Introdução à Dialética da Natureza
Fredrich Engels
1875/1876
As modernas ciências naturais, as únicas que alcançaram um desenvolvimento científico, sistemático e completo, em contraste com as geniais intuições filosóficas que os antigos aventuravam acerca da natureza, e com as descobertas dos árabes, muito importantes mas esporádicas e que se perderam, na maioria dos casos, sem oferecer o menor resultado positivo; as modernas ciências naturais, como quase toda a história, datam da grande época que nós, os alemães, chamamos Reforma – segundo a desgraça nacional que então nos acontecera -, os franceses chamam Renaissance e os italianos Cinquecento1, embora nenhuma dessas denominações reflita com toda plenitude o seu conteúdo. Essa é a época que se inicia com a segunda metade do século XV. O Poder real, apoiando-se nos habitantes das cidades, derrubou o poderio da nobreza feudal e estabeleceu grandes monarquias, baseadas essencialmente no princípio nacional e em cujo selo se desenvolveram as nações européias modernas e a moderna sociedade burguesa. Enquanto os moradores das cidades e os nobres achavam-se ainda enredados em sua luta, a guerra camponesa na Alemanha apontou profeticamente as futuras batalhas de classe: não só saíram à arena os camponeses sublevados – isso nada constituía de novo -, mas atrás deles apareceram os antecessores do proletariado moderno, desfraldando a bandeira vermelha e tendo nos lábios a reivindicação da propriedade comum sobre os bens. Nos manuscritos salvos na queda de Bisâncio, nas antigas estátuas escavadas nas ruínas de Roma, um novo mundo – a Grécia antiga – se ofereceu aos olhos atônitos do Ocidente.
Os espectros da Idade Média desvaneceram-se diante daquelas formas luminosas; na Itália verificou-se um inusitado florescimento, da arte, que veio a ser como um reflexo da antigüidade clássica e que jamais voltou a repetir-se. Na Itália, na França e na Alemanha nasceu uma literatura nova, a primeira literatura moderna. Pouco depois chegaram as épocas clássicas da literatura na Inglaterra e na Espanha. Romperam-se os limites do velho "orbis terrarum"2; só então foi descoberto o mundo, no sentido próprio da palavra, e se assentaram as bases para o subseqüente comércio mundial e para a passagem do artesanato à manufatura, que por sua vez serviu de ponto de partida à grande indústria moderna. Foi abatida a ditadura espiritual da Igreja; a maioria dos povos germânicos pôs por terra o seu jugo e abraçou a religião protestante, enquanto que entre os povos românicos lançava raízes cada vez mais profundas e abria caminho para o materialismo do século XVIII uma serena liberdade de pensamento, herdada dos árabes e alimentada pela filosofia grega, de novo descoberta. Foi essa a maior revolução progressista que a humanidade conhecera até então; foi uma época que exigia gigantes e que forjou gigantes pela força do pensamento, pela paixão e o caráter, pela universalidade e a erudição. Dos homens que lançaram as bases do atual domínio da burguesia poderá dizer-se o que se quiser, mas de modo nenhum que tenham pecado de limitação burguesa. Pelo contrário: todos eles se achavam dominados, em maior ou menor medida, pelo espírito de aventuras inerentes à época.
Quase não havia nem um só grande homem que não houvesse realizado longas viagens, não falasse quatro ou cinco idiomas e não brilhasse em vários domínios da ciência e da técnica. Leonardo da Vinci não só foi um grande pintor, mas um exímio matemático, mecânico e engenheiro, ao qual devemos importantes descobertas nos mais diferentes ramos da física. Alberto Durero foi pintor, gravador, escultor, arquiteto e, além disso idealizou um sistema de fortificação que encerrava pensamentos muito tempo depois desenvolvidos por Mantelembert e pela moderna ciência alemã da fortificação. Maquiavel foi homem de Estado, historiador, poeta, além de ter sido o primeiro escritor militar digno de menção dos tempos modernos. Lutero não só limpou os estábulos de Augias da Igreja, como também os do idioma alemão, foi o pai da prosa alemã contemporânea e compôs a letra e a música do hino triunfal que chegou a ser a Marselhesa do século XVI. Os heróis daqueles tempos ainda não eram escravos da divisão do trabalho, cuja influência comunica à atividade dos homem, como podemos observá-lo em muitos de seus sucessores, um caráter limitado e unilateral. O que mais caracteriza os referidos heróis é que quase todos eles viviam plenamente os interesses de seu tempo, participavam de maneira ativa na luta política, aderiam a um ou outro partido e lutavam, uns com a palavra e a pena, outros com a espada, e outros com ambas as coisas ao mesmo tempo. Daí a plenitude o a força de caráter que fazem deles homens de uma só peça. Os sábios de gabinete eram nessa época uma exceção: eram homens de segunda ou terceira linha, ou prudentes filisteus que não desejam sujar os dedos.
