As idéias aqui esboçadas têm tudo a ver com a eleição de Barack Obama em 4 de novembro de 2008, mas evitam vaticínios categóricos sobre o que serão os próximos anos da trajetória americana (1). Limitam-se a defender, com base no passado e no presente, o conceito de os Estados Unidos da América não serem uma entidade monolítica, chapada nem estática, mas uma sociedade complexa, com história, classes e luta de classes, contradições sociais e políticas.

São, portanto, uma crítica do antiamericanismo, no sentido que empresta aos EUA uma natureza perversa intrínseca e irremediável. É um elogio do antiimperialismo de classe, que leva em conta os conflitos no interior da sociedade americana e busca neles aliados, ainda que temporários e pouco confiáveis, visando a enfrentar com êxito o atual domínio planetário do grande capital financeiro made in USA.

O aiatolá iraniano Rouhollah Mousavi Khomeini (1902-1987), que cunhou para os Estados Unidos o apelido “Grande Satã”, pode ser tomado como um caso exemplar da primeira atitude. E ele tem seguidores, de diferentes credos, latitudes e meridianos, desde pensadores da velha Europa que alimentam um multissecular contencioso com o Novo Mundo até os perpetradores do 11 de Setembro de 2001.

Do ponto de vista da teoria luta de classes, o ponto de vista do “Grande Satã” é uma aproximação tosca da realidade. Versão especular da tese do “choque de civilizações” de Samuel P. Huntington (aliás, um amigo do general Garrastazu Médici, a quem visitou no Brasil em 1972; haja civilização!), comete um duplo erro: teórico, por não enxergar as contradições internas que são a alma das coisas; e estratégico, por presentear ao inimigo reservas que por sua natureza podem ter um papel decisivo no seu isolamento e derrota. Ao mesmo tempo, sua difusão na atualidade possui lá os seus motivos.

Seis décadas de reacionarismo

Os EUA concluirão em 20 de janeiro de 2009 oito anos sob a administração de George Walker Bush, o chefe de Estado mais à direita que já governou uma grande potência desde o suicídio de Adolf Hitler, em 1945. Ele deixa a Casa Branca com o país encalacrado na pior crise do capitalismo já vista pelas gerações atuais e em duas guerras de agressão sem perspectivas de vitória, no Iraque e no Afeganistão.

A era Bush culminou e exasperou três décadas de predomínio da ultradireita, iniciadas com a eleição de Ronald Reagan em 1980 (predomínio não quebrado, mas confirmado durante a administração do new democrat Bill Clinton, em 1993-2000).

De um ponto de vista ainda mais amplo, o imperialismo americano tem sido, no período pós-União Soviética, como durante a Guerra Fria, a maior das potências econômicas, políticas, militares e culturais do capital financeiro, o principal bastião do sistema planetário burguês. Já se vão mais de seis décadas de reacionarismo exacerbado americano, 62 anos a contar do discurso de Winston Churchill em Fulton em 1946 que costuma ser tomado como o marco zero da Guerra Fria.
Não admira, portanto, que o censo comum enxergue esse estado de coisas como permanente.

Quando os EUA davam exemplo

No entanto, nem sempre foi assim.
Ainda que custe a crer, era bem outra a imagem dos Estados Unidos que tinha o jovem estudante mineiro José Joaquim da Maia em 1786, quando entregou a Thomas Jefferson e ao presidente George Washington a seguinte carta: “Sou brasileiro e sabeis que minha desgraçada pátria geme em um espantoso cativeiro, que se torna cada dia menos suportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada pouparam para nos tornar desgraçados, com o temor de que seguíssemos os vossos passos; (…) estamos dispostos a seguir o marcante exemplo que acabais de nos dar (…) quebrar nossas cadeias e fazer reviver nossa liberdade que está completamente morta e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus possuem sobre a América (…) Isto posto, senhor, é a vossa nação que acreditamos ser a mais indicada para nos dar socorro, não só porque ela nos deu o exemplo, mas também porque a natureza nos fez habitantes do mesmo continente e, assim, de alguma maneira, compatriotas”.

Assim como era bem outra a visão dos revolucionários nordestinos da Confederação do Equador em 1924, quando procuraram apoio e armas nos Estados Unidos. Ou dos manifestantes de 1942 que, em várias cidades, exigiam o ingresso do Brasil na guerra contra o nazi-fascismo, impulsionados por organizações como UNE e Partido Comunista, portando bandeiras dos EUA e retratos de Franklin Roosevelt.

