Debate na SBPC: questão amazônica é também ideológica
Com o objetivo de refletir sobre a polêmica questão da Amazônia, a Fundação Maurício Grabois promoveu em julho, no âmbito da 60º Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o debate “Amazônia: soberania e desenvolvimento sustentável”. Realizado em parceria com os sindicatos dos professores de Campinas e dos trabalhadores da Unicamp, o evento reuniu, no auditório da Faculdade de Educação da Unicamp (universidade que sedia a 60º SBPC), mais de 100 pessoas entre professores, estudantes, pesquisadores, militares e gestores públicos, muitos deles oriundos da região amazônica.
Participaram do debate, na condição de expositores, o Prof. Ennio Candotti (Ex-presidente e atual Presidente de Honra da SBPC), o deputado estadual pelo PCdoB do Amazonas Eron Bezerra, Secretário da Produção Rural do Governo do Amazonas, e Lúcia Galdêncio, diretora de meio-ambiente da Agência Nacional do Petróleo, que representou o diretor-geral da ANP Haroldo Lima. O debate foi coordenado por Aldo Arantes, diretor de meio-ambiente da Fundação Maurício Grabois.
Os expositores apresentaram considerações sobre as políticas de defesa nacional, agricultura, energia, educação, ciência, tecnologia e inovação voltadas à proteção e desenvolvimento sustentável da região amazônica – hoje alvo de diversos empreendimentos de exploração econômica predatória e também da cobiça das grandes potências internacionais.
Na visão do deputado Eron Bezerra, primeiro expositor a fazer uso da palavra, é um erro achar que a questão da Amazônia envolve apenas aspectos ecológicos. O debate sobre o assunto conteria, na visão do deputado do PCdoB, um forte viés ideológico. “Os diversos dados sobre a Amazônia são formulados em meio a uma intensa disputa ideológica travada pelos diversos atores que pretendem interferir nos destinos da região”, afirmou.
Para Eron, a proposta de manter desocupado o espaço amazônico nada teria de “ecológica”, pois é possível ocupar de forma sustentável a Amazônia, extraindo riquezas para o país e a região e mantendo, ao mesmo tempo, a floresta de pé. Atividades como o turismo, a pesca, o extrativismo e as atividades científicas e tecnológicas, em particular em torno da biodiversidade amazônica, foram citadas como alternativas de promoção do desenvolvimento sustentável.
Eron discorreu também sobre as históricas e recorrentes pressões pela internacionalização da Amazônia. “A preocupação do imperialismo nunca foi ecológica”, pontuou. Para o deputado, uma prova disso estaria no fato de que os países do G8 não aceitam de modo algum pagar a conta da poluição ambiental. Recentemente, conforme citou no debate, o G8 conseguiu remeter para 2050 a data-limite para que os países ricos reduzam suas emissões de CO2. “Se estivessem realmente preocupados com a sustentabilidade e a defesa do meio-ambiente, assumiriam compromissos maiores e mais ousados para desde já”, afirmou.
Segundo Eron Bezerra, o debate sobre a transformação da Amazônia em “patrimônio mundial” acompanhou toda a ocupação do território nacional, sendo uma de suas manifestações mais recentes a declaração do Presidente da Alemanha, Horst Koeller, para quem a gestão do território amazônico deveria ser “compartilhada” pela comunidade internacional.
Para aqueles que não acreditam na possibilidade de ações ofensivas do imperialismo tendo por alvo a região amazônica, o deputado citou diversos fatos históricos que guardariam por trás de si tentativas de apropriação da região amazônica pelos grandes potentados internacionais. Teria sido assim na Cabanagem – movimento militarizado de cunho separatista, na visão de Eron estimulado pelo imperialismo –, e também nos episódios do Instituto da Hiléia – organização internacional formada por diversos países com o objetivo de “administrar” o território amazônico, e rechaçada pelo governo Getúlio Vargas – e do Bolivian Sindicate – que originou a Revolução Acreana, movimento armado contra a criação de um Estado-laranja em plena Amazônia, a serviço do imperialismo. Para Eron, também bandeiras mais recentes – como a ambiental e a da “defesa” dos povos indígenas –, bem como a concessão de empréstimos para a compra de terras na região, teriam por trás de si a tentativa do imperialismo de interferir na Amazônia, tentativa esta acobertada por motivações supostamente “ecológicas” e “humanitárias”.