Também as ciências naturais desenvolviam-se então em meio à revolução geral o eram profundamente revolucionárias, pois deviam conquistar ainda o direito à existência. Ao lado dos grandes italianos que deram nascimento à nova filosofia, as ciências naturais ofereceram os seus mártires às fogueiras e aos cárceres da Inquisição. É de notar que os protestantes superaram os católicos nas perseguições contra a investigação livre da natureza. Servet foi queimado, por ordem de Calvino quando se achava às portas da descoberta da circulação do sangue, sendo mantido vivo por duas horas na fogueira; a Inquisição, pelo menos, deu-se por satisfeita queimando simplesmente Giordano Bruno. O ato revolucionário com que as ciências naturais declararam sua independência e pareceram repetir a ação de Lutero quando este queimou a bula do papa, foi a publicação da obra imortal em que Copérnico, se bem que timidamente e, por assim dizer, em seu leito de morte, vibrou o guante contra a autoridade da Igreja nas questões acerca da natureza. Data de então a emancipação das ciências naturais relativamente à teologia, embora a luta por alguns protestos recíprocos se prolongue até os nossos dias e, em certas consciências, está muito longe ainda de ter terminado. Mas a partir daí operou-se, a passos agigantados, o desenvolvimento da ciência, e pode-se dizer que esse desenvolvimento se intensificou proporcionalmente ao quadrado da distância (no tempo) que o separa de seu ponto de partida. Era como se fosse necessário demonstrar ao mundo que a partir de então regia para o produto supremo da matéria orgânica – o espírito humano – uma lei do movimento inversa à lei do movimento que vigorava para a matéria inorgânica. A tarefa principal no primeiro período das ciências naturais, período que acabava de começar, consistia em dominar o material que se tinha à mão. Na maior parte dos ramos tornou-se necessário começar pelo mais elementar.
Todo o legado da antigüidade resumia-se em Euclídes e o sistema solar de Ptolomeu, e o legado dos árabes à numeração decimal, os rudimentos da álgebra, os numerais modernos e a alquimia; a Idade Média cristã nada havia deixado. Em tal situação era inevitável que ocupassem o primeiro posto as ciências naturais mais elementares: a mecânica dos corpos terrestres e celestes e, ao mesmo tempo, e como seu auxiliar, a descoberta e o aperfeiçoamento dos métodos matemáticos. Grandes realizações foram conseguidas nesse domínio. Em fins desse período, caracterizado por Newton e Linneu, vemos que esses ramos da ciência atingiram certo auge. No fundamental, foram estabelecidos os métodos matemáticos mais importantes: a geometria analítica, principalmente por Descartes, os logaritmos, por Neper, e as cálculos, diferencial e integral, por Leibniz e, talvez, por Newton. O mesmo pode ser dito quanto à mecânica dos corpos sólidos, cujas leis principais foram encontradas de uma vez e para sempre. Finalmente, na astronomia do sistema solar, Kepler descobriu as leis do movimento planetário, e Newton as formulou do ponto de vista das leis gerais do movimento da matéria. Os demais ramos das ciências naturais estavam muito longe de haver alcançado sequer esse apogeu preliminar. A mecânica dos corpos líquidos e gasosos só foi elaborado com maior amplitude em fins do período indicado. (Torricelli em conexão com a regulação das torrentes dos Alpes 3). A física propriamente dita achava-se ainda em cueiros, com exceção da ótica, que conseguiu realizações extraordinárias, impulsionada pelas necessidades práticas da astronomia.
A química acabava de libertar-se da alquimia graças à teoria do flogisto4. A geologia ainda não havia saldo do estado embrionário representado pela mineralogia, e por isso a paleontologia não podia existir. Finalmente, no domínio da biologia a preocupação fundamental era a acumulação e a classificação elementar de um imenso acervo de dados não só botânicos e zoológicos, mais também anatômicos e fisiológicos no sentido verdadeiro da palavra. Quase não se podia falar ainda da comparação das diferentes formas de vida nem do estudo de sua distribuição geográfica, condições climatológicas e demais condições de existência. Aqui, unicamente a botânica e a zoologia, graças a Linneu, alcançaram uma estruturação relativamente acabada. Mas o que sobretudo caracteriza esse período é a elaboração de uma peculiar concepção do mundo, na qual o ponto de vista mais importante é a idéia da imutabilidade absoluta da natureza. Segundo essa idéia, a natureza, independentemente da forma em que houvesse nascido, uma vez presente permanecia sempre imutável, enquanto existisse. Os planetas e seus satélites, uma vez postos em movimento pelo misterioso "impulso inicial", seguiam eternamente, ou pelo menos até o fim de todas as coisas, suas elipses prescritas.