Uma carta de Marx a Abraham Lincoln

A formação da sociedade estadunidense está marcada por duas notáveis revoluções: a Guerra de Independência, ou Revolução Americana, no século XVIII; e a Guerra Civil antiescravista no século XIX.
A primeira, em 1775-1783, gerou o primeiro Estado independente das Américas e a primeira república democrático-burguesa no sentido moderno do termo. Então, o movimento operário não passava de um recém-nascido, porém, revolucionários como os franceses Gilbert du Motier de La Fayette (1757-1834) e o futuro socialista utópico Claude de Saint Simon (1760-1825), então com 17 anos, atravessaram o atlântico para combater nas filas revolucionárias.

Vladimir Lênin classificou a Revolução Americana como “a guerra do povo americano contra os bandidos ingleses que o oprimiam e mantinham na América a escravidão colonial”. Marx escreveu: ela
“soou como um toque de rebate para a burguesia européia”.

Já a Guerra Civil, em 1861-1865, ao custo de 617 mil mortos (numero só superado nas Américas pela Guerra do Paraguai, poucos anos depois), teve como principal realização a derrota e desmantelamento do sistema escravista no sul do pais, mas foi além. Promulgou, sob pressão das massas, a Lei do Homestead (1862), que garantia a cada cidadão americano o direito a um lote de terra, pela quantia simbólica de 10 dólares.

O movimento operário já era então uma força real, organizada e consciente. Batalhões operários (gráficos, construção civil) participaram do combate aos escravistas, elegendo seus comandantes. Entre estes havia não poucos socialistas, como o prussiano Joseph Weydemeyer (1818-1866), amigo de Karl Marx e Friedrich Engels, emigrado para os EUA em 1851 e fundador em 1852 da American Workers League (Liga dos Trabalhadores Americanos), primeira organização marxista no Novo Mundo.
Já no decurso da Guerra Civil o movimento operário americano multiplicou rapidamente suas organizações sindicais. Vencido o conflito, conquistou em vários estados as primeiras leis da jornada de trabalho de oito horas. Em 1866, em Baltimore, fundou a National Labour Union (União Nacional do Trabalho), primeira central sindical do país, tendo à frente, William S. Sylvis.

Do outro lado do Atlântico, a atitude do jovem movimento operário europeu diante da Guerra Civil pode ser avaliada por esta mensagem escrita por Karl Marx, em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, entregue ao embaixador dos EUA em Londres em 28 de janeiro de 1865, saudando a reeleição de Abraham Lincoln como presidente dos EUA:

“Senhor, “Felicitamos o povo Americano pela sua reeleição por uma larga maioria. Se a palavra-de-ordem reservada à sua primeira eleição foi resistência ao Poder dos Escravistas [Slave Power], o grito de guerra triunfante da reeleição é Morte à Escravatura.

“Desde o começo da titânica contenda americana, os operários da Europa sentiram instintivamente que a bandeira das estrelas carregava o destino da sua classe. A luta por territórios que desencadeou a dura epopéia não foi para decidir se o solo virgem de regiões imensas seria desposado pelo trabalho do emigrante ou prostituído pelo passo do capataz de escravos?

“Quando uma oligarquia de 300 mil proprietários de escravos ousou inscrever, pela primeira vez nos anais do mundo, “escravatura” na bandeira da revolta armada, quando nos mesmíssimos lugares onde há quase um século pela primeira vez tinha brotado a idéia de uma grande República Democrática, de onde saiu a primeira Declaração dos Direitos do Homem e onde se deu o primeiro impulso à Revolução Européia do século XVIII; quando, nesses precisos lugares, a contra-revolução, com sistemática pertinácia, se vangloriou de prescindir das ‘idéias vigentes no tempo da formação da velha Constituição’ e sustentou que ‘a escravatura é uma instituição beneficente’, na verdade a única solução para o grande problema da ‘relação do capital com o trabalho’, e cinicamente proclamou a propriedade sobre o homem como ‘a pedra angular do novo edifício’ – então, as classes operárias da Europa compreenderam imediatamente, antes mesmo da fanática tomada de partido das classes superiores em favor da aristocracia confederada ter dado o seu funesto aviso, que a rebelião dos proprietários de escravos tocaria o rebate para uma santa cruzada geral da propriedade contra o trabalho e que, para os homens do trabalho, junto com suas esperanças para o futuro, até as suas conquistas passadas estavam em causa nesse tremendo conflito do outro lado do Atlântico. Por conseguinte, suportaram pacientemente, por toda parte, as privações que lhes eram impostas pela crise do algodão, opuseram-se entusiasticamente à intervenção pró-escravatura – pregada por seus superiores – e, na maior parte das regiões da Europa, contribuíram com a sua quota de sangue para a boa causa.

