Mal cai o inflamado agosto, vai-se arrastando no planalto fervido setembro. Deixou o mês aziago seu tropel de ventos, seu parir de redemoinhos, o ar de estufa sobre a mó vivente. Aqui, entre retalhos de floresta esquartejada, num alto e anoso angico, agoura uma acauã para os céus empoeirados de Goiânia. Com sua voz de litanias e incelenças dá à tarde um tom de aflorada infância. Canta seu verso de prístina memória, que aos ouvidos dos avós soava como badaladas de réquiem. “Vai à cova!… Vai à cova!… Vai à cova!” Seu responsório não invoca mais as mortes humanas, que disto se encarrega o trânsito, as balas, as jovens e anciãs enfermidades. Sem necessidade de ajuda os desalentados viventes vão se deixando levar sem resistência. Mas a acauã, no entardecer, não desata inutilmente sua voz de quase invisível ventre, de fugaz instrumento de penas. Recorda um tempo pueril de matas, campinas, rios e córregos. Por isso, sua voz não acena tumular ao crepúsculo. Desfia na ante-noite um vaticínio de ainda podermos conviver com a poesia da vida, porque assoma como deslembrado trovão vegetal um cio que se levanta desde as raízes. E por momentos, nos detemos à cata dos ermos encolhidos. Perseguimos no desenrolado pergaminho da tarde o sopro amoroso do vento geral. Que antes do hissope primaveril das chuvas vai espalhando sementes, eriçando brotos, acariciando as floradas. Os pequizeiros, os cajueiros, as mangabeiras. Nem o metálico zumbir da urbe incandescente e feérica, nem a distração dos homens coalhados de esquecimentos podem anular o canto ave em sua atalaia de sobrevivência. Captura, ainda que por retalhos ou relâmpagos de tempo, a memória da extinta floresta, os ecos dos ermos e uma remanescente infância. Abstraídos de nossas certezas breves, da aprisionada alma de concreto, asfalto e ganância, colhemos o súbito arrepio dos antigos presságios. Que busca a acuada acauã no onomatopaico canto: “Vai à cova!… Vai à cova!… Vai à cova!..”? Penso comigo, que em sua interferência lírica, canta para despertar os homens, ou para acordar os meninos asfixiados pela pressa, os compromissos e as gravatas. Semeia no bochorno da tarde evocação de afetos, memento de que ainda gozamos mistérios. Retorna a infância que pode resgatar o mundo. Um infantil temor agasalhável em cobertores e zelos maternais. Sozinha a acauã repete seu alarido. Os poetas compreendem sua linguagem, porque também cantam sozinhos. Porque também inventam mistérios. Porque, acima de tudo, obedecem às estações, perscrutam vozes que se armam no silêncio, e crêem nas noites e nas alvoradas. Vão ao lado dos homens com suas liras rotas, suas amadas pálidas cantando para despertar as manhãs, a lembrança das amadas ceifadas pelo olvido e a morte. Poetas acauãs vão repetindo na surdez dos homens encolhidos um sussurrar de alívio para as dores da desesperança, um entoar de cantos para exorcizar a morte e cobrir de alvíssaras o flamejar da vida que, afoita, nos mira na esquina da próxima manhã. A bênção, acauã.
Quando canta a Acauã
Mal cai o inflamado agosto, vai-se arrastando no planalto fervido setembro. Deixou o mês aziago seu tropel de ventos, seu parir de redemoinhos, o ar de estufa sobre a mó vivente. Aqui, entre retalhos de floresta esquartejada, num alto e anoso angico, agoura uma acauã para os céus empoeirados de Goiânia. Com sua voz […]
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