Na atualidade, quando se fala muito em democratização dos espaços públicos, da infra-estrutura das cidades, dos direitos do cidadão e da igualdade de oportunidades, não se pode deixar de falar da importância do direito de ir e vir. Infelizmente, em nosso país este direito ainda está muito
restrito a determinados segmentos da população – principalmente os segmentos mais privilegiados.

Dotar as cidades de uma infra-estrutura de mobilidade e transporte para toda a população, principalmente para as camadas mais carentes, é uma necessidade imperiosa para garantir de fato o direito de ir e vir e possibilitar a diminuição da exclusão causada pela ausência de um transporte público de qualidade e acessível. Nestas próximas eleições municipais, principalmente nos grandes centros urbanos, o transporte público, o trânsito e a mobilidade tendem a ser pontos de destaque no debate sobre os compromissos a serem assumidos pelos futuros gestores municipais.

Poucas são as atividades humanas que não exigem algum tipo de transporte para a sua realização. Por isso, esse gênero de primeira necessidade da economia brasileira é muito disputado pelos grupos privados e, até 1988, andou dois ou três pontos na frente do crescimento econômico médio nacional. Desde então, o desempenho dos transportes públicos está na linha do crescimento vegetativo, abaixo do desenvolvimento médio nos serviços.

O fenômeno é resultado da opção econômica adotada pelos setores dominantes da sociedade brasileira desde o final dos anos 1980. As cidades brasileiras sempre enfrentaram problemas com o transporte urbano – o planejamento e o uso racional dos espaços públicos nunca foram tratados com a atenção devida. A explosão demográfica nos grandes centros, em decorrência da mecanização intensificada das lavouras desde os anos 1970, e a opção de deslocamento por automóvel a partir da década de 1950 criaram as condições para a crise que explodiu nos anos 1990.

Segundo o IBGE, em 1970 cerca de 53% dos brasileiros viviam no campo. O censo de 1993 já indicava que essa população havia caído para 22%. Os arredores das grandes e médias cidades, onde até os anos 1970 existiam lavouras e mato, hoje abrigam cinturões de habitações populares semi-acabadas e pessimamente servidas de infra-estrutura. Aliada a este fenômeno, há a destruição do modelo de Estado esculpido a partir dos anos 1930, que garantiu um mínimo de controle e distribuição de recursos para o transporte urbano.

Nos anos 1990 chegaram os demolidores da “Era Vargas”, com picaretas nas mãos e discurso demagógico neoliberal na ponta da língua. Sob a falsa bandeira de que a União, os estados e os municípios haviam perdido capacidade de investir, o setor de transporte foi abandonado à própria sorte. O transporte público urbano mergulhou no caos. O Estado cortou a subvenção para o transporte público, resultando em tarifas escorchantes e em queda acentuada da qualidade dos serviços. As fontes de financiamento do setor privado se mostraram um engodo.

Os ônibus se arrastam num trânsito congestionado por uma frota gigantesca de carros particulares – só na cidade de São Paulo, seis milhões de veículos –, que transportam cada vez mais problemas. O preço elevado das tarifas, a multiplicação da violência e a invasão dos espaços públicos por automóveis levaram as empresas a reduzirem a frota e a cortarem funcionários.

A total falta de planejamento e de prioridade ao transporte coletivo gerou, além do caos provocado pelo excesso de automóveis, um descompasso entre os meios de locomoção e os fluxos de pessoas e imobiliários. O crescimento desordenado das cidades cria um fenômeno chamado pelos urbanistas de “desenvolvimento excêntrico” – ou seja, as empresas, os bancos, os shoppings e os bairros residenciais criam vários centros dentro de uma mesma cidade, sem a infra-estrutura necessária.
Com a precariedade do transporte coletivo, essa falta de planejamento urbano contribui para a proliferação do transporte informal – um fenômeno que cresceu rapidamente e ainda aguarda uma solução eficiente. A mobilidade por este meio, que permite atender a regiões não supridas pelos sistemas regulares, e a praticidade “roubam” passageiros dos sis temas oficiais, transformando-o num negócio atraente e fora de controle.

No transporte ferroviário de passageiros – municipal, intermunicipal e interestadual – a crise também é profunda. Nas duas últimas décadas, o setor praticamente desapareceu para dar lugar a ônibus e carros. Segundo o economista Ian Thompson, ex-chefe da unidade de transporte da Cepal e sócio-fundador da Sociedade Chilena de Engenharia, São Paulo e Rio de Janeiro são casos perdidos.
Pode ser hipérbole, mas algumas informações dão razão a essa conclusão alarmante. A forma como os governos vêm tratando a questão automobilística no Brasil é uma delas. No auge do programa do carro “popular”, em 1993, a Anfavea, associação que reúne as montadoras de veículos, chegou a falar em produzir 3 milhões de automóveis por ano em 2000. Naquele ano os impostos sobre o preço de fábrica eram de 17%, contra 89% no governo Sarney.

A crise econômica da segunda metade da década de 1990 fez a Anfavea rever essa meta. Mas em 2008, com o aquecimento da economia, ela deve ser ultrapassada. Segundo considera a entidade, o mercado surpreendeu nos primeiros cinco meses do ano ao manter altas taxas de crescimento, embora 2007 já tenha sido um ano de recordes. A produção de veículos no ano, que antes era estimada em 3,235 milhões (alta de 8,9% sobre 2007), agora deve chegar a 3,425 milhões, o que representará um aumento de 15% sobre o ano passado.