As, estrelas permaneciam eternamente fixas e imóveis em seus lugares, mantendo-se neles umas às outras em virtude da "gravitação universal". A Terra permanecia imutável desde o seu surgimento ou – segundo o ponto de vista – desde a sua criação. As "cinco partes do mundo" existiram sempre, e sempre tiveram as mesmas montanhas, vales e rios, o mesmo clima, a mesma flora e a mesma fatia, com exceção do que fora mudado ou transplantado pelo homem. As espécies vegetais e animais foram estabelecidas de uma vez para sempre ao aparecer, cada indivíduo sempre produzia outros iguais a ele, e Linneu fazia já uma grande concessão ao admitir que em alguns lugares, graças ao cruzamento, podiam ter surgido novas espécies. Em oposição à história da humanidade, que se desenvolvia no tempo, atribuía-se à história natural unicamente o desenvolvimento no espaço. Negava-se toda transformação, todo desenvolvimento na natureza. As ciências naturais, tão revolucionárias a princípio, viram-se frente a uma natureza conservadora até à medula, na qual tudo continuava sendo como fora no início e na qual tudo devia continuar, até o fim do mundo ou eternamente, tal qual fora desde o princípio mesmo das coisas. As ciências naturais da primeira metade do século XVIII achavam-se tão acima da antigüidade grega quanto ao volume dos seus conhecimentos e mesmo quanto à sistematização dos dados, como abaixo no que se referia à sua interpretação, à concepção geral da natureza. Para os filósofos gregos o mundo era, em essência, algo surgido do caos, algo que se desenvolvera, que havia chegado a ser. Para todos os naturalistas do período que estamos estudando o mundo era algo ossificado, imutável, e para a maioria deles algo criado subitarnente.
A ciência achava-se ainda profundamente imersa na teologia. Em toda parte procurava e encontrava como causa primária um impulso exterior, que não se devia à própria natureza. Se a atração, que Newton chamava pomposamente gravitação universal, é concebida como uma propriedade essencial da matéria, de onde provém a incompreensível força tangencial que deu origem às órbitas dos planetas? Como surgiram as inumeráveis espécies vegetais e animais? E como, em particular, surgiu o homem, a respeito do qual se está de acordo em que não existe eternamente? Ao responder a tais perguntas as ciências naturais limitavam-se, freqüentemente, a apresentar o criador como responsável por tudo. No começo desse período Copérnico expulsou da ciência a teologia; Newton encerra essa época com o postulado do impulso divino inicial. A Idéia geral mais elevada alcançada pelas ciências naturais do período considerado é a da congruência da ordem estabelecida na natureza, a teleologia, vulgar de Wolff, segundo a qual os gatos, foram criados para devorar os ratos, os ratos para ser devorados pelos gatos e toda a natureza para demonstrar a sabedoria do criador.
Devem ser assinalados dois grandes méritos da filosofia da época que, apesar da limitação das ciências naturais contemporâneas, não se desorientou e – começando por Spinoza e acabando pelos grandes materialistas franceses – esforçou-se tenazmente para explicar o mundo partindo do próprio mundo e deixando a justificação detalhada dessa idéia para as ciências naturais do futuro. Incluo também nesse período os materialistas do século XVIII, porque não dispunham de outros dados das ciências naturais além dos que foram descritos acima. A obra de Xant, que posteriormente faria época, não foi por eles conhecida, e Laplace apareceu muito depois deles. Não esqueçamos que embora os progressos da ciência abrissem numerosas brechas nessa caduca concepção da natureza, toda a primeira metade do século XIX se encontrou, apesar de tudo, sob a sua influência; em essência, ainda hoje ela continua a ser ensinada em todas as escolas5. A primeira brecha nessa concepção fossilizada da natureza não foi aberta por um naturalista, mas por um filósofo. Em 1755 apareceu a História Natural do Mundo e Teoria do Céu, de Kant. A questão do impulso inicial foi eliminada; a Terra e todo o sistema solar surgiram como algo que se desenvolve no transcurso do tempo. Se a maioria esmagadora dos naturalistas não tivesse em relação ao pensamento a aversão que Newton exprimiu na advertência "Física, guarda-te da metafísica!", a genial descoberta de Kant lhes teria permitido fazer deduções que poriam fim ao seu interminável extravio por sinuosos despenhadeiros e poupado o tempo e o esforço dissipados copiosamente ao seguir falsas direções, uma vez que a descoberta de Kant era o ponto de partida para todo progresso ulterior.
Se a Terra era alguma coisa que havia chegado a ser, alguma coisa que também havia chegado a ser era o seu estado geológico, geográfico e climático, assim como suas plantas e seus animais; a Terra não só devia ter sua história de coexistência no espaço, mas também de sucessão no tempo. Se as ciências naturais houvessem continuado sem tardança e de maneira resoluta as investigações nesse rumo, estariam hoje muito mais adiantadas. Mas, que podia dar de bom a filosofia? A obra de Kant não proporcionou resultados imediatos senão muitos anos depois, quando Laplace e Herschel desenvolveram o seu conteúdo e a fundamentaram mais detalhadamente, preparando assim, gradualmente, a admissão da "hipótese das nebulosas"'. Descobertas posteriores deram, por fim, vitória a essa teoria. As mais importantes entre essas descobertas foram: a do movimento próprio das estrelas fixas, a demonstração de que no espaço cósmico existe um meio resistente e a prova, fornecida pela análise espectroscópica, da identidade química da matéria cósmica e a existência – suposta por Kant – de massas nebulosas incandescentes. [A influência retardadora das marés na rotação da Terra, também suposta por Kant, sã agora foi compreendida]. Contudo, pode-se pôr em dúvida que a maioria dos naturalistas tenha adquirido logo consciência da contradição entre a idéia de uma Terra sujeita a transformações e a teoria da imutabilidade dos organismos que nela se encontram, se a nascente concepção de que a Terra não existe simplesmente, mas se encontra em processo de devenir e de mudança não fosse apoiada por outro lado.