“Enquanto os operários, as verdadeiras forças políticas do Norte, permitiram que a escravatura corrompesse a sua própria república, enquanto, perante o negro – dominado e vendido sem o seu consentimento –, se gabaram da elevada prerrogativa do trabalhador de pele branca de se vender a si próprio e escolher o seu próprio amo, foram incapazes de atingir a verdadeira liberdade do trabalho ou de apoiar os seus irmãos europeus na sua luta pela emancipação; mas esta barreira ao progresso foi varrida pelo mar vermelho da Guerra Civil.

“Os operários da Europa estão certos de que, assim como a Guerra da Independência Americana iniciou uma nova era de ascensão para a classe média, também a Guerra Americana Contra a Escravatura o fará para as classes operárias. Consideram uma garantia da época que está para vir que tenha cabido a Abraham Lincoln, honesto filho da classe operária, guiar o seu país na luta incomparável pela salvação de uma raça agrilhoada e pela reconstrução de um mundo social”.

O nascimento do imperialismo americano

É certo que este percurso revolucionário dos jovens EUA sempre padeceu das limitações e contradições próprias de sua direção democrático-burguesa. É certo igualmente que pertence a um passado que já se distancia (embora tenha deixado marcas que sobrevivem na sociedade americana, como a eleição de juízes e até xerifes pelo voto popular).

O ponto de inflexão pode ser situado na Guerra Hispano-Americana de 1898. Iniciada com sentido de apoio à Guerra de Independência de Cuba, liderada pelo revolucionário José Martí (1853-1895), concluiu-se em 1903 com a Emenda Platt, que impôs aos cubanos o enclave militar de Guantánamo, até hoje existente e usado no século XXI como campo “fora-da-lei” de prisioneiros da guerra global.

Simbolicamente, data daí a conformação dos Estados Unidos enquanto potência imperialista. Desde a virada para o século XX, são os monopólios do capital financeiro que dominam a economia, a sociedade e o aparelho de Estado dos EUA, impondo seus interesses seja na política interna, seja internacionalmente. Porém, a emergência do imperialismo americano não representa o fim das contradições e lutas econômicas, sociais e políticas no interior dos EUA. Dois exemplos merecem menção.

A Grande Depressão dos anos 1930, que no Velho Mundo desaguou na ascensão da extrema-direita nazi-fascista, nos EUA conduziu a outra alternativa: levou ao New Deal de Franklin D. Roosevelt, que contrariou certos interesses dos monopólios e atendeu a certas necessidades imediatas das massas trabalhadoras, por certo que dentro dos estritos limites do capitalismo. O dirigente comunista Joseph Stalin fez interessantes observações a respeito numa entrevista de 1934 para o escritor britânico H. G. Wells.

O segundo exemplo ocorre nos anos 1960: é o auge dos movimentos pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietnã. Acontece já nos marcos da Guerra Fria, após a caça às bruxas direitista representada pelo macarthismo. Não chega a tomar e nem sequer a se aproximar das alavancas de comando do poder; é impulsionado for forças oposicionistas e contestatárias. No entanto, joga um papel estratégico, particularmente na derrota da guerra de agressão imperialista contra o Vietnã.

O notável exemplo vietnamita

A luta do povo vietnamita, conduzido pelo Partido dos Trabalhadores (hoje Partido Comunista) do Vietnã e seu líder histórico, Ho Chi Minh (1890-1969), é um exemplo notável de determinação antiimperialista a toda prova, aliada a uma tenaz recusa de princípios ao antiamericanismo. Após enfrentar e vencer o colonialismo Francês na guerra de libertação de 1945-1954, os vietnamitas, e seus vizinhos laosianos e cambojanos, imediatamente se depararam com a agressão do neocolonialismo americano.

Obrigados a retomar a guerrilha, a partir de 1959, travaram uma “guerra de todo o povo” que se prolongou por 16 anos. Por fim, em 30 de abril de 1975, expulsaram definitivamente os agressores. Pela primeira vez o imperialismo americano, apesar de seu poderio militar sem precedentes, mordia, explícita e assumidamente, o pó da derrota.

