Não há niguém tão estúpido que não consiga aprender alguma coisa, nem tão esclarecido que nada mais tenha a aprender. Somos mestres e aprendizes, continuamente, na escola da vida. Até pouco tempo eu dizia "caboclo" e por caboclo eu me tinha em alta conta. Foi quanto prestei atenção ao modo de escrever de certa pesquisadora de literatura brasileira, que, certamente, não estava a falar "errado" a palavra caboco…

      Caiu-me a ficha! Antes, quando eu ouvia alguém dizer caboco, podia saber que era o dito cujo. Pois "caboclo" é o modo "certo", civilizado; de se referir a essa etnia ainda no limbo da antropologia cultural. Há uma pletora de estudos indígenas e não menos sobre negros, quilombolas, afro-descendentes. O pobre caboco tudo que arranjou até agora foi um "l" injustificável e metido a besta…

      Outrora, cronistas e viajantes observaram que nas diversas línguas nativas não apareciam as letra, F, L e R… E explicavam, os índios não conhecem, Fé, Lei e Rei (falso, evidentemente). Mesmo assim, sendo caboco descendente de índio, talvez lhe metessem além da Fé obrigatória e do Rei a qualqur custo, também a Lei por força de gramática e a santa Férula (palmatória) durante a aula.

      O professor José Ribamar Bessa Freire (autor de "Rio Babel") não me deixa mentir, com testemunho do pe. João Daniel que assistiu índias do Marajó levar palmatoadas até a mão sangrar e dizer basta, para deixar de falar a "língua travada" e aprender depressa a Língua Geral preparatória ao português logo depois…

      Mas, o diabo da gramática debaixo do equador é o étimo caboco do tupi através Nheengatu, de caá (mato, vegetal) e boc (saído, tirado de). Logo, é intromissão forçada o tal "l" de caboclo.. E se o dito cujo diz, perfeitamente, caboco. Então, por que cargas d'água, o branco entortou a língua do índio? Só pra chatear, mea senhora!

      Sou eu de uma geração em que os cabocos aprendíamos em cartilha com esta primeira lição de língua portuguesa: Ivo viu a uva… Eu jamais me esqueci de que na escola pública da vila Itaguari tinha um colega chamdo Ivo e que só fui ver uva muitos anos depois, em Belém. Ali a gente via todo dia mangas, goiabas, pupunha, açaí, bacuri… Mas, uva não havia ali nem pra remédio.

      Aprendi que cabocos falam errado a palavra canoa, trocando-a por canua, como pupa (popa) e prua (proa). Porém – Deus é bom! – , certo dia me caiu às mãos o livro Toponímia Brasílica, de autoria do geógrafo e demarcador de fronteiras Armando Levy Cardoso; no qual fiquei sabendo que canoa vem do aruaque canuá, através do espanhol. Outra contribuição arauque é 'tubarão", de tiburón, pela mesma via hispànica. Outros casos, "anaconda' (sucuriju, em tupi); "arapaima" (pirarucu)…

      Ora, ora; seu Manuel; deixemos o caboco falar a palavra certa! É canua, e pronto. Outra coisa interessante que aprendi no livro foi a desconfiar da tupimania. Isto é, o vicio brasileiríssimo de achar que toda palavra indígena se pode traduzir pela língua tupi. Sobretudo, na área cultural guianense. Que vai das ilhas do Marajó pela margem esquerda do Baixo-Amazonas, passando ao Rio Negro até o delta do Orenoco e ilha de Trinidad pela costa marítima. Aí nas Guianas predomima a babel de línguas de tronco Aruak e Carib, Guiana brasileira (Calha Norte) inclusive.

      Não entra na minha cabeça que a melhor tradução para o topônimo "Marajó" (Mbarayo) seja "barreira do mar"… Prefiro deduzir, pelo velho tupi, de Marãyu (marã; o mal; malvado; e yu; gente; povo), "gente malvada". A tradução não é elegante, mas justificável pela história de ódio hereditário entre Tupinambás e Nheengaíbas (ambos nomes tupis), os dois povos que habitaram as margens opostas do Rio Pará, à época da conquista do rio das amazonas. Que a crônica lusobrasileira seja baseada na Língua Geral Amazônica é resiltado de terem sido o arco, o remo e o idioma tupinambá instrumentos indispensáveis de conquista e colonização da Amazônia brasileira, predominando sobre milhares de línguas tapuias (inimigas).

      A cidade de Belém é banhada pela baía do Guajará, aonde vem desaguar o rio Guamá. Levy Cardoso ensina, que se deve o topônimo do rio ao nome de Guaiamã, cacique dos Aruã e Mexiana, no arquipélago do Marajó. Devia dizer-se, então, rio de Guaiamã. O motivo disto é que vinha ele de tempos em tempo fazer a guerra a antigos inimigos, assaltava aldeias de índios "mansos" (escravos) para trocar por armas e munições com traficantes franceses de Caiena.

      Foi esta a causa do furto do café de Caiena pelo sargento-mor Francisco de Mello Palheta, que deu roças no Pará, e foi fazer fazendas no Rio de Janeiro e São Paulo. Depois eu conto. Agora basta saber, que velhos cabocos ao se referir ao rio e ao bairro por extensão, pronunciavam inconfundivelmente Guamã… Reminiscência da memória do cacique bandoleiro da ilha do Marajó. Que passou a Guamá na língua do colonizador.