Princípios: Dadas as situações dramáticas vividas pelo país nos últimos tempos, envolvidas pelo chamado crime organizado, até que ponto este problema cabe a essa esfera do poder municipal?
Benedito Mariano: As dimensões do crime organizado são mais visíveis numa metrópole do que numa cidade pequena. Em São Paulo, por exemplo, estima-se um comércio de mais de trinta milhões de cd’s pirateados por ano. Não é competência da prefeitura fazer esse combate, é um problema de combate à pirataria, ao crime organizado. Agora, de forma direta ou indireta os chefes do poder executivo, os prefeitos, são cobrados por tal situação. Quando Marta Suplicy foi prefeita de São Paulo, fui seu Secretário de Segurança Urbana, e uma das iniciativas do nosso governo foi montar uma força-tarefa para atuar no centro da cidade contra algumas modalidades do crime organizado, em especial de vendas de produtos pirateados. Sob o comando da prefeita juntamos nessa força-tarefa a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, a Secretaria da fazenda do Estado, a Polícia Civil, a Polícia Militar, a Guarda Civil Metropolitana, que era órgão da Secretaria. Fizemos várias ações importantes. Em uma delas – das nove da manhã às sete, oito horas da noite –, paramos a região central e recolhemos uma quantidade tão grande de material pirateado que foi necessário cinqüenta caminhões para recolher. Foi a maior apreensão da história de São Paulo. Isso foi possível porque envolvemos mais de mil e quinhenrespeito a crime, em especial, ao crime organizado.

P: E qual diretriz a Secretaria de Segurança Urbana seguia naquele governo?
BM: Naquela prefeitura criamos, pela primeira vez, uma Secretaria de Segurança Urbana – infelizmente, extinta pelas administrações seguintes de José Serra e Gilberto Kassab. E é estranho hoje o candidato Geraldo Alckmin dizer que retomará a Secretaria extinta pelo PSDB .
Nossa intenção era fazer com que o município assumisse seu papel de fazer uma ação preventiva no combate ao crime. Nossas polícias têm pouca cultura de ação preventiva, daí a importância das guardas municipais. As políticas públicas do município têm um papel importante para enfrentar a violência e para inibir alguns tipos de crime. Se realizássemos uma pesquisa nacional sobre as principais preocupações da população, a segurança pública estaria entre as três mais apontadas. É possível e necessário incluir os municípios ao elaborarmos ações sobre esse tema. E isso está sendo trabalhado. O Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania, lançado no ano passado pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, dá um enfoque muito especial à atuação do município e às ações preventivas.

P: Falando em cultura preventiva, qual o papel da polícia hoje?
BM: Na minha avaliação, o modelo de polícia que temos no Brasil está esgotado e precisa ser reconstruído. A polícia tem uma cultura de atuar na repressão daquilo que é visível. E sem orientação da inteligência policial, sobretudo para mapear a grande estrutura do crime e, a partir daí, estabelecer atuações repressivas e preventivas. Esse modelo falido não cultivou a prevenção.
Veja, na polícia, do ponto de vista dos efetivos, hoje temos quase setecentos mil policiais nos estados, mais cerca de vinte mil da União – aqui incluindo a polícia federal e a polícia rodoviária federal –, e cerca de setenta mil guardas municipais espalhados pelo país, que não estão no sistema.
É fundamental incluir esses setenta mil guardas municipais na agência pública de segurança dos municípios. Mas incluí-los para ocupar esse espaço vago, que é o espaço da prevenção. Por atuar no poder local tendo mais condições de ser uma polícia de aproximação, as guardas podem ser essa polícia de excelência, de prevenção. A partir daí é possível um salto de qualidade porque passaremos a ter a questão da prevenção na lógica do sistema. Evidentemente, para alguns setores, a função da guarda é também ser polícia ostensiva e repressiva, uma mini-PM. Mas não queremos reforçar a repressão, e sim criar uma cultura de prevenção.
As polícias não têm órgãos corregedores autônomos e independentes para acompanhar as atividades das polícias; não têm códigos de conduta, em especial o sistema das polícias militares, de caráter civil. Os códigos de conduta dos PM´s estão muito mais voltados para o PM dentro do quartel do que na rua. É a lógica dessa visão de polícia aquartelada. Durante muito tempo se cultivou a idéia de que a eficiência da polícia se media pelo número de pessoas que ela matava. A polícia matou muito, continua matando, e a violência e a criminalidade aumentam. Esta é a prova inequívoca de que essa visão está falida e esgotada.
A eficiência da polícia se mede pela sua capacidade de enfrentar com inteligência o crime organizado e de prevenir os crimes comuns. Precisamos de uma polícia não só reativa, mas pró-ativa, que faça a prevenção qualificada. Desta forma várias modalidades de crimes (furtos e roubos de pessoas, furtos e roubos de veículos) podem ser prevenidas com a intensificação do policiamento ostensivo, preventivo, presente, permanente.
A cultura que temos hoje é de caçar criminosos e reprimir. Isso ocorre porque o setor de policiamento ostensivo e repressivo no Brasil, historicamente, foi feito por instituições de natureza militar.