Nasceu a geologia e não só descobriu estratos geológicos formados uns depois de outros e situados uns sobre os outros, mas a presença neles de carcassas, de esqueletos de animais extintos e de troncos, folhas e frutos de plantas que hoje já não existem. Impunha-se reconhecer que não só a Terra, em seu conjunto, tinha sua história no tempo, mas que também a tinham a sua superfície e os animais e plantas nela existentes. A princípio isso não era reconhecido de bom grado. A teoria de Cuvier acerca dos cataclismos da Terra era revolucionária de palavra o reacionária de fato. Substituía um ato único de criação divina por uma série de atos de criação, fazendo do milagre a força motriz principal da natureza. Lyell foi o primeiro a introduzir o senso comum na geologia, substituindo as revoluções repentinas, disfarce do criador, pelo efeito gradual de uma lenta transformação da Terra7. A teoria de Lyell era mais incompatível com a admissão da constância das espécies orgânicas do que todas as teorias anteriores. A idéia da transformação gradual da crosta terrestre e das condições de vida nela existentes levava de modo direto à teoria da transformação gradual dos organismos e de sua adaptação ao meio em transformação, levava à teoria da variabilidade das espécies. Contudo, a tradição é uma força poderosa, não só na Igreja Católica, mas também na ciências naturais. Durante longos anos o próprio Lyéll não surpreendeu essa contradição, muito menos os seus discípulos.
Isso foi resultado da divisão de trabalho que predominava então nas ciências naturais, em virtude da qual cada pesquisador se limitava, mais ou menos, A sua especialidade, sendo pouquíssimos os que não perderam a capacidade de abarcar o todo com o seu olhar. Enquanto isso, a física fizera enormes progressos, cujos resultados foram resumidos quase simultaneamente por três pessoas em 1842, ano que marcou época no setor das ciências naturais8. Mayer, em Heilbronn, e Joule, em Manchester, demonstraram a transformação do calor em força, mecânica e da força mecânica em calor. A determinação do equivalente mecânico em calor pôs fim a todas as dúvidas a respeito. Enquanto isso, Grove, que não era um naturalista, mas um advogado inglês, demonstrava, mediante uma simples elaboração dos resultados isolados já obtidos pela física, que todas as chamadas forças físicas – a força mecânica, o calor, a luz, a eletricidade, o magnetismo e inclusive a chamada energia química – transformavam-se umas em outras em determinadas condições, sem que se produzisse a menor perda de energia. Grove provou assim, uma vez mais, com suas investigações no domínio da física, o princípio formulado por Descartes ao afirmar que a quantidade de movimento existente no mundo é sempre a mesma. Graças a essa descoberta, as diferentes forças físicas, essas "espécies" constantes, por assim dizer, da física, diferenciaram-se em variadas formas do movimento da matéria, que se transformavam umas em outras de acordo com leis determinadas. Desterrou-se da ciência a casualidade da existência de tal ou qual quantidade de forças físicas, mas ficaram demonstradas suas interconexões e transições.
A física, como antes a astronomia, chegou a um resultado que indicava necessariamente o ciclo eterno da matéria em movimento como a última conclusão da ciência. O desenvolvimento maravilhosamente rápido da química a partir de Lavolsier, e sobretudo a partir de Dalton, atacou por outro flanco as velhas concepções da natureza. A obtenção, por meios inorgânicos, de compostos que até então só haviam sido produzidos nos organismos vivos, demonstrou que as leis da química tinham a mesma validez tanto para os corpos orgânicos como os inorgânicos e superou em grande parte o pretenso abismo entre a natureza inorgânica e a orgânica, abismo que Kant considerava insuperável pelos séculos dos séculos. Finalmente, também na esfera das pesquisas biológicas as viagens e expedições científicas organizadas de modo sistemático a partir de meados do século passado, o estudo mais meticuloso das colônias européias em todas as partes do mundo pelos especialistas que ali vivem e, ademais, as realizações da paleontologia, a anatomia e a fisiologia em geral, sobretudo desde que começou a ser sistematicamente usado o microscópio e se descobriu a célula; tudo isso acumulou tal quantidade de dados que se tornou possível – e necessária – a aplicação do método comparativo [embriologia]. De um lado, a geografia física comparada permitiu determinar as condições em que vivem as diferentes floras e faunas; de outro lado, foram comparados diferentes organismos, uns com os outros, segundo seus órgãos homólogos, e por certo não só no estado de maturidade, mas em todas as fases de seu desenvolvimento.
