Em três décadas, os vietnamitas venceram três potências imperiais: expulsou o Japão, que ocupou o país durante a Segunda Guerra Mundial; derrotou a França, que tentou recolonizar o país depois de 1945; e, finalmente, venceu os EUA e sua tentativa de manter o país dividido e o sul comandado por uma ditadura militar fiel ao governo de Washington.

Entre o final da Segunda Guerra Mundial e a fuga estadunidense, em 30 de abril de 1975, foram três décadas de guerra, sem contar a resistência anterior contra a ocupação francesa, iniciada em 1884, que impôs ao país um regime colonial “marcado pelo racismo, pela brutalidade, por uma política econômica, social e educacional desesperadamente retrógrada, e pela exploração mais cruel dos trabalhadores e camponeses”, diz o estudioso Richard Morrock.

A resistência contra a ocupação estrangeira se manifestou logo no início do século XX, como registrou o Informe Político ao 9º Congresso do Partido Comunista do Vietnã: “Desde o final do século XIX às primeiras décadas do século XX nosso povo nunca deixou de se insurgir contra o colonialismo”. Em 1905 um grupo de estudantes e intelectuais organizou o movimento anticolonialista, que promoveu as primeiras lutas antiimperialistas. O movimento cresceu e, na década de 1920, surgiram importantes organizações, como a Liga Revolucionária da Juventude Vietnamita (1925), fundada em 1925 por Ho Chi Minh, e o Partido Nacional do Vietnã (Viet-Nam Quôc Dân Dong, VNQDD, de 1927), indicando a força que o nacionalismo revolucionário adquiria. Em fevereiro de 1930, o VNQDD liderou uma insurreição contra os franceses que, embora derrotada (e seus dirigentes foram presos, assassinados ou exilados), foi um marco na luta pela independência nacional.

No Vietnã, a luta pela independência nacional fez parte, desde cedo, do programa socialista. Em 1930, Ho Chi Minh fundou o Partido Comunista do Vietnã, com forte base entre os trabalhadores. Ele foi herdeiro da Liga Revolucionária da Juventude e, em 1930 e 1931, dirigiu greves e protestos, e grandes manifestações envolvendo milhares de camponeses e trabalhadores rurais. Em alguns lugares, como na província de Nghe-na, foram criados sovietes e tribunais populares. A repressão francesa foi brutal; em 1932, as prisões e os campos de trabalho tinham 32 mil prisioneiros. “Os vietnamitas têm inúmeros mártires desta época”, escreveu o filósofo inglês Bertrand Russel, .

Ho Chi Minh já era um líder nacional reconhecido. Ele fez parte do grupo de patriotas vietnamitas que, na Conferência de Versalhes que reorganizou o mundo depois da Primeira Guerra Mundial, teve a ousadia de exigir dos aliados (e à França, em particular), a autonomia dos povos da Indochina. Foram rechaçados, mas esta atitude teve grande repercussão no Vietnã, fazendo a fama daquele que, nas décadas seguintes, seria o principal dirigente da resistência nacional.

Com a Segunda Guerra Mundial, o quadro começou a mudar aceleradamente. A França, ocupada pelos nazistas em julho 1940, manteve sua autonomia apenas sobre o sul de seu território nacional, sob o governo pró-nazista do marechal Philippe Pétain.

O Japão, aliado de Adolf Hitler, já havia ocupado a Coréia e, depois, a Manchúria, na China. Em 1941, com a queda da França, ocupou também a Indochina, mas manteve a burocracia colonial francesa, encarada como “aliada”.

Para enfrentar a ocupação do país pelo Japão, a liderança comunista, com Ho Chi Minh, Vo Nguyen Giap e Pham Van Dong à frente, formou em maio de 1941 uma ampla frente patriótica, a Liga da Independência Vietnamita, (Viet-Nam Doc Lap Dong Minh, conhecido como Viet Minh). Ela uniu a resistência popular e dirigiu a luta contra a ocupação japonesa usando, principalmente, a luta guerrilheira. Quando o fim da guerra se aproximava os japoneses, em 9 de março de 1945, afastaram os franceses e assumiram o controle direto da Indochina. Naquele ano a presença do Viet Minh estava consolidada em grandes áreas, principalmente no norte. Assim, no fim da Segunda Guerra, “eles estavam em posição de exigir de fato o poder de Estado”, diz Bertrand Russel. Em 19 de agosto depuseram Bao Dai, o imperador títere dos franceses e japoneses, e formaram o governo nacional, em Hanói, a capital do norte; em 2 de setembro, Ho Chi Minh proclamou a independência.