Hoje a indústria automobilística já responde por 5,4% do PIB. O seu vigor cresce seguidamente desde 2004 – há dois anos, o setor era responsável por 4,9% do PIB total, participação que cresceu para 5,4% em 2007. No PIB industrial, a participação passou de 19,9% para 22,1% do PIB. É a atividade industrial mais importante do Brasil.

O crescimento do número de carros, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), responde pelo nível de monóxido de carbono superior ao limite considerado saudável em mais da metade das grandes cidades do mundo. Durante a vida útil de um automóvel, ele despeja uma média de 35 toneladas de carbono na atmosfera. O ex-prefeito de São Paulo, Figueiredo Ferraz, que inaugurou o metrô da cidade em 1972, certa vez comparou o carro a uma droga. “É um consumidor terrível de espaço, um devorador de energia, um agente poluidor, predador e perigoso”, disse. “O automóvel assemelha-se a uma máquina da idade média que mobiliza, quando se locomove, em média, um peso morto dez vezes maior do que a carga útil transportada”, afirmou. Ferraz fez uma comparação que merece reflexão: “O carro, no confronto com o ônibus e o Metrô, para uma mesma faixa de tráfego, transporta, respectivamente, dez e vinte vezes menos”.

A raiz desse caos urbano está na forma vigente de pensar a forma de prestação dos serviços de caráter público – forma esta que permeia e condiciona toda a ação política e técnica dos responsáveis pela organização e evolução do setor de transporte. Dotar as cidades de um transporte público barato e de qualidade é, portanto, uma necessidade para combater a exclusão a que está exposta uma parte significativa da população das cidades.

Garantir a mobilidade para todos os segmentos sociais e democratizar a utilização do espaço urbano em favor da maioria, sem dúvida nenhuma é uma necessidade e deve ser buscada pelos gestores públicos que tenham, de fato, compromisso com o combate às desigualdades. Para que isso seja possível, no entanto, é necessário repensar nossas cidades. A cidade tem de ser um espaço a ser ocupado fundamentalmente pelas pessoas.

Não se pode privilegiar as máquinas, no caso os automóveis que transportam normalmente apenas uma pessoa, em detrimento do transporte público que transporta dezenas de milhares de pessoas. Os recursos públicos não podem ser canalizados para resolver os problemas do trânsito gerado pelo excesso de automóveis, enquanto os investimentos em corredores de ônibus, veículos leves sobre trilhos, trens e metrôs são proporcionalmente muito irrisórios frente à necessidade da maioria do povo.
Assegurar que os recursos já previstos em lei para o transporte público – como os das multas de trânsito, os recursos da CIDE, entre outros – sejam utilizados corretamente para esse fim pode possibilitar melhoras significativas visando à solução desses problemas.

Outro aspecto fundamental é garantir que o transporte público seja acessível a toda a população. A qualidade do serviço prestado à população deve ser um estímulo para a substituição do transporte individual pelo transporte coletivo, permitindo assim uma democratização do espaço público.
O valor da tarifa também precisa ser pensado como um instrumento para incluir mais usuários aos sistemas de transportes. A experiência do bilhete único, criado na gestão da ex-prefeita e atual candidata Marta Suplicy na capital de São Paulo, é um dos mais bem sucedidos exemplos de como se pode e se deve democratizar o acesso ao transporte.

Mesmo com a limitação imposta pela ainda pequena capacidade do metrô e dos trens metropolitanos, a extensão desse bilhete para esse meio de transporte possibilitou a inclusão de milhões de pessoas que não podiam pagar mais de uma ou duas passagens por dia.

Quando falamos da prioridade ao transporte público é necessário raciocinarmos pensando nos interesses da maioria. Portanto, a utilização de mecanismos que limitem o uso do transporte individual em determinadas situações ou locais deve ser pensada quando trabalhamos o planejamento da cidade no que diz respeito à mobilidade.

Nas grandes metrópoles é necessário estruturar o sistema de transporte de uma rede que integre sistemas de alta capacidade como trens e metrôs com outros modais com menor capacidade – como ônibus e veículos leves sobre trilhos (VLT’s) –, podendo, inclusive, ser capilarizados nas periferias com modais de menor capacidade – como micro-ônibus e vans.

No entanto, não podemos abrir-mão do controle estatal em todos os sistemas de transportes. Além de ser uma exigência constitucional, esse controle é necessário para evitar que os interesses de grupos privados prevaleçam sobre os interesses da população e do poder público. Um sistema de transporte bem articulado e sob controle rigoroso do poder público, pode iniciar um processo de reversão do atual e esgotado modelo de ausência de mobilidade nas cidades.

Reverter essa lógica e municiar os municípios para realmente fiscalizarem e terem empresas ou órgãos municipais que tenham instrumentos para garantir o controle do poder público pode ser mais um importante recurso. Por ser estratégico para o país, o setor de transporte deve merecer atenção especial das forças comprometidas com um projeto para o futuro da nação.

Wagner Fajardo Pereira é presidente da Federação Nacional dos Metroviários, Secretário-Geral da União Internacional de Sindicatos em Transporte e membro da direção estadual do PCdoB de São Paulo

Osvaldo Bertolino é jornalista e editor do portal da CTB

EDIÇÃO 97, AGO/SET, 2008, PÁGINAS 58, 59, 60, 61