De repente, não mais que de repente, me vi com sessenta e poucos anos.

      Fiz as contas e o resultado foi que o tempo que me falta é muito menos que pensava.

      Eu somei as amizades: vi que algumas tinham sinal negativo. Considerei-as apenas em módulos. Em algumas eu cabia direitinho; noutras nem tanto.Dividi os sentimentos, adicionei amores (amei poucas pessoas; poucas também me amaram), O número final, embora diferente de zero, não era um inteiro. Vi que sobraram restos: que fazer com eles?

      Multipliquei o dividendo pelo divisor; vi que somando os restos ficava algo. Algo inteiro.

      Foi quando então lembrei-me das mangas bourbon de minha infância. Suculentas, perfumadas, doces, apetitosas… . Isso me fez pensar.

      Acho que vou mudar um pouco. Pensei em voltar a ser novamente aquele menino chupando manga bourbon. Antigamente, as chupava depressa, depressa como o mundo gira. Agora, rôo o caroço, até que nenhum suco fique entranhado.

      Contei meus anos e descobri que terei muito menos tempo para viver daqui para frente, do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou duas maçãs: A primeira, ele comeu displicente; descascou-a, retirou as sementes e a partiu em duas partes. Mas, percebendo que restava apenas uma, comeu a casca e chupou as sementes, até que se transformaram em algo insípido….

      Falta-me ânimo, para brigar com medíocres. Nunca mais quero estar próximo da fogueira das vaidades. Xô vaidades!

      Chega de egos estofados e estufados, chega de falsidades e de hipocrisias. Não quero fazer projetos dos quais não poderei ver o desfecho. Quero algo para já; e não para amanhã ou depois; quero ver o resultado.Quero que alguém me dê atenção e ao que escrevo. Se um dia um texto meu, for reconhecido em público, nesse dia posso partir ou iniciar a caminhada na encosta da montanha da vida. Gostaria que o artista que o ler seja saudado com um aplauso enorme. E que o público possa, mesmo que num segundo, admirar o Brasil e os brasileiros, assim como eu. E assim, espero que finalmente entendam minha missão na literatura.

      Nunca mais quero conversas intermináveis, que levem a lugar nenhum. Não quero falar de vidas alheias, que nunca foram importantes para mim. Quero dizer ao meu amor, minha esposa, do quanto me sinto orgulhoso dela. Tudo, ou grande parte do que tenho, certamente devo a ela. Com ela reparto o edredon e as queixas das dores da senilidade e das minhas pequenas frustrações, como nunca ter conseguido "plantar bananeira", assoviar com os dedos na língua, tocar violão, ir passear na Europa, para conhecer Portugal e Itália, dentre outras frustrações menores… .

      Não quero, nunca mais, ficar me explicando para pessoas melindrosas. Chega de melindres!

      Chega de respeitar pessoas às quais nem sequer me respeitaram um dia sequer.

      Quero meter meu conhecimento num saco e sair com ele às ruas, às fábricas ou às engenharias e escolas; aguardando que algum possível curioso, colega, amigo ou parente me pergunte sobre tudo que eu tenho ali guardado.

      E, se um dia for perguntado sobre seu conteúdo, eu diria a ele, que ali estava um velho caipira que amava tanto o Brasil, que deseja morrer logo, para não vê-lo nas mãos dos maus.

      Lá dentro do saco estariam provas incontestes de que amei muito sim e talvez até tenha sido amado. Mas que meu amor era tal e qual cachoeira de rio: era instigante, bonito, limpo e sem volta.

      Eu diria que, além do sabor da manga bourbon, lembrarei dos amigos verdadeiros e dos falsos; ah, desses vou lembrar!. Lá no saco, estariam lembranças de que meu tempo ficou escasso para mostrar o amor que tenho pela língua pátria e por pessoas que se apercebiam ou não disso, às quais procurei entender entre os simples e os humildes, mas que também aprendi com eles e com os grandes autores e sábios.

      Ainda que minha alma tenha pressa, não quero perder a essência. Quero ver a mesa repleta de mangas bourbon, para fatiá-las com o fio da navalha de minha emoção. Ato contínuo, quero distribuir nacos de mangas bourbon para aqueles que me amaram de verdade. Quanto às mangas, hoje percebo que já não as encontro. As mangas bourbon de minha infância, cujo caldo escorria no peito da minha camisa de menino poeta, deixando-me marcado com sua nódoa e seus bagaços por toda uma vida inteira. Como eu gostaria de provar dessas mangas mais uma vez, para poder distribuí-las para a humanidade inteira. E gostaria que a Humanidade inteira, ao prová-las sorrissem para mim.

      Em resposta, eu sorriria também. E juntos sorriríamos até a pousada final, junto ao Pai Eterno.

      E eu, na minha imortalidade dos sessenta e poucos anos, distribuiria sabores, perfumes, amores e sentimentos puros até o final dos tempos. Falaria de amor aos filhos que não tive na Terra. Falaria do essencial, que faz a vida valer a pena, na nossa triste e fugaz vida terrena.

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.