Não era o final que os colonialistas franceses previram, e eles logo iniciaram ações militares contra a independência; no final de 1945, já tinham 50 mil soldados no país. Contra a resistência vietnamita, que logo se manifestou, os “ massacres se tornaram lugar-comum”, escreveu Bertrand Russel. E, em abril de 1949, os franceses reconduziram Bao Dai ao trono; desde então, a guerra colonialista teve a máscara de defesa do governo “legítimo” do imperador.

Foi uma guerra longa. Em 1953, o Viet Minh controlava 3/4 do norte e 1/3 do sul do país. Aquele foi o ano decisivo, quando o governo de Hanói preparou sua maior ofensiva. No início de 1954, o número de mortos franceses chegava a 92 mil, e o de feridos, a 114 mil. A batalha final ocorreu em Dien Bien Phu, uma importante posição estratégica no norte do país. O cerco, comandado por Vo Nguyen Giap, começou em novembro de 1953. A guarnição francesa caiu em maio de 1954, numa derrota memorável que colocou a potência colonial de joelhos.

Naquele ano, o envolvimento dos EUA na guerra já era grande. Segundo o The New York Times (4-6-1954), citado por Bertrand Russel, Washington já era responsável por 78% dos custos da guerra. E, em 1954, durante o cerco a Dien Bien Phu, o secretário de Estado do governo dos EUA, John Forster Dulles, ofereceu a seu colega francês, o chanceler Georges Bidault, armas nucleares para serem usadas naquela batalha.

A vitória em Dien Bien Phu marcou o início de uma nova etapa na guerra. O armistício com a França, assinado em Genebra, Suíça, em julho de 1954, previa a divisão temporária do país, dando o controle do norte ao Viet Minh, governado por Ho Chi Minh e seus companheiros. O sul, abaixo do paralelo 17, seria governado por Bao Dai até a eleição que decidiria sobre a reunificação do país e a formação de um governo nacional, que o acordo de Genebra marcou para 1956.

O povo do Vietnã, entretanto, não aceitava a divisão e tudo indicava que, em 1956, elegeria seu herói nacional Ho Chi Minh para governar o país e dirigir sua reunificação. Antecipando-se à derrota, o primeiro-ministro nomeado por Bao Dai, o direitista Ngô Dinh Diem, deu um golpe. Ele convocou um plebiscito para outubro de 1955, que acabou com a monarquia e o elegeu presidente da República. Em seguida, Diem declarou o sul independente e cancelou a eleição marcada para 1956. O apoio de Washington foi imediato, justificado por uma declaração de 1954 do presidente dos EUA, o general Dwight David Eisenhower, e que lançou a chamada teoria do dominó: “Se você colocar uma série de peças de dominó em fila e empurrar a primeira, logo todas acabarão caindo, até a última… Se permitirmos que os comunistas conquistem o Vietnã corremos o risco de se provocar uma reação em cadeia e todo os estados da Ásia Oriental tornar-se-ão comunistas, um após o outro”.

Diem foi um títere feroz dos EUA, apoiado por “conselheiros” militares estadunidenses, cuja presença vinha crescendo. Para lutar contra a ditadura, comunistas e nacionalistas criaram, em dezembro de 1960, a Frente de Libertação Nacional (à qual os estadunidenses estenderam o apelido de viet cong), que iniciou a luta armada contra o governo sul-vietnamita. Tentando isolar os combatentes da FLN de sua base camponesa, o regime de Diem começou a esvaziar os povoados rurais suspeitos de colaborarem com a guerrilha, alojando a população em “povoados estratégicos” que eram verdadeiros campos de concentração. Estabeleceu-se o reinado do terror onde a polícia secreta logo chegou a centenas de milhares de agentes. “Seus processos eram incrivelmente cruéis”, diz Bertrand Russel.

Até 1963 o regime já havia assassinado 163 mil pessoas; outras 700 mil foram torturadas e mutiladas; havia 400 mil presos; 31 mil pessoas foram violentadas; três mil foram estripadas tendo o fígado arrancado enquanto ainda viviam; quatro mil foram queimadas vivas. E o auge da guerra ainda estava longe…

A escalada estadunidense na guerra foi exponencial. Suas tropas no país passaram de 900 em 1960 para 11 mil em 1962, 50 mil em 1963, 180 mil em 1965, até o auge de 540 mil em 1969. Mas a determinação da resistência vietnamita ficou clara em 1968. Em janeiro daquele ano, a ofensiva do Tet atacou 36 cidades e chegou a ocupar a embaixada dos EUA em Saigon (atual Ho Chi Minh). O ataque arrasador foi contido, mas a vitória política foi inegável, demonstrando ao mundo a disposição de expulsar os invasores e reunificar o país. O impacto sobre o governo dos EUA, e também sobre a opinião pública, foi forte: a guerra era cada vez mais impopular, e os políticos de Washington tiveram de admitir que seu fim estava longe, e que o melhor que alcançariam seria uma “saída honrosa” de um conflito em cujo horizonte estava o espectro da derrota da maior potência financeira e militar do planeta.

