Chico Preto
“Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou”
(O Velho Fransciso, de Chico Buarque)
Chico Preto pula no meio da rua, faz saltar os botões da camisa, expõe o peito magro e grita: “Atira aqui! Quer matar filho meu?, mata eu! Atira aqui!”.
O sujeito deixa pender o braço, trinta e oito frouxo na mão. Não sabe se ri ou se teme a coragem do quarentão miúdo à sua frente – negro retinto, carapinha alta, beiço mole pendendo pro lado, olhos injetados de ameaças.
Numa dessas discussões de rua, sabe-se lá por que razão, um dos bandidos do bairro ameaçara passar um dos filhos de seu Chico – motorista de ônibus, chefe de duas famílias (uma oficial; outra, clandestina).
De tão ligeiro, o acontecido chegou à sala de estar da casinha oficial. Seu Chico almoçava, ou assistia ao campeonato brasileiro, ou fazia ambas as coisas. Num arranco, deixou a poltrona. Num salto, venceu a cerquinha que mal defendia seu parco quintal. Postado diante de um rapaz alto e armado, após a bravata e os olhares enviesados de bicho, Chico Preto, expectante, ofegava.
O rapaz quebrou um canto de boca, deu as costas ao pai furibundo, e glosou pros comparsas: “Peito de Aço”. Aos risos, garantidos pelo armamento, foram-se – vez ou outra, um olhava pra trás, voltava-se pros amigos e balançava a cabeça, a repetir “peito de aço”.
Chico Preto, no bairro, no boteco, no ponto final de sua linha de ônibus, virou-mexeu, era chamado Peito de Aço.
Acho que foi a partir desse dia que seus filhos passaram a botar fé nas histórias que o velho contava.
– Sabe esse corgo aí onde ocês brinca? Pense ocês então num rio mil vez a largura dele. Esse é o Rio São Francisco. Eu nadava nele todo dia. Todo dia ia e vinha de uma margem a outra.
– Todo dia, pai – pergunta uma das filhas, entre incrédula e encantada, querendo acreditar.
– Menos nos domingo, que é dia de missa e descanso. Tá vendo esse relógio aqui? – E mostra o cebolão no pulso. – Eu um dia não deixei cair no fundo do rio? Pois deixei. Mergulhei, mergulhei, e nada de achar mais meu relógio. Bão, continuei indo e vindo todo dia pelo rio. Já tinha até me esquecido do relógio. Esse relógio, quem me deu foi pai. Perguntou ansim: “Cadê o relógio que te dei, menino?”. “Caiu no rio, pai.” .
– Ele não achou ruim? – quer saber a mesma filha ansiosa.
– Se achou, não disse nada. Só fez ansim um “hum” e foi deitar.
– E o relógio? – pergunta, dessa vez, um dos meninos.
– Pois um dia tava eu atravessando o rio, escuto um tic-tac, tic-tac. Mergulhei, e achei meu relógio.
– E tava funcionando? – perguntou o mais velho.
– E não tá? Olha ele aqui no meu pulso.
– E como é isso, pai? – volta a inquirir a menina, quase acreditando.
– Ah, isso eu vim saber despois. É que também atravessava o rio, todo dia, só que lá no fundo dele, uma cobra. E cada vez que ela passava pelo relógio, escorregava as escama lá dela nele e dava corda. Quando ia, passava por baixo – chuip; quando vinha, passava por cima – chuip. E dava corda.
Chico Preto veio da Bahia. Casou-se com Clara Soares, natural de Minas. Parece que se conheceram em Adamantina, interior de São Paulo. Teve com ela três meninos e três meninas. Morou no Paraná e, mais tarde, voltou para o estado de São Paulo – desta vez, para fixar-se em Guarulhos.
Tornou-se motorista de ônibus. Como é de praxe na profissão, constituiu outra família. Com a segunda parceira, teve mais dois filhos, se não me falham as fontes: um rapaz e uma moça. Há quem diga que existem ainda outros filhos. Nunca se sabe.
Seu Chico, passados os sessenta anos, teve um AVC, que paralisou um dos lados de seu corpo franzino. Venceu as seqüelas visíveis, mas o corpo, por dentro, foi se desfazendo. Perdeu os rins. Diálises depois, fraquejaram-lhe os pulmões. Ia e vinha do hospital com uma freqüência cada vez maior.
Resistiu à morte o quanto pode. A cada vez que os médicos vaticinavam seu fim, ele reaparecia nas reuniões de família – mais acabado, é verdade, mas sempre contando história.
– Tava deitado numa rede, na varanda de uma casa, embrulhado ansim na manta, triste de dar dó. Aí veio aquela senhora, magra – inté que não era feia não: “Bóra mais eu?”. Deu até uma vontade ansim de ir. Quando ela chegou mais perto, sacudi a manta pra longe, dei-lhe um safanão, que ela saiu rodopiando, e disse: “Sai, Magra, que ainda né agora não!”. Sentei na rede, acendi meu cigarro e traguei que é uma beleza.
Francisco Rodrigues de Oliveira faleceu na madrugada do dia vinte e quatro de julho do ano da graça de dois mil e oito. Hoje, seu corpo, ou o que restou dele, está depositado no mesmo cemitério em que enterrou sua mãe e um de seus filhos. Parentes e amigos acorreram ao velório. Crentes entoaram cânticos e orações. Católicos encomendaram em silêncio sua alma. Algumas filhas e netas se desesperaram. Outras preferiram sofrer mansinho. Cogitou-se uma rodada de cachaça, em memória do defunto, mas os idealizadores da empreitada acharam que o restante da família ia se incomodar. Desistiram, ao que parece. Pelo menos, naquele instante.
Chico Preto não foi santo. Nada mais longe disso do que sua vida e seus pensamentos. Aprontou das suas. Judiou um tanto da esposa. Mas trabalhou. E amou. Parece que foram as duas coisas que seu Chico mais fez – lá a seu modo, é verdade; a jeito de macho antigo (cão que rosna, morde, assopra e pede afago), mas não se pode negar que o fez com largueza e alguma sinceridade. Do que, arrepanhando tudo, juntando e subtraindo, podemos dizer “ansim”: ali, meus amigos, o que temos enterrado é um brasileiro.