Azáfama. A igreja abria as portas. Murmuravam-se rezas, retumbavam hinos, gemiam preces. Casais se preparavam para o casamento. Meninos de colo e até os maiorzinhos engomados, em camisolas brancas, como as de anjos de estampa, para os batizados. Os que já tinham passado pelo sacramento inicial eram moldados para a primeira comunhão. Deviam estar limpos, sem nódoa de pecado, para que recebessem a suprema iguaria, o corpo de Cristo. Para os meninos, era um cadaverzinho infantil, ou às vezes, um pão que manava sangue. Os capões cevados em pequenas gaiolas de paus eram retirados, abatidos, recheados, cozidos, assados ou em farofa. Foguetes explodiam ou rasgavam os céus em assobios para saudar Deus lá nas nuvens. Estava chegando o padre missionário que por ali dava as caras de ano em ano para curar, acasalar, dar sal, marcar e tosquiar o rebanho. Vinha com pios sacramentos para cobrar as espórtulas da Igreja, os impostos de Deus. Gordo e suado cavalgando lentamente uma mula e puxando outras três, com enormes bruacas para recolhimento das oferendas e mimos. Para o menino, aquilo não era festa. A começar pela revelação de Deus. Que aparecia sentado num amontoado de nuvens sempre com a mesma cara sisuda cercado de almas, as eleitas, que se postavam numa eternidade demorada contemplando sua irascível serenidade. Um sujeito de poucos amigos, que teve o desplante de mandar seu filho descer das alturas para ser pregado pela horda bárbara numa cruz. Depois tomou conhecimento de seu capataz, o demônio. Imaginava um monstro de asas, chifres, cara incendiada e pés de réptil. A ele Deus entregava as almas fracas, que não resistiam os pecados do mundo. Outras ele mesmo arrebanhava por seu próprio encanto. O pior foi ter conhecido o pecado. Dele não escapava mesmo sua alminha tenra. Estava manchada de furtos de frutas nos quintais, de pequenas desobediências, de pensamentos terríveis, de inconfessáveis práticas com a molecada à beira do rio. Passava noites acordado, a cabeça rebuçada, os olhos trancados. Nada adiantava, nem preces, nem imprecações a Deus e a santos subalternos. Ali estava o Demônio sequioso, bebendo aos poucos sua alminha esgarçada. O padre ressonava, as beatas da casa roncavam. Desfrutavam antecipações celestiais, enquanto o tinhoso pisava em sua goela, armava um arpão de três pontas, fazia caretas, e o chamava com gestos obscenos para segui-lo. Deus ficava distante, apenas olhando a olimpíada das almas. Com o tempo, conheceu a estampa do arcanjo São Miguel que se interpunha com valentia entre as almas e o tinhoso. Era uma figura bonita, com espada e armadura combatendo a fera infernal. Pensando-se protegido o menino chegara a dormir, entregando ao santo guerreiro sua guarda. Por pouco tempo. Retiraram a estampa do quarto. Ficou de novo sozinho, sujeito às investidas e tentações de Satanaz. Como segue até hoje.