A crônica da guerra, a partir de então, foi um rosário crescente de barbáries cometidas pelas tropas de ocupação (como o massacre de My Lai, uma aldeia onde soldados dos EUA estupraram mulheres e mataram pelo menos 102 camponeses, denunciado em 1970). As tentativas diplomáticas de negociar uma paz que envolvia a busca da saída honrosa ansiada por Washington, as pretensões do governo sul-vietnamita, e a chantagem da militar dos EUA, cujos ataques (principalmente aéreos) cresciam nos intervalos dos períodos de negociação. Um exemplo foi o bombardeamento aéreo de Hanói e Haiphong, entre 18 e 30 de dezembro de 1972, considerado o mais devastador da história. Ao mesmo tempo, a ação dos aviões militares se generalizou pela península indochinesa, atingindo o Camboja e o Laos.

Paradoxalmente – e demonstrando, mais uma vez, que a guerra é um acontecimento político, e não tecnológico ou financeiro – essa inútil demonstração de força ocorria no período em que se acentuou o declínio da ocupação e do governo pró-EUA no sul. Em janeiro de 1973, o governo dos EUA decidiu vietnamizar a guerra e começar a retirada de suas tropas, supondo que, dando armas e dinheiro, poderia transferir as operações para o exército títere do sul. Não deu certo, e o fim se aproximava rapidamente. A ofensiva, guerrilheira e através de tropas regulares, dos vietnamitas cresceu em 1974, desarticulando as desmoralizadas forças militares do sul e, no final, seu próprio governo ilegítimo. Daí até a vitória final, em 30 de abril de 1975, foi um passo.

Aquela foi uma guerra sórdida. Matou 1,5 milhão de vietnamitas (do norte e do sul), e 3 milhões de feridos – quase 4% de mortos e 8% de feridos numa população de 39 milhões. O EUA tiveram cerca de 47 mil mortes, 313 mil feridos, e gastaram no mínimo 600 bilhões de dólares.

O Vietnã foi o país mais bombardeado nas guerras do século XX. Os aviões dos EUA jogaram sobre seu território 45 milhões de toneladas de bombas, mais do que caiu na Alemanha em toda a Segunda Guerra Mundial. A criminosa guerra química teve larga aplicação, com o uso desde bombas de napalm até desfolhantes químicos de vários tipos – o principal deles foi o desfolhante chamado agente laranja – despejados sobre florestas e também sobre plantações, envenenando a terra, rios e lagos.

Bertrand Russel citou o relato de um médico vietnamita que, na época, visitou várias aldeias que sofreram esses ataques. “Geralmente”, disse ele, “são empregados em forma de pó, ou lançados de forma líquida, sobre vastas extensões, por aeroplano”. Eles “envenenam a água, os alimentos, a vegetação, e toda vida animal e humana. O envenenamento da água e da vegetação amplia a ação das substâncias para áreas ainda maiores. Substâncias tóxicas são também misturadas ao arroz [e também ao açúcar – NR], que é a seguir vendido ou distribuído entre o povo. Encontrei isso nas províncias de Kon Tum e Gia Lai, em 1965”. Muitos vietnamitas morreram, entre grandes sofrimentos. “Examinei onze crianças que estavam seriamente doentes por terem nadado em um riacho que fora envenenado. Três delas ficaram cegas”.

O livro de Bertrand Russel, escrito no calor dos acontecimentos, é um relato de barbáries e heroísmo. E uma homenagem aos que lutavam. “O povo do Vietnã é heróico e sua luta é épica: é um comovente e permanente exemplo do inacreditável ânimo de que os homens são possuídos quando lutam por um ideal nobre. Saudemos o povo do Vietnã”, escreveu ele. Este mesmo ânimo está na base do esforço de reconstrução e desenvolvimento do país, que marca o período de paz iniciado depois da derrota dos três imperialismos.

José Carlos Ruy é jornalista e membro da comissão Editorial de Princípios e editor do jornal “A Classe Operária”

Referências

Hobsbawn, Eric. Era dos extremos – o breve século XX. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
Le Thanh Khoi. “Algumas características dos movimentos nacionais no Sudeste Asiártico”. In Santiago, Theo. Descolonização. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1977.
Morrock, Richard. “Revolução e intervenção no Vietname”. In Horowitz, David. Revolução e Repressão. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
Partido Comunista do Vietnã. IX Congrès National – documents. Hanoi, Editions Thé Giói, 2001.
Russel, Bertrand. Crimes de guerra no Vietnã. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.

EDIÇÃO 98, OUT/NOV, 2008, PÁGINAS 29, 30, 31, 32