P: Qual a raiz dessa estrutura? Teve influência do regime militar?
BM: A estrutura da polícia vem de muito antes do Regime. Vem do Império. A ditadura militar reforçou esse caráter eminentemente repressivo do sistema. A polícia dialoga muito pouco com a comunidade. Mas essa lógica do policiamento ostensivo-repressivo executado por instituições fechadas, aquarteladas, com essa visão militar, vem do Império. A ditadura de 1964 a reforçou, extinguido, por exemplo, em dezesseis estados, as guardas civis estaduais. Elas faziam policiamento ostensivo, mas não eminentemente repressivo ou militar. A ditadura também centralizou na União a política, a disciplina, a coordenação das ações das polícias ostensivo-repressivas, que viraram todas militares.
Somando o período da ditadura Vargas e o militar, criou-se no sistema de segurança pública um fortalecimento da “polícia-política”. Durante muito tempo a polícia servia muito mais aos interesses do Estado autoritário do que à população. O setor de “polícia-política” bisbilhotou muito o movimento social, popular, sindical, partidários políticos. Dessa forma, a inteligência policial não servia à segurança pública, mas sim à perseguição dos adversários políticos.
Precisamos agora construir um sistema de inteligência para a democracia. A transição democrática extinguiu essa lógica de inteligência voltada para a “polícia-política”, mas ainda não chegou ao patamar que se deseja, de criar um sistema de inteligência policial para subsidiar a polícia no combate do crime, de cima para baixo.

P: Nas duas maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, a política de segurança pública visa à repressão ostensiva contra o crime, com aumento de mortes provocadas pela polícia, e também da violência policial. Por favor, fale mais sobre essa forma de combater o crime “de cima para baixo”.
BM: A polícia, no Brasil, sempre atuou de baixo para cima, olhando para a periferia. E a lógica do grande crime não está na periferia. O modelo de polícia que se espera é de uma polícia bem paga, qualificada, bem informada e preparada para combater o crime de cima para baixo – do grande para o médio, do médio para o pequeno – e não só olhar para os efeitos visíveis do crime. Atuando apenas na base visível do crime, a polícia sempre vai cometer muita violência. É a situação atual da polícia, que mata muito mas não pega o comando do crime. Além disso, a polícia ainda trabalha com o estereótipo de que o bandido mora na periferia, tem o rosto do pobre. E, como sabemos, quem comanda as estruturas do crime está nos bairros de classe média alta. Quem comanda a lavagem de dinheiro, enfim, toda a estrutura do crime organizado, não é visível. Mas só se pode atuar nesse nível da criminalidade com inteligência.
Não queremos uma polícia que faça repressão sem qualificação e com preconceito, sem ter essa dimensão de combater o crime, voltando sua ação contra os pobres.
O estabelecimento de uma cultura de prevenção no sistema de segurança pública, de modo que a polícia chegue antes do crime, é um dos caminhos para resolver esse impasse. Se olharmos a Constituição – mesmo a Constituição Democrática de 1988 –, veremos que não é função da polícia federal, rodoviária, civil, ou militar, fazer prevenção. A palavra prevenção não existe no sistema de segurança pública. Não porque a polícia ou determinados policiais não querem fazer a prevenção, mas eles não são treinados para isso.
Os militares – e esse é um legado do período militar – têm uma política de caçar inimigos, com um olhar de que o inimigo estaria na periferia. Aí não tem outro jeito, o resultado é a violência letal, e letal contra os pobres. Temos de dar uma condição melhor para a polícia atuar na prevenção, reorganizar o sistema de informação e inteligência, voltados para a segurança pública.

