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    Comunicação

    Menor abandonado

    Versos amargos para o Ano Internacional da Criança, 1979. De onde vens, criança? Que mensagem trazes de futuro? Por que tão cedo esse batismo impuro que mudou teu nome? Em que galpão, casebre, invasão, favela, ficou esquecida tua mãe?… E teu pai, em que selva escura se perdeu, perdendo o caminho do barraco humilde?… Criança […]

    POR: Cora Coralina

    3 min de leitura

    Versos amargos para o
    Ano Internacional da Criança, 1979.

    De onde vens, criança?
    Que mensagem trazes de futuro?
    Por que tão cedo esse batismo impuro
    que mudou teu nome?

    Em que galpão, casebre, invasão, favela,
    ficou esquecida tua mãe?…
    E teu pai, em que selva escura
    se perdeu, perdendo o caminho
    do barraco humilde?…

    Criança periférica rejeitada…
    Teu mundo é um submundo.
    Mão nenhuma te valeu na derrapada.

    Ao acaso das ruas – nosso encontro.
    És tão pequeno… e eu tenho medo.
    Medo de você crescer, ser homem.
    Medo da espada de teus olhos…
    Medo da tua rebeldia antecipada.
    Nego a esmola que me pedes.
    Culpa-me tua indigência inconsciente.
    Revolta-me tua infância desvalida.

    Quisera escrever versos de fogo,
    e sou mesquinha.
    Pudesse eu te ajudar, criança-estigma.
    Defender tua causa, cortar tua raiz
    chagada…

    És o lema sombrio de uma bandeira
    que levanto,
    pedindo para ti – Menor Abandonado,
    Escolas de Artesanato – Mater et Magistra
    que possam te salvar, deter a tua queda…

    Ninguém comigo na floresta escura…
    E o meu grito impotente se perde
    na acústica indiferente das cidades.

    Escolas de Artesanato para reduzir
    o gigantismo enfermo
    da criança enferma
    é o meu perdido S.O.S.

    Estou sozinha na floresta escura
    e o meu apelo se perdeu inútil
    na acústica insensível da cidade.
    És o infante de um terceiro mundo
    em lenta rotação para o encontro
    do futuro.
    Há um fosso de separação
    entre três mundos.
    E tu – Menor Abandonado,
    és a pedra, o entulho e o aterro
    desse fosso.

    Quisera a tempo te alcançar,
    mudar teu rumo.
    De novo te vestir a veste branca
    de um novo catecúmeno.
    És tanto e tantos teus irmãos
    na selva densa…

    E eu sozinha na cidade imensa!
    “Escolas de ofícios Mãe e Mestra”
    para tua legião.
    Mãe para o amor.
    Mestra para o ensino.

    Passa, criança… Segue o teu destino.
    Além é o teu encontro.
    Estarás sentado, curvado, taciturno.
    Sete “homens bons” te julgarão.
    Um juiz togado dirá textos de Lei
    que nunca entenderás.
    – Mais uma vez mudarás de nome.
    E dentro de uma casa muito grande
    e muito triste – serás um número.

    E continuará vertendo inexorável
    a fonte poluída de onde vens.

    Errante, cansado de vagar,
    dormirás como um rafeiro
    enrodilhado, vagabundo, clandestino
    na sombra das cidades
    que crescem sem parar.

    Há um fosso entre três mundos.
    E tu, Menor Abandonado,
    és o entulho, as rebarbas e o aterro
    desse fosso.

    Acorda, Criança,
    Hoje é o teu dia… Olha, vê como brilha lá longe,
    na manchete vibrante dos jornais,
    na consciência heróica dos juízes,
    no cartaz luminoso da cidade,
    o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA.

    Poemas dos becos de Goiás e estórias mais
    Cora Coralina
    Global Editora – 14ª edição, 1987