Referindo-se à relação entre a questão amazônica e a problemática ambiental, Eron Bezerra enumerou ainda a existência de basicamente três concepções sobre o assunto: a produtivista, a santuarista e a sustentabilista. Para a primeira delas, interessa pouco a questão ambiental; importaria de fato apenas a geração de valor econômico com a ocupação predatória da Amazônia, ficando em segundo plano a questão da sustentabilidade. Já na visão santuarista ocorreria o contrário: o desenvolvimento econômico da região ficaria em segundo plano, interessando apenas manter intocada a floresta. Já na visão sustentabilista, resultado do choque das duas anteriores, o fundamental seria a busca de um modelo de desenvolvimento com sustentabilidade ambiental.
Segunda pessoa a se pronunciar no debate, o Prof. Ennio Candotti discorreu sobre o papel da Ciência & Tecnologia na promoção do desenvolvimento sustentável da região amazônica. Para Ennio, é preciso enfrentar a problemática da Amazônia com mais pesquisas científicas e mais jovens inseridos nas salas-de-aula e nos laboratórios.
Buscando exemplos de como as atividades de C&T podem contribuir para a defesa e o desenvolvimento da região, Ennio evocou inicialmente a questão abordada de passagem por Eron Bezerra, qual seja a de um possível “colapso” da região amazônica (hipótese pouco provável na opinião de Bezerra). “Pode ocorrer o colapso da floresta?”, perguntou Candotti, para responder em seguida: “Essa possibilidade existe, pois para que o bioma amazônico não desapareça é preciso manter a cobertura florestal em um determinado nível, abaixo do qual a floresta poderia entrar em colapso”, afirmou, acrescentando em seguida que a pesquisa científica é de fundamental importância para a determinação da possibilidade e das condições em que poderia ocorrer o dito “colapso” da floresta.
Para Candotti, um modelo econômico que mantenha a floresta de pé poderia legar resultados econômicos melhores que as alternativas econômicas conseguidas com a derrubada da floresta. Para isso, entretanto, seria necessário ocupar cientificamente a Amazônia. O Presidente de Honra da SBPC chegou a citar estudos da Embrapa segundo os quais só a utilização das terras amazônicas já degradadas permitiria dobrar a produção agrícola nacional, desde que isso fosse feito com o uso em larga escala das atividades científicas e tecnológicas.
Com base nisso Candotti defendeu um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, com maior presença do Estado na região e mais instituições científicas nos moldes do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Embrapa Amazônia. Aproveitou para protestar contra o fato de as instituições científicas da Amazônia não gozarem de situação financeira semelhante à de instituições de outras partes do país. “Basta comparar o orçamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) com o do Inpa de Manaus. A relação entre os dois é de 20 para 1”, afirmou.
Ennio afirmou ainda que nos últimos 50 anos foram investidos na Amazônia mais recursos que em toda a história do Brasil. “O que temos, porém, é ainda pouco. Há espaço para fixar mais gente tecnicamente qualificada na Amazônia. Só nos últimos vestibulares realizados por universidades da região inscreveram-se mais de 50 mil jovens. É preciso formar e aproveitar todos esses recursos humanos”.
Candotti encerrou sua intervenção alertando para a sempre problemática relação entre ocupação da Amazônia, Ciência & Tecnologia e movimentos sociais. Para o pesquisador da SBPC, os movimentos sociais ainda vêem a Ciência como ameaça, “e com razão”. Por conta dessa situação, seria preciso dialogar com os movimentos representativos da sociedade civil para provar que o novo modelo de desenvolvimento para a região, com utilização em larga escala da Ciência e da Técnica, não agrediria o meio-ambiente e nem alijaria parcelas da população do desenvolvimento econômico e social, contribuindo ao contrário disso para a promoção da igualdade social e da sustentabilidade ambiental.
