Ângela, calor sem endereço
Uma pessoa feliz seja talvez como Ângela Rô Rô – comeu o pão que o Diabo amassou, e ainda o chamou para tomar um vinho azinabrado – que até o Cujo só não enjeita pra não fazer desfeita. Angelatriz, que por sentir saudades de si mesma enquanto amava, teve a lucidez de escrever e cantar com sua voz doce-rouca: “Amo a vida/a cada segundo/pois pra viver/eu transformei meu mundo/”.
Em toda sua carreira, iniciada em Londres, onde na condição de migrante clandestina chegou a lavar privadas, sabia seria uma artista cult – ou seja, uma que todo mundo conhece e sabe, mas que não vende. Assim como cinema que ninguém vê é obra de arte. Fica no círculo alternativo dos que são bons demais, para cair no gosto da massa informe, sempre a ruminar a última eguinha pocotó que tenham soltado no pasto das conveniências do faturamento “artístico”.
É vero que marcas de amor sempre repercutiram em suas lembranças. Tanto assim que suas composições, sempre a falar de amor traído, ou não correspondido, são como memórias poéticas pessoais. Afinal, marcas de amor doem mais do que espora em carne de gente: lancetam lembranças de hora em hora. Dores de amar são como adagas, a produzir saudades do futuro. Já as cores falsas, essas doem mais fundo, pois que provém das funduras do mundo.
Sabe de amor quem tem certeza: no amar com loucura não adianta pedir ajuda aos nossos anjos. Talvez seja mais sensato implorar piedade aos nossos demônios. Sabe a Angelatriz que a verdadeira arte nasce da espontaneidade – ser racional demais transforma a emoção em gelo. E por amar demais, sabe também que paixões são lava e magma – quanto mais incendiadas, mais passionais. Quanto mais afetadas, mas falsas.
Entonces, como se não bastasse, como ela mesmo diz, viu-se em Londres, a lavar privadas, para manter-se viva. Mas sendo poucas as privadas, e muitos os migrantes clandestinos a querer lavá-las, havia uma certa reserva de mercado, tendo os ingleses desempregados como os mais ardentes peticionários: “Essa privada é minha! Eu vi primeiro!”. Pior é que para nossa Ângela cantante nem podia usar as privadas que lavava. Diante da urgência de ter de fazer pipi, tinha que ir longe. Para chegar ao alívio era um sacrifício.
Foi então que um anjo bêbado sussurrou ao seu ouvido esquerdo: “Menina, o que você sabe fazer, além disto?”. “Eu sei fazer show!, respondeu a menina, que de fato, já os fazia, em toda a Londres notívaga. “Então vá, queridinha! Vai ser Angelatriz, bêbada de vida – mesmo sendo gauche, não seja por si mesmo esquecida”. Então ela foi, com seu sorriso largo, para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde conhecia o mundo inteiro. Mas, descumprindo o sussurro do anjo bêbado, foi pedir emprego de telefonista – servia servir cafezinho em escritório qualquer.
Ouvindo outra vez o estalo espontâneo (não foi o de Vieira, mas de seu anjo) foi fazer shows no Rio de Janeiro, com uma patota da pesada, sob a batuta de Nelson Mota – e só a competência do moço já garantia sucesso a qualquer empreitada. Então ela passou a dar à praça, com gosto de gás, tudo o que tinha a oferecer à vida, que é sempre receptiva: seu calor, seu endereço, que em si mesmo desde sempre se renova – pois que a moça não envelhece, e como a Fênix, faz das cinzas de seu fim um novo começo.
Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.