E quanto mais profunda e exata era essa pesquisa, tanto mais se esfumava o rígido sistema que supunha a natureza orgânica imutável e fixa. Não só se iam tornando mais difusas, as fronteiras entre as diferentes espécies vegetais e animais, como foram descobertos animais, como o anfioxo9 e o lepidosirena10, que pareciam burlar de toda a classificação existente até então [Ceratodus11. Ditto archeopteryx12, etc); finalmente, foram encontrados organismos dos quais nem sequer se pode dizer se pertencem ao mundo animal ou ao vegetal. As lacunas nos anais da paleontologia iam sendo preenchidas uma após outra, o que forçava os mais obstinados ao reconhecimento do assombroso paralelismo existente entre a história do desenvolvimento do mundo orgânico em seu conjunto e a história do desenvolvimento de cada organismo em separado: o fio de Ariadne que devia indicar a saída do labirinto no qual a botânica e a zoologia pareciam cada vez mais perdidas. Observe-se que quase ao mesmo tempo em que Kant; atacava a doutrina da eternidade do sistema solar, C. F. Wolff desencadeava, em 1759, o primeiro ataque contra a teoria da constância das espécies e proclamava a teoria da evolução. Mas o que apenas antecipara brilhantemente tomou uma forma concreta nas mãos de Oken, Lemarck e Baer e foi vitoriosamente implantado na ciência por Darwin, em 1859, exatamente cem anos depois.
Quase ao mesmo tempo ficou estabelecido que o protoplasma e a célula, considerados até então como os únicos constituintes morfológicos de todos os organismos, eram também, formas orgânicas inferiores com existência independente. Todas essas realizações reduziram ao mínimo o abismo entre a natureza inorgânica e a orgânica e eliminaram um dos principais obstáculos que se erguiam ante a teoria da evolução dos organismos. A nova concepção da natureza achava-se já traçada em seus aspectos fundamentais: dissolveu-se toda rigidez, tudo o que era inerte adquiriu movimento, toda particularidade considerada como eterna passou a ser passageira, e ficou demonstrado que a natureza move-se num fluxo eterno e cíclico. *** E assim voltamos à concepção que os grandes fundadores da filosofia grega tinham do mundo – a concepção de que toda a natureza, desde suas mais ínfimas partículas aos corpos mais gigantescos, desde o grão de areia até o Sol, desde o protísta até o homem, acha-se em estado perene de nascimento e morte, em fluxo constante, sujeito a incessantes transformações e movimentos. Com a única diferença essencial de que o que fora para os gregos uma intuição genial é, em nosso caso, o resultado de uma rigorosa investigação científica baseada na experiência e que tem, por isso, uma forma mais definitiva e mais clara. É certo que a prova empírica desse movimento cíclico não está isenta de lacunas, mas, estas, insignificantes em comparação com o que já se conseguiu estabelecer firmemente, são menores cada ano. Além do mais, como pode ser essa prova isenta de lacunas em alguns detalhes se levarmos em conta que os ramos mais importantes do saber – a astronomia transplanetáría, a química, a. geologia – contam apenas um século, que a fisiologia comparada existo apenas há cinqüenta anos e que a forma básica do quase todo desenvolvimento vital, a cédula, foi descoberta há menos de quarenta anos?
*** Os inumeráveis sóis e sistemas solares de nossa ilha cósmica, limitada pelos anéis siderais extremos da Via Láctea, desenvolveram-se graças à contração e esfriamento de nebulosas Incandescentes, sujeitas a um movimento em torvelinho cujas leis talvez sejam descobertas depois que vários séculos de observações nos proporcionarem uma idéia clara do movimento próprio das estrelas. Evidentemente, esse movimento não se operou em toda parte com a mesma celeridade. A astronomia é cada vez mais obrigada a reconhecer que, além dos planetas, existe em nosso sistema sideral corpos opacos, sóis extintos (Mädler); por outro lado (segundo Secchi), uma parte das manchas nebulares gasosas pertence a nosso sistema estelar como sóis ainda não formados, o que não exclui a possibilidade de que outras nebulosas, como afirma Mädler, sejam distantes ilhas cósmicas independentes, cujo estádio relativo de desenvolvimento deve ser estabelecido pelo espectroscópio. Laplace demonstrou, minuciosamente e com mestria até hoje não superada, como um sistema solar se desenvolve a partir de uma massa nebular independente; conquistas posteriores da ciência vieram provar, cada vez com maior força, que ele tinha razão. Nos corpos Independentes formados dessa maneira – tanto nos sóis como nos planetas e seus satélites – prevaleceu a princípio a forma de movimento da matéria que chamamos calor. Não se pode falar de compostos de elementos químicos nem sequer à temperatura que tem atualmente o Sol; observações posteriores sobre o Sol demonstraram-nos até que ponto o calor se transforma em eletricidade ou em magnetismo; já se acha quase provado que os movimentos mecânicos que se operam no Sol são devidos exclusivamente ao conflito entre o calor e a gravidade.
