Os dias que não doem
Não há mais como nomear as quartas-feiras no Sarau da Cooperifa, nem
contá-las em versos ou prosa, por exemplo: a noite de ontem foi simplesmente inenarrável. Mágica. Sem truques. Uma daquelas noites em que a gente se lembra o porque de estarmos vivos, que é para celebrar a vida com tudo a que temos direto: riso e dor. Só que desta vez mais riso do que dor. A Lua sabe do que estou dizendo, ela estava lá, cheia, em silêncio por respeito aos poetas, para que fluísse a poesia.
Ela viu tudo, e desta vez fomos nós, a comunidade, que fomos a sua fonte de inspiração, e tenho certeza que foi por nós que ela brilhava, para que a gente não se perdesse do caminho.
Parece que todos haviam recebido um comunicado, o mesmo recado, e vinham de todos os lugares, dos becos, das favelas, do centro, do lado de dentro, do lado de fora, foi impossível contá-los sem abraçá-los.
Traziam na garganta um grito entalado que vinha das galés do império romano e dos porões dos navios negreiros singrados da velha mãe África, e todos vinham carregados de feridas ainda expostas no peito nu, mas não havia lágrimas, apenas o clamor por liberdade. Liberdade! Liberdade! Liberdade! (Ô Povo lindo, ô povo inteligente!)
O Sarau da Cooperifa ficou pequeno para tantas vozes, que se juntavam a outras vozes, era como se ouvíssemos o Poeta João Cabral de Melo Neto recitando, depois da dona Edite, "um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos."
E cada um que recitava sua poesia era como se lançasse um grito, para que se juntasse a outros gritos, na intenção que todos esses gritos acordasse a humanidade. Você ouviu?
Eram muitos os que gritavam, homens simples, mulheres dignas, uma gente a quem o capital insiste em escravizar, mas um povo que não admite ser escravizado. Por isso o conflito, e não tem nada a ver com poesia de prateleira de biblioteca. Tem a ver com a palavra da rua, é boca sem dente e descamisada. Órfã de pai e mãe. Sem certidão de
nascimento, muito menos carteira profissional. É letra que corre sim pelas calçadas de chinelo de dedos, mas só que não tem varizes nem frieiras, e não deixa pegadas.
A Palavra livre nos torna livre. Livres, entendeu? Por aqui, agora, só apanha na cara quem quer. Lá, no sarau, escolhemos não dar a outra face, aliás, face nenhuma: bateu levou!
Um dia um intelectual disse que éramos exóticos, só porque pegávamos ônibus lotado e gostávamos de poesia: "Como pode esses ornitorrincos gostar de literatura?" – ironizou o homem da academia, levantando os halteres das letras para que outros dos seus também exercitassem a arrogância. Nesse caso, os sábios cantam como sabiás, mas dançam como caranguejos – nada contra os caranguejos.
Mas quem foi que disse que a gente gosta de literatura? A gente gosta de Mané Garrincha, o bailarino das pernas tortas. De Cartola, Adoniran, Dolores, Sabotage. A Gente gosta de roda de samba em cima da laje. De beijo na boca. De futebol de várzea. De boa educação. De casa pra morar. De trabalhar. De empinar pipa. De boteco. De cerveja gelada. De festa na quebrada. E de uma "pá" que não dá para
escrever aqui. A gente gosta de rir, chora, mas a gente gosta mesmo é de sorrir, mas
aí vem alguém e diz que "não pode", então a gente escreve sobre essas coisas, dos dias que doem e os dias que não.
A Gente é casca de ferida que gosta de rir e chorar no papel, só isso. Não é literatura, é a vida.
É a vida o que realmente nos interessa.
*Neste sarau da Cooperifa de quarta-feira (16-7-08) tinha mais de quatrocentas pessoas (recorde do ano), mais ou menos cinqüenta poetas, Mano Brow só foi mais um, um dos nossos.