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    Comunicação

    Otelo, o Mouro de Veneza

    (…) Otelo. Digníssimos, e muito Poderosos, Nobres Senhores e meus bons Patronos: que a êste ancião raptei a filha, é certo; que a tomei por espôsa, é também certo. Tôda a larga extensão da minha culpa daí não passa. Em meu falar sou rude, inábil no versar a linguagem da paz. Desde os meus sete […]

    POR: William Shakespeare

    7 min de leitura

    (…)
    Otelo.
    Digníssimos, e muito Poderosos,
    Nobres Senhores e meus bons Patronos:
    que a êste ancião raptei a filha, é certo;
    que a tomei por espôsa, é também certo.
    Tôda a larga extensão da minha culpa
    daí não passa. Em meu falar sou rude,
    inábil no versar a linguagem da paz.
    Desde os meus sete anos até hoje,
    (excetuadas apenas nove luas)
    quando o próprio vigor em si sentiram,
    êstes meus braços outra ocupação
    nunca tiveram, a não ser aquela
    das tendas de campanha. E dêste vasto mundo
    bem pouco ou nada sei dizer, senão
    das suas sedições, feitos de guerra e de armas.
    Como hei de, pois, fazer valer a minha causa,
    se me vejo forçado a produzir eu próprio
    minha própria defesa? Todavia,
    com a vossa generosa tolerância
    e permissão, muito singelamente
    agora vos darei conta fiel
    de como o nosso amor nasceu; que filtros,
    conjurações, feitiços e magias,
    – pois que de tanto aqui sou acusado –
    empreguei para o fim de conquistar-lhe a filha.

    Bragâncio.
    Uma menina que foi sempre meiga,
    tão sossegada e tímida, a tal ponto
    que chegava a corar das próprias emoções!
    Com tal feitio, educação, idade,
    pudor, estirpe – que mais diga, enfim? –
    deixar-se apaixonar por alguém que, antes disso,
    ela não fitaria sem horror!
    Só quem está fora do seu juízo
    pode dizer que uma criatura assim
    podia errar assim, contrariando
    as leis da natureza! É mister neste caso
    buscar a explicação do que ocorreu
    nos ardis dos bruxedos infernais.
    Por isso afirmo uma vez mais ainda
    que a dominou lançando-lhe no sangue
    algum filtro ou poção enfeitiçada.

    Doge.
    Afirmar não é o mesmo que provar.
    Forçoso é apresentar provas mais consistentes
    que êsses indícios e suposições
    com que o acusais.

    1º Senador.
    Responde, Otelo. Vamos:
    foi por meios violentos ou indiretos
    que, a jovem dominando, o seu amor forçaste,
    ou tu a conquistaste à fôrça de ternura,
    lealmente, com essas súplicas e instâncias
    que um coração dirige a um outro coração?

    Otelo.
    Rogo-vos que a mandeis chamar ao Sagitário
    e que a deixeis falar diante do pai.
    Se das suas palavras concluirdes
    que o meu procedimento é condenável,
    que, além de eu ser deposto do alto cargo
    em que a vossa confiança me investiu,
    seja a vossa sentença a minha morte.

    Doge.
    Tragam aqui Desdêmona.

    Otelo.
    Tu, Alferes,
    acompanha-os. Tu sabes o lugar.

    (Saem Iago e Oficiais)

    E, enquanto ela não chega, com essa mesma
    sinceridade com que a Deus confesso
    minhas faltas, aqui vos direi de que forma
    eu conquistei o amor da doce criatura
    e ela ganhou o meu.

    Doge.
    Podes falar, Otelo.

    Otelo.
    O seu pai me estimava, e, com freqüência,
    me convidava a ir visitá-lo em casa
    e, ali, tôdas as vêzes, indagava
    da minha vida, ano por ano: os cercos,
    as batalhas e azares da fortuna
    por que eu tinha passado.
    Eu lhe narrava tudo, desde a infância
    até o próprio instante da conversa
    em que êle me pedia a narrativa.
    E assim o ia entretendo com os infaustos
    e emocionantes lances e acidentes
    de terra e mar. Contava-lhe de como,
    de uma feita, escapara por um triz
    de achar a morte certa numa brecha,
    e de outra em que, caindo prisioneiro
    de insolente inimigo, fui vendido
    como escravo e em seguida resgatado.
    Seguiam-se aventuras de viagens…
    A descrição de imensidões desertas,
    de antros, escarpas ásperas, rochedos
    e altas montanhas que iam dar no céu…
    Assim dizia e tudo era verdade.
    Contava-lhe também dos Canibais,
    selvagens que se comem uns aos outros,
    Antropófagos, homens de cabeças
    que ficavam abaixo dos seus ombros.
    Tudo isso eu relatava e, interessada,
    Desdêmona me ouvia atentamente.
    Para atender a ocupações caseiras,
    às vêzes se afastava por instantes.
    Mas logo as despachava, e, àvidamente,
    voltava a devorar minhas palavras.
    Notando-lhe isso, um dia, num momento
    oportuno, achei meios de levá-la
    a me pedir, de todo o coração,
    que lhe contasse, inteira, a minha história,
    de que ela ouvira apenas alguns trechos,
    sem muito seguimento. Eu a atendi.
    E vi que dos seus olhos arrancava
    muitas e muitas lágrimas sentidas,
    quando lhe referia amargos transes
    da minha mocidade… Ao acabar
    a minha narrativa, emocionada,
    me compensou com um mundo de suspiros…
    E jurou-me que achava tudo aquilo
    “maravilhoso, muito comovente”
    e “imensamente digno de pena”.
    Disse-me que antes não o houvesse ouvido,
    embora lamentasse ainda mais
    não ter nascido homem, para ser
    igual ao que tais feitos praticara.
    Agredeceu-me, então. E, finalmente,
    declarou que se, um dia, por acaso,
    algum amigo meu a pretendesse,
    eu não teria mais do que ensiná-lo
    a repetir-lhe a minha história tôda,
    para que êle ganhasse o seu amor.
    Tal confissão ouvindo, eu lhe falei…
    Ela me amou pelos perigos que corri
    e eu a amei pela pena que ela teve.
    Se houve feitiçaria, foi só essa…
    Ei-la que chega. Que ela mesma fale.

    Doge.
    Brabâncio, eu juraria que essa história
    conquistaria a minha própria filha.
    Já consumado o fato, o que convém
    é encará-lo da melhor maneira.
    Mais vale combater com o tôco de uma espada,
    que com a mão desarmada.

    Brabâncio.
    Escutêmo-la, peço-vos.
    Que confirme ter parte em tais amôres
    e sôbre mim desabe a maldição do céu
    se eu inculpar êste homem. Vamos, filha.
    Dize: nesta assembléia augusta, a quem mais deves
    obediência e amor, mais do que a tudo e a todos?

    Desdêmona.
    Meu nobre pai, aqui defronto dois deveres.
    A vós vos devo vida e educação.
    Ambas me fazem ver que sois aquêle
    a quem devo respeito para sempre.
    Sempre a vós, como filha, obedeci.
    Mas vejo aqui também o meu marido.
    E a mesma submissão perante vós
    a que se sujeitou a minha mãe outrora
    e que ela sobrepôs à que a seu pai devia,
    é a que ora, com razão, julgo dever
    ao Mouro, meu espôso e meu senhor.
    (…)

     

    Otelo, o Mouro de Veneza
    William Shakespeare
    Tradução de Onestaldo de Pennafort
    Editora Civilização Brasileira – edição 1968