Última expositora, Lúcia Galdêncio abordou o tema da noite sob a ótica das políticas de energia. Traçou um histórico da construção, em nosso país, da instucionalidade relacionada à exploração do Petróleo, desde a criação da Petrobrás. Apresentou dados sobre o crescimento das reservas de petróleo e gás natural cuja existência já se encontra atestada, bem como sobre o crescimento da produção de petróleo e gás natural em nosso país.
Lúcia expôs o modo de funcionamento dos contratos de exploração celebrados entre a ANP e empresas privadas – e criticados por parcelas da esquerda brasileira –, afirmando se tratarem de contratos de risco. Nos lugares onde os contratos celebrados apresentam ao final bons resultados econômicos, as empresas remuneram o Estado através de mecanismos como royaties, bônus de assinatura, aluguéis de terra e participações especiais.
Lúcia traçou ainda um quadro dos principais problemas ecológicos gerados pela exploração de petróleo e gás natural, mostrando de que forma esses problemas poderiam ser enfrentados. Por fim, tocou na polêmica questão do etanol, buscando rebater as principais críticas relacionadas.
A primeira delas apresenta o fato de que a produção de etanol provocaria o aumento das áreas do território nacional destinadas ao plantio de cana, podendo pressionar extensas áreas de floresta ainda intocadas na Amazônia. Com relação a isso Lúcia colocou o fato de que só 4% do território nacional é tomado pelo plantio de cana. Para a representante da ANP, estudos da Embrapa asseveram que bastaria aumentar – com o uso intensivo da C&T – a produtividade da pecuária brasileira para liberar extensas áreas, as quais poderiam assim ser utilizadas para o plantio adicional da cana com finalidades energéticas.
Lúcia rebateu ainda críticas relacionadas ao uso de trabalho escravo em plantações de cana. Segundo os críticos, a ampliação dos canaviais poderia contribuir para o agravamento desse problema. Para Lúcia, porém, casos isolados de trabalho escravo não podem ser tomados como motivo para abandonar a produção de etanol. Ao contrário disso, segundo ela, seria necessário lutar contra esse tipo de problema, não apenas nos canaviais a serem criados para a produção de etanol, mas também nos já existentes.
Uma terceira crítica rebatida por Lúcia Galdêncio diz respeito ao fato, afirmado por muitos, de que a produção e uso de etanol traria problemas ambientais iguais ou maiores que a produção e utilização de combustíveis fósseis. Para ela essas informações não correspondem à realidade, podendo ser dito com larga margem de certeza que os biocombustíveis representam alternativa infinitamente mais sustentável que os combustíveis fósseis.
Ao final das intervenções dos expositores, diversas pessoas presentes ao debate puderam colocar suas interrogações. Uma das questões mais lembradas foi o relançamento, pelo governo norte-americano, da 4º frota – voltada ao patrulhamento militar da América do Sul –, e a relação desse fato não apenas com a Amazônia, mas também com nossas reservas petrolíferas e com o chamado “aqüífero guarani”. Perguntou-se ainda sobre a venda de extensas áreas de floresta amazônica para estrangeiros; sobre a biopirataria e a presença preocupante de pesquisadores e instituições estrangeiras na Amazônia; sobre a construção de uma universidade pan-amazônica; sobre a polêmica em torno das causas do aquecimento global, e também sobre o caráter por vezes excessivamente amplo do conceito de sustentabilidade.
Após nova rodada de intervenções finais dos expositores, que abordaram de forma completa e adequada as interrogações colocadas pelos participantes, o debate foi encerrado pelo diretor de meio-ambiente da Fundação Maurício Grabois, Aldo Arantes, que traçou uma síntese do pensamento da Fundação sobre o assunto, afirmando ser necessário um novo zoneamento econômico e ecológico que abra caminho para a efetiva implementação de um modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia.
Fábio Palácio, para o Portal Vermelho