Poesia em quietude
Belo é o que belo nos parece. Não há beleza em si – e sim no olhar que assim o vê, já nos falava o gênio de Shakespeare. Quando o olhar mar-avilhado é tocado pelo belo, ao refletir o fulgor do estético, faz que ele exista – ainda que somente para si mesmo, na hora fugaz do maravilhar-se. No mais, é que falou Rumi, poeta da Pérsia antiga, lá pelo Século 13. Quando entramos em êxtase, "caímos no lugar onde tudo é música".
Na música das esferas, ou no chão de Gaia, a Mãe Terra, dando rima rica ou pobre, tudo é rimado no universo. Todas as vidas são como notas da música universal – sendo escritas em prosa, gesto, fala ou verso. “Vida é fazer/todo sonho brilhar/”. (João Bosco-Aldir Blanc). Ver é olhar o comum antigo como em um ver primeiro. Assim o olhar atento e agudo vê novos segredos do que parece ser vazio e seco. R. Tagore, o poeta-místico, tinha um olhar mar-avilhado para tudo o que via, novo ou antigo. Sabendo que o numinoso é eternamente novo, mas oculto ao ver do vulgo.
A poetisa e psicóloga clínica Adelaide Petters Lessa, em artigo intitulado Poesia e quietude, em seu livro Vida e morte:reverso e re-verso: "Unicamente a suprema experiência ontológica traz a percepção de uma só realidade dentro de tudo, uma só: a origem de toda beleza e alegria. Em quietude, ultrasereno, Wang Wei (701-761) procura transmitir sua vivência simultãnea de silêncio e sonoridade: "Em quiescência, ouço a queda das flores de canela/Quando a noite desce, as montanhas primaveris silenciam/Subitamente a lua aparece entre as nuvens/e desperta os filhotes das aves./São deles os pios e chilreios ao longo do rio montanhoso".
… Li Po (701-762) também manifestou a alegria indizível de traduzir o mundo natural: "Vocês me perguntam o que vejo nestas montanhas azuis/Sorrio, mas não respondo/Oh, a minha mente não quer o debate./Flores de pessegueiro e regatos fluentes passam sem deixar vestigio/Que diferença do mundo discursivo!".
Há uma poesia da quietude e do silêncio, que está nas coisas e seres do mundo. Só a percebem as almas capazes de quiescência, contemplativas e serenas, com percebimento dos mundos invisíveis e mutantes, que em tudo cantam e dançam. Na definição do sábio chinês Lao Tse, fundador do Taoísmo: “Tudo é indistinto e inefável, e ainda assim contém, latentes, formas e objetos, enquanto as essências nele se encontram profundas e invisíveis. Embora inexprimível, Tão manifesta-se em criatividade.
A mais feliz experiência artística acontece quando não há mais divisões, oposições, contradições, enfatiza Adelaide Petters, que realizou a tradução do inglês para a primeira edição brasileira do livro Autobiografia de um iogue: Tal experiência do inefável “realiza-se em paz exterior e interior, simultâneas, interfundidas. Em nível de consciência elevada, a experiência da iluminação consiste em venturosa fusão entre poeta e universo, cuja alegria jorra espontânea”.
“Nenhuma mente que se abra para uma nova idéia voltará ao tamanho original”. (Albert Einstein). Assim também pode-se dizer: nenhuma mente que se abra para as vastidões além de seus limites viverá na antiga limitação. O que de mais vasto e inefável ela tenha acessado a tornará mais rica e mais sábia. E, certamente, mais serena, não mais agitadas pelas inquietações da ansiedade, pois saberá, por experiência própria, que não há evolução gradual na compreensão da Realidade. Ou a percebemos em um átimo, em sintonia de sincronicidade, ou nos escapa, insondável enigma de mistério que chamamos de numinoso – o que ilumina permanecendo oculto, como arquétipo ou como símbolo.
Não há meia lucidez por meio da qual a lucidez total possa ser alcançada. A realidade, a integridade, acham-se em todas as coisas. Não se pode progredir na direção de uma coisa que está presente, no eterno Agora em que a vida se move. Quando realizarmos uma tal integridade, veremos que ela não tem futuro nem passado. Há somente uma forma de não cair no desespero e do absurdo. Não se identificar com eles. Combatê-lo estas forças da sombra é reconhecer sua realidade e ampliar seu poder. Gandhi não combateu a violência, praticou a não violência. E suas ações inativas tiveram maior força política quando fundadas na sabedoria do Wu-Wei (fazer não-fazendo), agir pela inação.
O caminho que se alcança utilizando um método antigo, ou em cueiros, vem com odor de naftalina. Vem envolto em ataduras de múmia, e fede como féretro passado da hora de ser enterrado, assim descendo aos infernos do Hades. Só o novo ilumina as brumas do passado, e desvela sua ir-realidade. Pelos caminhos do conhecido não podemos acessar o desconhecido.
Do conhecido só o conhecido pode sair. Pintar de novo um muro antigo não o renova em si. Só caem neste engano comum os cegos opcionais, que permanecem os mesmos, mesmo vivendo a botar botox na alma desidratada, ou fazendo lipo-aspirações radicais em suas idéias obesas e mofadas. Na vida temos duas escolhas: viver em celebração de constante alegria, ou existir afundado em tristezas, vendo os dias como tumbas.
Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.