Os caminhos da Revolução Chinesa
A incapacidade da dinastia Manchú de garantir a integridade territorial da China, levou a bandeira nacional a se articular com a republicana e democrática e, em 1911, à proclamação da República pelo líder nacionalista Sun Yat-sen, que foi seu primeiro presidente, à frente do Guomindang (Partido Nacionalista da China; na forma antiga transcrito como Kuomitang), um partido de frente-única nacionalista.
Após a I Guerra Mundial as potências imperialistas tentaram reforçar as humilhações impostas aos chineses. Os territórios roubados pelos alemães passaram para o Japão, como recompensa por ter apoiado a aliança entre Inglaterra, França e Estados Unidos. Mas já em 4 de maio de 1919
realizaram-se vigorosos movimentos de protesto, contra esta imposição.
Já a Rússia soviética, por sua vez, abriu mão de todas suas “conquistas” czaristas na China, e enviou assessores para auxiliar na luta contra a reação interna e as potências imperialistas.
O Partido Comunista da China foi fundado em julho de 1921 e, dois anos depois, por influência da Internacional Comunista, a revolução chinesa foi definida como nacional-democrática, sendo aprovada uma aliança estratégica dos comunistas com o Guomindang. Nacionalistas e comunistas reconheciam que “a China ainda não estava madura para o socialismo, mas para a realização de sua unidade e independência nacionais”.
Nestes primeiros anos, Mao Tse-tung dirigia o Partido na província de Hunan, situação que lhe permitiu entender melhor o papel das massas camponesas na revolução. Por isso, passou a ser visto com desconfiança pela direção partidária, e pela própria Internacional Comunista, que tendiam a colocar os camponeses em segundo plano.
Com a morte de Sun Yat-sen em 1925, Chiang Kai-shek assumiu a direção do Guomindang. Teve início uma fase de direitização da organização. Apesar disso, o novo dirigente foi nomeado “presidente de honra” da Internacional, numa tentativa de neutralizá-lo e trazê-lo para o lado soviético. A decisão, entretanto, não conseguiu arrefecer o anti-comunismo da direção burguesa do Guomindang.
Graças às sublevações populares, o exército nacionalista de Chiang conseguiu grandes vitórias. Temendo que a revolta popular levasse a uma revolução, a burguesia compradora e os latifundiários uniram-se sob a direção de Chiang, que não os decepcionou. Quando entrou triunfante em Xangai, em 1927, suas primeiras medidas foram desarmar as milícias operárias e iniciar uma dura repressão contra os comunistas. Milhares de pessoas foram assassinadas.
Em resposta, os comunistas organizaram um levante armado em Cantão (Guangzhou, na transcrição atual). Em várias cidades ocorreram insurreições operárias precipitadas, sob inspiração da Internacional Comunista. Todas foram derrotadas. A estrutura urbana do PC chinês desmantelou-se, e os comunistas foram obrigados a se retirar para o campo.
Devemos dizer que a opção pela guerra popular de base camponesa, em certo sentido, foi fruto da tática esquerdista de insurreições urbanas. Esquerdista pois não havia correlação de forças para que tais movimentos pudessem ser vitoriosos naquele momento. A derrota enfraqueceu a classe operária, que vinha crescendo em sua consciência e combatividade.
No interior do país os comunistas criaram áreas libertadas. Em novembro de 1931 elas foram unificadas e proclamou-se a República Popular da China, cujo primeiro ato foi declarar guerra ao Japão, que havia invadido a Manchúria, onde instalou um governo fantoche.
Chiang, por sua vez, colocava em segundo plano a luta contra os invasores japoneses, concentrando suas ações no combate aos comunistas, contra os quais lançou um gigantesco exército.
Naquela época, os conflitos de Mao com a direção do partido cresceram e, em 1934, ele chegou a ser afastado do governo soviético. Os dirigentes chineses ligados a Moscou, que haviam sido os principais idealizadores dos levantes urbanos da década de 1920, defendiam o confronto direto entre exércitos numa guerra convencional.
A derrota dessas estratégias fortaleceu Mao que, no ano seguinte, assumiu o posto de principal dirigente do Partido, e suas teses sobre o papel revolucionário dos camponeses e da guerra popular prolongada começavam a ser amplamente aceitas.
Não tendo como resistir a uma força militar tão superior, os comunistas organizaram uma retirada estratégica. Era o início da Grande Marcha, que durou de outubro de 1934 a outubro de 1935, percorrendo dez mil quilômetros pelo interior do país. A marcha partiu das províncias de Hunan e Kiangsi com cerca de 100 mil homens e chegou ao final, em Yenan, com apenas 10 mil.
Novamente, Mao propôs a criação de uma frente única para libertar a China, idéia que teve grande receptividade entre o povo. Enquanto isso, os problemas no lado inimigo cresciam e, em dezembro de 1936, Chiang chegou a ser preso pelos seus subordinados, que não aceitavam mais sua inação diante dos invasores japoneses.
Enquanto ainda se discutia a formação da Frente Única, o Japão avançou sobre novos territórios chineses. A II Guerra Mundial e o ingresso da URSS, ocorrido em 1941, fizeram com que o “problema chinês” adquirisse maior importância. Para lutar contra o Japão, aliado de Hitler e de Mussolini, os comunistas formaram o 4ª e 8º Exércitos e, desta vez, não foi exigida a fusão e subordinação das tropas do PCCh ao Guomindang.
Os comunistas realizaram importantes reformas nas regiões libertadas, entre elas a reforma agrária, conquistando a adesão de milhares de camponeses. Embora eles tenham sustentado o maior peso da resistência contra o Japão, os aliados – com os EUA à frente – continuaram priorizando o apoio militar ao Guomindang.