Os corpos desprendidos das nebulosas esfriam-se mais rapidamente quanto menores são. Primeiro esfriam-se os satélites, os asteróides e os meteoritos, do mesmo modo que a nossa Lua há muito se esfriou. Nos planetas esse processo opera-se mais lentamente, e no astro central com maior lentidão ainda. Paralelamente ao esfriamento progressivo começa a manifestar-se com força crescente a interação das formas físicas de movimento que se transformam umas em outras, até que, por fim, se chega a um ponto em que a afinidade química começa a deixar-se sentir, em que os elementos químicos antes indiferentes se diferenciam quimicamente, adquirem propriedades químicas e se combinam uns com os outros. Essas combinações alteram-se continuamente com a diminuição da temperatura – que influi de um modo diferente já não só em cada elemento, mas em cada combinação de elementos -; mudam com a conseqüente passagem de uma parte da matéria gasosa primeiro ao estado líquido, depois ao estado sólido e com as novas condições assim criadas. O período em que o planeta adquire sua crosta sólida e aparecem acumulações de água em sua superfície coincide com o período em que a importância do seu calor intrínseco diminui mais e mais em comparação com o que recebe do astro central. Sua atmosfera converte-se em palco de fenômenos meteorológicos no sentido que damos hoje a esta palavra, e sua superfície em palco de mudanças geológicas, nas quais os depósitos resultantes das precipitações atmosféricas vão ganhando cada vez maior preponderância sobre os efeitos, lentamente decrescentes, do fluído incandescente que constituísse um núcleo interior. Finalmente, quando a temperatura desceu até tal ponto – pelo menos em uma parte importante da superfície que já não ultrapassa os limites em que a albumina é capaz de viver, forma-se, desde que se dêem outras condições químicas favoráveis, o protoplasma vivo.
Hoje, ainda não sabemos que condições são essas, o que não pode causar estranheza, já que até agora não se conseguiu estabelecer a fórmula química da albumina, nem sequer conhecemos quantos albuminóides existem, e só há uns dez anos sabemos que a albumina completamente desprovida de estrutura cumpre todas as funções essenciais da vida: a digestão, a excreção, o movimento, a contração, a reação aos estímulos e a reprodução. Transcorreram seguramente milhares de anos antes que se dessem as condições para o seguinte passo adiante, e da albumina informe surgisse a primeira célula, graças à formação do núcleo e da membrana. Mas com a primeira célula obteve-se a base para o desenvolvimento morfológico de todo o mundo orgânico; o que primeiro se desenvolveu, segundo podemos coligir levando em conta os dados fornecidos pelos – arquivos de paleontologia, foram inúmeras espécies de protistas acelulares e celulares – delas só chegou até nós o Eozoon canadense13 – que foram diferenciando-se até formar as primeiras plantas e os primeiros animais. E dos primeiros animais desenvolveram-se essencialmente graças à diferenciação, incontáveis classes, ordens, famílias, gêneros e espécies, até chegar aos vertebrados e, finalmente, entre estes, à forma na qual o sistema nervoso alcança seu mais pleno desenvolvimento e em que a natureza adquire consciência de si mesma na pessoa do homem.
Também o homem surge em virtude da diferenciação, e não só como indivíduo – desenvolvendo-se a partir de um simples óvulo até formar o organismo mais complexo produzido pela natureza – mas também no sentido histórico. Quando, depois de uma luta de milênios, a mão por fim se diferenciou dos pés e se chegou à atitude ereta, o homem tornou-se diferente do macaco e ficou assentada a base para o desenvolvimento da linguagem articulada e para o poderoso desenvolvimento do cérebro, que desde então abriu um abismo infranqueável entre o homem e o macaco. A especialização da mão implica o aparecimento da ferramenta, e esta implica atividade especificamente humana, a ação reciproca transformadora do homem sobre a natureza, a produção. Também os animais têm ferramentas no sentido mais estreito da palavra, mas só como membros de seu corpo: a formiga, a abelha, o castor; os animais também produzem, mas o efeito de sua produção sobre a natureza que os rodeia é igual a zero em relação a esta última. Unicamente o homem conseguiu imprimir seu selo à natureza, e não só transportando plantas e animais de um lugar para outro, mas inclusive modificando o aspecto e o clima do lugar em que mora, modificando as próprias plantas e os animais a tal ponto que os resultados de sua atividade só podem desaparecer. com a extinção geral do globo terrestre.