A força principal que decidiu a vitória foi a “guerra de todo o povo”, no Norte e no Sul, à custa de sacrifícios inauditos. A guerra custou mais de 5 milhões de vidas vietnamitas, sendo 4 milhões de civis, afora 58 mil soldados americanos mortos e 303 mil feridos. Porém, desde o primeiro até o último dia de combate a guerrilha encarou o povo trabalhador e as forças amantes da paz dos EUA como seus aliados estratégicos.

À medida que o conflito revela sua verdadeira face e cobra um preço cada vez mais alto, a conduta de princípios dos vietnamitas começa a render frutos. Enormes manifestações de protesto sacodem os EUA, com destaque para o papel da juventude. Milhares rasgam os papéis de alistamento militar ou fogem para o Canadá; nos campos de batalha, multiplicam-se os gestos de insubordinação. Por fim, a Casa Branca, na administração do raivoso anticomunista Richard Nixon, não tem escolha senão recuar para uma linha de “vietnamização da guerra” (recorrendo a tropas títeres sul-vietnamitas), que antecedeu a derrota final.

Assim que se consumou a proeza vietnamita, o general Vo Nguyen Giap, herói da resistência ao colonialismo Francês e ao neocolonialismo americano, hoje com 97 anos, assim descreveu a linha de Ho Chi Minh neste particular:

“O presidente Ho sempre foi um nobre símbolo de genuíno patriotismo combinado com profundo internacionalismo proletário. Desde os primeiros anos de sua trajetória em busca do caminho da salvação nacional, ele chegou à importante conclusão de que a classe operária e o povo trabalhador de todos os países são amigos, enquanto o imperialismo em toda parte é o inimigo.

“Ele […] ensinou os povos das colônias a diferenciar entre os governantes coloniais imperialistas e o povo trabalhador do ‘país mãe’, considerando os primeiros como inimigos e os povos progressistas como amigos. O presidente Ho usou a imagem do ‘elefante e suas duas presas’ para ensinar o princípio da unidade internacional entre i povo trabalhador do ‘país mãe’ e os povos das colônias contra seu inimigo comum, o imperialismo. Esta importante estratégia tinha origem não só no humanismo comunista do proletariado, mas também nos interesses da revolução proletária no mundo inteiro, bem como nos interesses de cada nação”.

Em 1989, quando a vitória sobre os agressores americanos já pertencia à história, o mesmo Giap comentaria para um jornalista ocidental:

“Fomos nós que vencemos a guerra, e foram os americanos os derrotados, mas devemos ser mais precisos quanto a isso. Em que constituiu a vitória? O povo vietnamita nunca desejou a guerra; ele desejava a paz. E os americanos, queriam a guerra? Não, também eles queriam a paz. Então, a vitória foi daquelas pessoas, no Vietnã e nos EUA, que desejavam a paz. Portanto, quem foram os derrotados? Aqueles partidários da agressão a qualquer preço. Eis por que ainda hoje somos amigos do povo da França e nunca sentimos a menor inimizade pelo povo dos EUA”.

Os vietnamitas têm razão. O antiamericanismo chapado confunde aliados e inimigos. Não só contraria o humanismo comunista como contraria os interesses da revolução.

Bernardo Joffily é jornalista e editor do Portal Vermelho

Notas:
(1) Entre os cacoetes antiamericanistas que discuto está a resistência em usar o gentílico “americano” para os naturais dos Estados Unidos da América; argumenta-se que americanos somos todos os que habitamos desde a Groenlândia até a Terra do Fogo, e propõe-se a alternativa “estadunidense”. Prefiro “americano” por um simples e bom motivo: é o termo usado por eles próprios, e pela esmagadora maioria dos humanos de todo o mundo, inclusive os brasileiros. O critério proposto pelos adeptos do “estadunidense” nos levaria a tolices como impugnar o topônimo “Ásia”, por se tratar de uma deusa grega, ou “África”, por derivar do nome de uma província do Império Romano.
http://www.marxists.org/portugues/marx/1864/11/29.htm
O presidente Ho e a revolução nacional-libertadora, Vo Nguyen Giap, 1975
http:/www.pbs.org/wgbh/peoplescentury/episodes/guerrillawars/giaptranscript.html

EDIÇÃO 99, DEZ/JAN, 2008-2009, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26