHI – A ambigüidade em relação à imigração japonesa pode ser percebida nos discursos de intelectuais antinipônicos que atuaram na Constituinte de 1934. Segundo afirmava Miguel Couto, líder dessa corrente na Assembléia, abrir as portas aos japoneses seria permitir a entrada de um povo mais forte do que o brasileiro, inferiorizado pelas doenças e pela ignorância. O nipônico, educado, dominaria todos os setores da sociedade, transformando o Brasil no Império do Sol Poente.
Anteriormente, na primeira década do século XX, essa imagem ambígua do Japão moderno, e, ao mesmo tempo, perigoso, era difundida pela imprensa, influenciada pelas conquistas do império na Ásia. É preciso ressaltar que o “perigo amarelo” já aliava nesse período a vertente política [invasão japonesa às Américas] e a racial [degenerescência da raça brasileira que supostamente tendia a se tornar branca, com a eliminação progressiva do negro e do índio].
Portanto, havia um discurso político e racial contra o imigrante japonês construído décadas antes da Segunda Guerra Mundial, e o conflito configurou-se como uma espécie de confirmação do mito do perigo amarelo, presente no imaginário político brasileiro. Daí a repressão, a vigilância e a expulsão de japoneses de áreas litorâneas e de zonas de concentração dessa etnia mesmo na cidade de São Paulo [Liberdade].
O nacionalismo varguista e a xenofobia permitiam a difusão de teorias conspiratórias, que levavam autoridades encarregadas da repressão [exército e Polícia Política – DEOPS] a considerar os imigrantes japoneses, na verdade, como militares disfarçados de lavradores e pescadores, repetindo o processo que ocorria na Ásia, particularmente na Manchúria.
Princípios – Qual o perfil do imigrante japonês ao Brasil?
Márcia Takeuchi – O imigrante nipônico que aportou em nosso país até a década de 1940, não teria condições de ingressar nos Estados Unidos, pelas já citadas leis antinipônicas vigentes nesse país. Os interessados, geralmente, eram oriundos do campo. Contudo, a partir do momento em que o Japão assume a política de emigração para o Brasil, os nipônicos tinham a possibilidade de chegar à pátria de adoção donos de lotes de terras adquiridas pelas empresas de colonização japonesa, financiadas pelo governo japonês. Assim, surgia a figura do imigrante proprietário. Esses pequenos produtores se reuniam em torno de cooperativas – sistema de produção coletiva introduzida em nosso país pelos imigrantes japoneses. O reinício da imigração nos anos 1950 representou a entrada de outro perfil de imigrante: técnicos e grande quantidade de homens solteiros, que visavam à permanência no Brasil, ao contrário daqueles que chegaram nas fases anteriores, que objetivavam se instalar por um curto tempo no país a fim de acumular capital suficiente para retornarem ao Japão.
Princípios – O que levou o Brasil a se tornar a maior colônia de japoneses do mundo?
MÁRCIA TAKEUCHI – Várias circunstâncias: as restrições norte-americanas; o apoio estatal [do Japão] aos imigrantes que se dispunham a se aventurar no Brasil; a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, que fez os japoneses radicados no Brasil se conscientizarem da necessidade de permanecer no Brasil e continuar sua integração à sociedade brasileira.
Princípios – Qual comparação possível entre os imigrantes japoneses e os italianos e espanhóis, também do fim do século XIX e inicio do século XX?
MÁRCIA TAKEUCHI – Os japoneses, assim como os italianos e espanhóis, vieram inicialmente ao Brasil como trabalhadores assalariados para fazendas de café. Entretanto, ao contrário dos europeus – preferencialmente, católicos e latinos –, os japoneses eram alvo de debates e polêmicas sobre a influência negativa da raça asiática sobre a brasileira, tida como ainda em formação. Os nipônicos traziam estigmas como hipocrisia, sorriso eterno [sorriso amarelo], mentalidade estranha incompatível com a desejada pela elite brasileira.
Princípios – O que representou, na política de imigração e no desenrolar da história do Brasil, o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, assinado em Paris, em 1895?
MÁRCIA TAKEUCHi – Esse tratado teve como resultado prático o início da imigração japonesa para o Brasil. Entretanto, é preciso lembrar que se passaram 13 anos antes da concretização do processo imigratório, em razão dos motivos que expressei antes. No entanto, representou a possibilidade de os japoneses virem para nosso país e constituírem a maior comunidade de origem japonesa fora do Japão, além do intercâmbio econômico entre os dois países.
Princípios – O sentimento antinipônico, traduzido na expressão “perigo amarelo”, representou a forte resistência do Brasil em incorporar esta nova cultura e este novo povo. Quais os principais motivos e os desdobramentos deste entrave?
MÁRCIA TAKEUCHI – A elite antinipônica era profundamente influenciada pelas teorias racialistas européias e alegava que as colônias japonesas se localizavam em pontos estratégicos do território nacional, especialmente no estado de São Paulo. Essas colônias foram qualificadas como quistos e de “Estado japonês dentro do Estado”, mas não entravam nas considerações dos antinipônicos – de que os imigrantes representavam uma minoria diante de uma sociedade majoritária de costumes e cultura diametralmente opostos em relação à sua. Além disso, os imigrantes japoneses perseguiam o sonho da independência econômica e visualizavam no cooperativismo e na manutenção de sua identidade étnica fatores fundamentais para alcançá-la. O governo japonês, também, fornecia auxílio a seus súditos justamente para essa colonização ser bem sucedida, e encontrar oportunidades fora de sua pátria, que vivenciava crise econômica e dificuldades provocadas pelos conflitos na Ásia.
Princípios – Essa discriminação ainda tem força nos dias atuais? Como ela se expressa?
MÁRCIA TAKEUCHI – Nos dias de hoje, mesmo com a comunidade nikkei integrada à sociedade brasileira, há referências aos descendentes através de estereótipos considerados “positivos” – o japonês é estudioso, esforçado etc. –, motivados pela identificação física imediata. Há, portanto, uma série de características atribuídas aos nikkeis [via piadas e imagens pré-concebidas] que demonstram a persistência no senso comum de considerar esses brasileiros – filhos, netos e bisnetos – de uma maneira diferente.
Carolina Ruy é secretária editorial da Princípios
EDIÇÃO 96, JUN/JUL, 2008, PÁGINAS 76, 77, 78