Goiânia deixa de ser um acampamento provisório. Desenha-se, põe rosto. Trocou o bucolismo de Goiás, Jaraguá ou Pirenópolis pelo lirismo peculiar dos bares estirados nas calçadas ao entardecer, o escurinho das boates do bate-estaca. Nas casas noturnas, esganiçados caipiras põem em risco a estética da globalização. É cosmopolita, mas com gosto de terra e jeitão de fazenda. Nos carrões de luxo luzem os chapéus dos agrobóis. E não é raro ouvir-se nas noites de pecuária trotar de cavalos, soar de berrantes. No antigo mercado do Bairro Popular cresce um desses ajuntamentos. Embora seja, desde a infância, introspectivo, de riso remorseado, acabei aportando à romântica algaravia que ali se forma às terças-feiras. É a noite do bolero. Convite-intimação de Sônia Ferreira. A Quixote do Ceculco, Centro de Cultura do Centro-oeste. Sônia comemora os 30 anos da instituição que pretende unir as ilhas culturais de Goiás, Matogrosso, Matogrosso do Sul e Distrito Federal. Encontros, debates, exposições, cantorias. Agora, publica um livro: Chuva de Poesias, Cores e Notas no Brasil Central. Em quase 300 páginas quer unir as artes da região. Pintores, músicos, poetas, prosadores. Sonha que alguma autoridade, dessas que fazem chover, descubra seu belo trabalho e o faça chegar às escolas, aos menininhos da região. É uma utopia didática de mestra. Um navio de sonho carregado de suprimentos para uma tripulação do futuro. Mais uma jornada cultural. Sônia resolveu estender as comemorações trinteanas do Ceculco, iniciadas na casa de Bariani Ortensio, ao Mercado Popular. Como o Teatrinho do Cine Ouro, o chorinho das sextas-feiras no Grande Hotel. Não se pode deixar de louvar o empenho do prefeito Íris Resende inspirado pelo escritor e político Kleber Adorno. Se o povo precisa de asfalto, precisa também de vias de alegria, estradas de lazer. Assim é o mercado. Cada dia da semana dedicado a um estilo musical. Sônia interrompe delicadamente a dança, o canto seresteiro do Zardo e ocupa o microfone. Comemora aniversários. Do Ceculco e dos amigos. Ali estava o cronista filho de maio. Comandou os parabéns. Distribuiu brindes, principalmente seu novo livro. Os casais dançarinos pararam. Bateram palmas, participaram naturalmente daquela inserção literária entre mambos e boleros. Recebi uma caixa com 3 garrafinhas de Orizonita, que sua família destila em Campo Formoso. Aí não para o surrealismo do evento. Banners com textos de José Fernandes e Elizabeth caldeira homenageiam os escritores. Como se a multidão dançante houvesse apenas parado para respirar, tomar um gole de cerveja, os músicos atacam e recomeça a festa. Sexagenários, octogenários. Um casal que deve somar quase duzentos anos coreografa reboleios lúbricos na pista. Há uma mistura doce de brancos, negros, funcionários aposentados, médicos, advogados e outras castas, por momentos esquecidos dos racistas programáticos de plantão. O que separa as cores no Brasil é a miséria. No carnaval, no futebol, na folia somos todos iguais.