Estava um meu amigo, que há muito eu não via, a apoiar-se na parede de um buteco. Fui passando e, ao reconhecê-lo, o cumprimentei com efusão. Ele, que esperava o filho terminar sua aula de informática, quase me agarrou, com aflição. Você tem um tempinho para mim? Fique aqui mais um pouco, estou precisando conversar com você. Há muito não o via, e estranhei a mudança: há bem pouco tempo ele não tinha o corpo e o rosto destruídos. O tempo deve tê-lo atropelado, de tal maneira se mostrava um homem acabado. É claro que não perguntei como ficara naquele estado. Seria indelicadeza, quase uma agressão, uma forma talvez de culpá-lo pelo que lhe aconteceu.

      E eu não sabia o que poderia ter sido. Só me lembrava de ser ele, há pouco menos de dez ou quinze anos, um homem decidido, com ar de auto-suficiência em tudo, quase arrogante, em suma. Gabava-se de não precisar de nada e de ninguém, pois tinha uma profissão, e trabalho não lhe metia medo. Fazia questão de declarar uma inapetência ao que chamava de “bobagens” de poesia. Era homem viciado em trabalho, a funcionar de modo certo, como as máquinas que montava e desmontava, pondo-as a cavar a terra, desmatar, tirar os cílios dos rios, que em sua infância e juventude o comoviam. Lembrava-se agora de como chegou a enternecer-se com bichos e árvores, comovido com a beleza humilde e cantante da natureza.

      Em sua infância, em movimento de fuga à rigidez quase tirânica do pai, sonhara pegar um barco, descer o rio Grande, em São Paulo, sem destino e sem data ou porto de chegada. Viveria a jornada do herói, na saga de aventurar-se, movido pelos ideais da liberdade. Mas, temendo as conseqüências, não fez isto. Também não realizou o movimento que sua alma pedia: o de ser guardião da mãe natureza, dedicando-lhe amor e cuidado, visto ser a vida seca, assolada de aspereza, uma vez quebrado seu equilíbrio dinâmico, ao ser atacada a interdependência dos ecossistemas. Ao contrário disto, como agrônomo, para “defender o pão de cada dia”, o que fez foi orientar fazendeiros a obter o máximo de lucro com um mínimo de investimento – sem levar em conta o custo ambiental, elemento que não entrava na conta, em seu tempo.

      Sem amor à profissão, a que teve de se submeter, por ser a única para a qual se podia estudar sem custo, e ainda por cima com bóia e alojamento garantidos, veio nadando na direção contrária à respiração da sua alma. Assim, teve que se fazer homem de ferro – avesso à sensibilidade artística, sem abertura alguma ao poético, que ele via com arrogante desprezo. Assim, ao se construir como brucutu, Homo Economicus carrancudo, cortou as asas da anima, só pensando em ganhar dinheiro.

      Ocorreu, no entanto, que trabalhava junto a outros que também só pensavam nisto – e sendo mais espertos e menos éticos do que ele, de todos os modos possíveis passavam-no para trás. Trabalhando para governos, estes não pagavam, levando à falência os empreiteiros. No desespero de recuperar dinheiro, tempo e trabalho investidos nas empreitadas, acionava seus devedores, indo às barras e prolegômenos da Justiça. Para tudo acabar em nada. Ao fim e ao cabo de idas e vindas que foram verdadeiras sagas, seus advogados, em obtendo sucesso, embolsavam todo o dinheiro, ficando mais ricos, viajando ao estrangeiro, enquanto ele ficava a ver navios, Sísifo do desespero, a carregar as pedras do eterno recomeço.

      Com olhar perdido no vazio, lembrou que certo dia, estando a dirigir um trator, uma marcha não entrava. Teve então um surto de raiva, passando a esmurrar o câmbio, e a berrar xingamentos raivosos e terríveis. Seu empregado aproximou-se e disse: “Como o senhor explode à toa!”. O resultado de tanta explosão à toa, somado à recusa a um viver tão antagônico ao natural – tão arrepio da viagem da liberdade, que em sua juventude sonhara, não podia senão resultar em doença nervosa.

      Em seu entender, concorreu para o desastre existencial o fato de ser filho e neto de italianos casco-duro – homens com nervos à flor da pele, capazes de explosões emocionais que eram incêndios devastadores. Coisa de que se gabavam, sendo elogiado pela praça associada – até mesmo pelas vítimas de tais erupções emocionais. Assim foi criado, e só isto no lar doce lar ele viu – além do que, com orgulho machista, o pai contava do avó: não levava desaforo para casa, sendo estourado até as tampas, capaz de aprontar um pampeiro por qualquer dê cá esta palha.

      Ele mesmo, agora reconhecia: perdera vários, senão todos os empregos que teve, por não ter um mínimo de trato ou ternura, sendo de uma rispidez de lixa, humano porco-espinho, sempre à beira de um ataque de nervos. De todos foi despedido por incompetência no trato humano. O não saber lidar com as pessoas, ser gentil ou ser capaz de “perder uma discussão”, ou de mudar de posição, fez que perdesse, uma a uma, as chances de prosperidade ou de paz.

      Agora reconhecia, com amarga ironia, a lembrar o ditado popular, que assinala: a experiência é um carro com os faróis colocados na parte traseira – só iluminam o passado, o caminho percorrido. Em seu caso, reconhecia – saber disto não vai adiantar muito, já que vê a si mesmo como um homem derrotado, alguém a chegar no fim da linha. Com doença de Parkinson, doença insidiosa, de que chegou a ter notícia, não obstante os sinais que chegavam, a sugerir atenção e cuidado. De nada disto ele cuidou, menos ainda de cultivar uma sensibilidade humana e artística que em seu crepúsculo lhe serviria de consolo ou guia. Estragou os momentos que poderia ter de amor, amizade, paz e harmonia.

      O modo como corremos, apressados, pela vida, torna veloz a nossa morte. Vivemos em intensiva produção de infelicidade, e ainda reclamamos do azar, ou da má sorte. Consumidores consumidos, sendo belas ou belos adormecidos, no fundo vivemos entorpecidos, a erguer louvores e litanias às máquinas que nos moem. Hoje, no outono de uma existência que ele mesmo chama de falida, rememora os instantes de encontro humano – aponta, com amargura, a possível ternura que poderia ter sido, e que não foi. Eu lhe digo que o ter compreendido o quanto foi insensato será uma luz a guiar seus passos pelos dias e noites que lhe restarem. Ter aprendido, com sua própria experiência, há de servir que ensine ao seu filho o caminho harmonioso, que não lhe foi ensinado.

      E assim quando mais tarde o procure a morte (em que viveu estando ativo) resgatará a lembrança do esplendor que será mapa-guia de sua ânima traída. Ao me despedir, com um forte abraço, ele tinha lágrimas nos olhos, e eu também. Em minha alma comovida uma frase martelava: não perguntes por quem os sinos dobram. Eles dobram pelos que, tarde demais, que para ser feliz só é preciso viver no desarme de amar tudo o que vive!

 Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.