Em 1946 os Estados Unidos – e os soviéticos – propuseram a formação de um governo chinês de União Nacional, para a reconstrução do país, mas sob condições inaceitáveis: as milícias populares deveriam se desarmar e os exércitos sob o comando comunista deviam se subordinar a Chiang.
Traiçoeiramente, o Guomindang realizou uma grande ofensiva militar contra os comunistas que, para resistir, formaram o Exército Popular de Libertação (EPL). E, no rastro do avanço desse exército, foi feita uma profunda revolução agrária. Assentado nos camponeses pobres, o EPL se tornou uma força invencível, que foi ocupando uma atrás da outra as províncias e cidades do país, até que, em 1º de outubro de 1949, Mao proclamou a República Popular da China.
A camarilha de Chiang Kai-shek fugiu ante este avanço, refugiando-se na ilha de Taiwan onde, protegida por uma frota norte-americana, continuou sendo reconhecida pelas potências imperialistas como o autêntico governo chinês.
A necessidade de enfrentar a contra-revolução interna e o cerco imposto pelas potências ocidentais levaram Mao a aumentar os laços econômicos e políticos com a URSS e a radicalizar o processo transformador. Uma revolução que se pretendia nacional-democrática se transformou rapidamente numa revolução democrático-popular rumo ao socialismo.
Em dezembro de 1952 foi estabelecido o primeiro plano qüinqüenal. A prioridade, a exemplo soviético, era a indústria pesada. A agricultura foi coletivizada. Escrevendo sobre esta experiência inicial Mao afirmou: “Naqueles dias a situação era tal que, uma vez que não tínhamos experiência de construção econômica, não tínhamos alternativas a não ser copiar a União Soviética (…) Naquela época foi absolutamente necessário agir assim, mas isso também foi uma fraqueza”.
Para acelerar ainda mais este processo, em 1957 foi lançado o “Grande Salto à Frente”, que fortaleceu as comunas populares no campo, nas quais passou a ser realizada parte da produção industrial. Também foi realizada uma mobilização de estudantes e funcionários para o trabalho no campo, para aumentar a produção agrícola. Foi um esforço “voluntarista” com resultados decepcionantes e, a partir de 1960, esta política começou a ser repensada e alterada.
A crise econômica chinesa coincidiu com a divisão do movimento comunista internacional, precipitada pela guinada reformista adotada pelo Partido Comunista da União Soviética após seu XX Congresso, em 1956. Em 1960, a URSS retirou seus técnicos da China, causando um grande prejuízo a uma economia já debilitada. Esta foi a maneira encontrada pelos soviéticos para tentar subordinar o PCCh às novas diretivas políticas emanadas de Moscou: a coexistência e a competição pacífica com o imperialismo. O tiro saiu pela culatra. Reforçou-se o nacionalismo chinês e sua animosidade contra os russos.
Paralelamente, no interior do PCCh começaram a ocorrer disputas entre vários projetos, caracterizadas como um conflito entre esquerda, representada por Mao, e a direita, liderada por Liu Shao-chi. No confronto – apoiado no Exército Popular de Libertação – Mao buscou mobilizar as massas urbanas, especialmente os estudantes. Era o início da chamada Grande Revolução Cultural Proletária, lançada em 1967. Surgiram os guardas vermelhos que, por sua vez, se dividiam em tendências opostas, embora todas se reivindicassem fiéis seguidoras do “pensamento de Mao Tse-Tung”.
Em pouco tempo o movimento saiu do controle. Liu Shao-chi foi humilhado e depois preso. Deng Xiaoping foi afastado de seus cargos na direção e depois colocado numa espécie de exílio em seu próprio país. A estrutura do Partido quase se dissolveu.
Devemos dizer que os erros cometidos nestes anos não impediram a China de crescer, embora a níveis inferiores do que poderia ter sido. O país se industrializou e houve uma sensível melhora nas condições de vida do povo, especialmente quando comparado aos países capitalistas vizinhos.
Mao Tse-tung, fortalecido, buscou colocar um fim aos abusos cometidos na Revolução Cultural. Pouco a pouco, aquele movimento recuou, sendo restabelecida a proeminência do Partido Comunista, agora sob incontestável direção maoista.
Derrotada a chamada ala direita do Partido, travou-se uma luta contra os esquerdistas, que se encontravam no Grupo Central da Revolução Cultural. Nesta nova fase Deng foi reabilitado, tornando-se vice-presidente. Após a morte de Chou En-lai, em janeiro de 1976, Deng voltou a ser rebaixado, em uma última e brevíssima campanha anti-direitista.
Alguns meses depois, em setembro, Mao também morreu. Sem os dois principais dirigentes, começou uma disputa em torno dos programas de construção do socialismo. Hua Guofeng, considerado um representante do centro, assumiu momentaneamente a direção enquanto Deng, reabilitado, passou ser a principal figura dentro do Partido.
Abriu-se uma luta sem quartel contra os líderes da extrema-esquerda, que passaram a ser denominados “bando dos quatro”. Realizam-se grandes julgamentos nos quais os seus principais expoentes foram condenados a longos períodos de prisão. Criaram-se assim as condições para o lançamento, no final de 1978, da bem sucedida política de “reforma e abertura”; sob a direção de Deng, a China entrou numa nova fase de maior estabilidade política e de crescimento econômico, tendência que não foi interrompida nem mesmo pelos conflitos de inspiração pró-ocidental ocorridos em 1989 na Praça da Paz Celestial, em Pequim.
Augusto Buonicore é historiador e membro da Comissão Editorial de Princípios
EDIÇÃO 98, OUT/NOV, 2008, PÁGINAS 26, 27, 28