P: No projeto de segurança, elaborado em 2002, pelo Instituto da Cidadania, do qual o senhor participou, são apontados vários argumentos, segundo os quais neste processo ninguém está seguro. Essa reflexão continua atual?
BM: Sim. Primeiro, fui um dos coordenadores do programa do Instituto Cidadania, que virou o projeto de segurança pública para a primeira campanha para presidente da República do presidente Lula. Evidentemente, ninguém está seguro se o sistema é falido. Na verdade, os setores médios e os mais ricos da sociedade só sentirão a ineficiência do sistema quando determinadas situações de crime, que só acontecem na periferia, chegam às classes médias. E cada vez mais isso está acontecendo. Os seqüestros aumentaram, homicídios dolosos, muito próximos de setores médios e ricos. Precisamos de uma polícia que leve em conta, por exemplo, a determinação da ONU (Organização das Nações Unidas) para o uso de arma de fogo. Não tem de estar, em qualquer ocorrência, com arma em punho, e atirando. Em alguns países, se o policial tira a arma do coldre já tem que fazer um relatório, mesmo sem ter dado um único tiro. Aqui, em qualquer ocorrência banal os policiais já estão com a arma em punho, principalmente nas regiões periféricas. Temos de ter maior controle sobre o uso da força letal, temos de ampliar a inteligência policial, ampliar a prevenção e reestruturar e democratizar as relações internas na polícia e incluir os municípios numa ótica preventivaatravés da sua agência, as guardas municipais – que não são poucas. São setenta mil homens e mulheres hoje usando uniforme e arma e considerados polícias de fato. É fundamental termos uma polícia qualificada, legalista, democrática, eficiente, capaz de se antecipar ao crime, preparada para mapear o grande crime e, aí sim, reprimir com força a estrutura do crime organizado e não a parte visível de determinados crimes. Não se combate o tráfico de drogas reprimindo os “aviões”; combate-se com eficiência o tráfico de drogas prendendo os grandes traficantes, atuando nas redes do tráfico. E aí precisa ter inteligência policial porque se não não vai chegar lá.
Voltando aqui para o município, há vários projetos relacionados à juventude, à infra-estrutura, principalmente da periferia, envolvendo iluminação pública, moradia digna, ampliação de projetos como o “renda mínima”. Foi uma das coisas importantes que aconteceu no governo Lula. Nunca foi tão grande o número de pessoas beneficiadas pelo “Bolsa Família”. Há vários projetos sociais que podem, direta ou indiretamente, contribuir para diminuir a violência, voltados para a juventude para que ela possa ter alternativa e inibir, cada vez mais, a possibilidade de os jovens serem cooptados pelo crime e se tornarem reservas do crime organizado.
Então, este é um setor para o qual é necessária uma atenção muito especial, principalmente sobre a juventude pobre que não tem alternativa de cultura, lazer, e uma parte significativa acaba sendo cooptada pelo crime.
Também é preciso valorizar o policial. Temos quase oitocentos mil policiais espalhados no país e é necessário ter uma ação de eficiência. Nossos policiais são muito mal treinados, por exemplo, para o uso da arma de fogo e a cada dia vemos o resultado disso. Há poucos dias, no Rio de Janeiro, houve casos gravíssimos, grotescos, de uso inadequado, irregular, da arma de fogo. Para pôr um policial na rua, ele tem de ser muito treinado para usar a arma de fogo, e em determinadas situações. Isso, infelizmente, ainda não acontece.

P: No senso comum há duas visões predominantes: uma absolutiza a repressão policial, e outra absolutiza as políticas sociais apoiando-se na questão dos direitos humanos. Tenho a impressão de que as duas teriam de trabalhar juntas porque as políticas sociais têm efeitos em longo prazo. Como você vê esta dicotomia?
BM: Essa pseudo-contradição entre segurança pública e direitos humanos foi pontuada pelos setores conservadores da sociedade. Durante muito tempo se vendeu a imagem de que quem milita nos direitos humanos defende bandido; teve gente até que se elegeu com esse discurso. Não vejo contradição ou antagonismo entre direitos humanos e segurança pública. Até porque garantir segurança pública é um dos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma polícia legalista, democrática que atue com eficiência contra o crime está promovendo os direitos humanos. E a atuação de direitos humanos que propõe uma polícia mais qualificada, combate a violência policial, combate a violência letal, que combate essa visão policial preconceituosa de olhar só para a periferia dá uma contribuição significativa para melhorar o modelo da polícia. Não teremos uma democracia sólida sem uma política de Estado voltada para os direitos humanos e sem um sistema de segurança pública, democrático coadunado com as conquistas democráticas que tivemos. Apesar dessas conquistas, não temos um sistema de segurança pública democrático. A lógica do sistema ainda é a do Brasil Império, do período do arbítrio. Como a polícia pode agir com eficiência se o modelo propõe outra coisa? Tem que mudar o modelo. A cada dia me convenço mais de que ele só será mudado debatendo segurança pública em todos os setores da sociedade, criando uma consciência crítica de que isso diz respeito a toda a sociedade e não apenas à academia, aos policiais, aos intelectuais.
Não dá para depender unicamente do Congresso Nacional. Muitas vezes ele intervem na questão de segurança propondo uma resposta reativa. E resposta reativa normalmente reforça esse modelo que queremos mudar. Porque resposta reativa sempre tem um cunho conservador e reacionário. Espera-se que o Congresso abrace o debate sobre construir um sistema diferente de segurança pública. A partir daí a sociedade levará isso para dentro do Congresso Nacional. Plagiando o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, digo que a Constituição de 1988 é uma continuidade do mesmo sistema de segurança do arbítrio e, em alguns aspectos, até mais conservadora. Por exemplo, ela ampliou a possibilidade de ter auditorias e tribunais militares estaduais, mais do que a Constituição dos militares. Embora tenha sido uma Constituição com grandes avanços, nesse capítulo da segurança pública não houve avanço significativo. Aí sim temos uma contradição. Não entre direitos humanos e segurança, mas entre avanços democráticos significativos e um sistema de segurança pública que ainda tem o rosto do arbítrio, a cara de períodos autoritários no país. Isso porque a estrutura não foi mexida. É fundamental criar estruturas novas no sistema de segurança pública.

Carolina Ruy é secretária de redação de Princípios

EDIÇÃO 97, AGO/SET, 2008, PÁGINAS 65, 66, 67, 68