E isso foi conseguido pelo homem valendo-se, antes de tudo e sobretudo, da mão. Até a máquina a vapor, que é hoje sua ferramenta mais poderosa para a transformação da natureza, depende, no final das contas, como ferramenta, da atividade das mãos. Contudo, paralelamente às mãos, foi desenvolvendo-se, passo a passo, o cérebro; ia surgindo a consciência, primeiro das condições necessárias para obter certos resultados práticos úteis; depois, sobre essa base, nasceu entre os povos que se achavam numa situação mais vantajosa a compreensão das leis da natureza que determinam os referidos resultados úteis. Ao mesmo tempo que se desenvolvia rapidamente o conhecimento das leis da natureza, aumentavam os meios de ação reciproca sobre ela; a mão só jamais teria conseguido criar a máquina a vapor se, paralelamente e em parte graças à mão, não se teria desenvolvido correlativamente o cérebro do homem. Com o homem, ingressamos na história. Também os animais têm uma história, a de sua origem e desenvolvimento gradual até seu estado presente. Mas os animais são objetos passivos da natureza, e quando participam nela, isso se dá sem seu conhecimento ou desejo. Os homens, ao contrário, à medida que se afastam mais dos animais no sentido estrito da palavra, em maior grau fazem eles próprios sua história, conscientemente, e tanto menor é a influência que exercem sobre essa história as circunstâncias imprevistas e as forças incontroladas, e tanto mais exatamente há uma correspondência entre o resultado histórico e os fins de antemão estabelecidos.
Mas se aplicamos essa mesma rasoura à história humana, inclusive à história dos povos mais desenvolvidos de nosso século, veremos que mesmo aqui existe ainda uma colossal discrepância entre os objetivos propostos e os resultados obtidos, veremos que continuam prevalecendo as influências imprevistas, que as forças incontroladas são muito mais poderosas do que as postas em movimento de acordo com um plano. E não será de outro modo enquanto a atividade histórica mais essencial dos homens, aquela que os elevou do estado animal ao humano e forma a base material de todas as suas demais atividades – refiro-me à produção dos seus meios de subsistência, isto é, ao que chamamos produção social — for particularmente subordinada à ação imprevista de forças incontroladas e enquanto o objetivo desejado for atingido só com exceção, e muito mais freqüentemente se obtenham resultados diametralmente opostos. Nos países industriais mais adiantados submetemos as forças da natureza, pondo-as a serviço do homem; graças a isso aumentamos incomensuravelmente a produção, de modo que hoje uma criança produz mais do que antes cem adultos produziam. Mas, quais foram as conseqüências desse incremento da produção? O aumento do trabalho esgotador, uma miséria crescente das massas e uma crise imensa cada dez anos, Darwin não suspeitava que sátira tão amarga escrevia dos homens, em particular de seus compatriotas, quando demonstrou que a livre concorrência, a luta pela existência celebrada pelos economistas como a maior realização histórica, era o estado normal do mundo animal. Só uma organização consciente da produção social, em que a produção e a distribuição obedeçam a um plano, pode elevar socialmente os homens sobre o resto do mundo animal, do mesmo modo que a produção em geral os elevou como espécie.
O desenvolvimento histórico torna cada dia essa organização mais necessária e mais possível. Ela é que dará nascimento à nova época histórica em que os próprios homens, e com eles todos os ramos de sua atividade, especialmente as ciências naturais, alcançarão êxitos em face dos quais será eclipsado tudo o que foi conseguido até agora. Mas, "tudo o que nasce deve morrer"14. Talvez passem ainda milhões de anos, nasçam e baixem à sepultura centenas de milhares de gerações, mas se aproxima inflexivelmente o tempo em que o calor decrescente do Sol já não poderá derreter o gelo procedente dos pólos; a humanidade, cada vez mais amontoada em torno do equador, não encontrará nem sequer ali o calor necessário para a vida; irá desaparecendo paulatinamente todo sinal de vida orgânica, e a Terra, morta, convertida numa esfera fria, como a lua, girará nas trevas mais profundas, seguindo órbitas mais e mais reduzidas em volta do Sol, também morto, e sobre o qual, por fim, cairá. Alguns planetas terão essa sorte antes da Terra, outros depois; e em lugar do luminoso e cálido sistema solar, com a harmoniosa disposição de seus componentes, restará tão só uma esfera fria e morta, que continuará ainda seu solitário caminho pelo espaço cósmico. Destino igual ao que aguarda o nosso sistema solar, será, antes ou depois, o de todos os demais sistemas de nossa ilha cósmica, inclusive aqueles cuja luz jamais alcançará a Terra enquanto restar um ser humano capaz de percebê-la.
Mas o que se passará quando esse sistema solar houver terminado a sua existência, quando passar pela sorte de tudo o que é finito, a morte? Continuará o cadáver do Sol eternamente pelo espaço infinito, e todas as forças da natureza, antes infinitamente diferenciadas, em uma única forma do movimento, na atração? "Ou – como pergunta Secchi (pág. 810) – há na natureza forças capazes de fazer com que o sistema morto volte a seu estado original de nebulosa incandescente, capazes de despertá-lo para uma nova vida? Não o sabemos". Sem dúvida, não o sabemos no sentido em que sabemos que 2 x 2 = 4 ou que a atração da matéria aumenta e diminui na razão do quadrado da distância. Mas nas ciências naturais teóricas – que, na medida do possível, unem sua concepção da natureza em um todo harmonioso, e sem as quais o empírico mais limitado nada pode fazer em nossos dias -, temos com freqüência que operar com magnitudes imperfeitamente conhecidas; e a conseqüência lógica do pensamento teve que suprir, em todos os tempos, a insuficiência de nossos conhecimentos. As ciências naturais contemporâneas viram-se constrangidas a tomar da filosofia o princípio da indestrutibilidade do movimento; sem esse princípio as ciências naturais já não podem existir. Mas o movimento da matéria não é unicamente tosco movimento mecânico, mera troca de lugar; é calor e luz, tensão elétrica e magnética, combinação química e dissociação, vida e, finalmente, consciência. Dizer que a matéria em toda a eternidade só uma vez – e isso por um Instante, em comparação com sua eternidade – pode diferenciar seu movimento e, com isso, desfraldar toda a riqueza dele, e que antes e depois disso se viu limitada a simples deslocamentos de lugar – dizer tal coisa eqüivale a afirmar que a matéria é perecível e o movimento passageiro.
A indestrutibilidade do movimento deve ser compreendida não só no sentido quantitativo, mas também no sentido qualitativo. A matéria cujo simples deslocamento mecânico de lugar inclui a possibilidade de transformação, verificando-se condições favoráveis, em calor, eletricidade, ação química, vida, mas que é incapaz de produzir essas condições por si mesmo – essa matéria sofreu determinado prejuízo em seu movimento. O movimento que perdeu a capacidade de ver-se transformado nas diferentes formas que lhe são próprias, embora possua ainda dynamis, já não tem energia, e por isso se acha praticamente destruído. Mas é inconcebível que ocorram um e outro. Está fora de dúvida, em todo caso, que houve um tempo em que a matéria de nossa ilha cósmica convertia em calor uma quantidade tão grande de movimento – até hoje não sabemos de que gênero – que dele puderam desenvolver-se os sistemas solares pertencentes (segundo Mädler) pelo menos a vinte milhões de estrelas e cuja extinção gradual é igualmente indubitável. Como se operou essa transformação? Sabemos disso tão pouco como o padre Secchi sabe se o futuro caput mortuum15 de nosso sistema solar se converterá de novo, alguma vez, em matéria-prima para novos sistemas solares. Mas aqui nos vemos obrigados ou a recorrer à ajuda do criador ou a concluir que a matéria-prima incandescente que deu origem aos sistemas solares de nossa ilha cósmica produziu-se de forma natural, por transformações do movimento que são inerentes por natureza à matéria em movimento e cujas condições devem, por conseguinte, ser reproduzidas pela matéria, embora depois de bilhões de anos, mais ou menos acidentalmente, mas com a necessidade que é também inerente à casualidade.
Agora é cada vez mais admitida a possibilidade de semelhante transformação. Chega-se à convicção de que o destino final dos corpos celestes é cair uns sobre outros e se calcula inclusive a quantidade de calor que deve desenvolver-se em tais colisões. O aparecimento repentino de novas estrelas e o não menos repentino aumento do brilho de estrelas há muito conhecidas – sobre o que nos informa a astronomia – podem ser facilmente explicados por semelhantes colisões. Ademais, deve-se ter em conta que não somente os nossos planetas giram em tomo do Sol e que não só o nosso Sol se move dentro de nossa ilha cósmica, mas que toda esta última se move no espaço cósmico, achando-se em equilíbrio temporário relativo com as outras ilhas cósmicas, pois mesmo o equilíbrio relativo dos corpos que flutuam livremente pode existir só ali onde o movimento está reciprocamente condicionado; além disso, alguns admitem que a temperatura no espaço cósmico não é em toda parte a mesma. Finalmente sabemos que, com exceção de uma porção infinitesimal, o calor dos inumeráveis sóis de nossa ilha cósmica desaparece no espaço cósmico, procurando em vão elevar sua temperatura, ainda que seja em um milionésimo de grau centígrado. Que se faz de toda essa enorme quantidade de calor? Perde-se para sempre em sua tentativa de esquentar o espaço cósmico, cessa de existir praticamente e continua existindo só teoricamente no fato de que o espaço cósmico se aqueceu em uma fração decimal de grau, que começa com dez ou mais zeros?
Essa suposição nega a indestrutibilidade do movimento; admite a possibilidade de que pela queda sucessiva dos corpos celestes uns sobre outros, todo o movimento mecânico existente se converterá em calor irradiado ao espaço cósmico, graças ao qual, a despeito de toda a "indestrutibilidade da força", cessaria em geral todo movimento. (Vê-se por aqui, certamente, quanto é incorreta a expressão indestrutibilidade da força em lugar de indestrutibilidade do movimento). Chegamos assim à conclusão de que o calor irradiado ao espaço cósmico deve, de um modo ou de outro – chegará um tempo em que as ciências naturais se proporão a tarefa de averiguá-lo – converter-se em uma forma de movimento em que tenha a possibilidade de concentrar-se uma vez mais e funcionar ativamente. Desaparece com isso o principal obstáculo que hoje existe para o reconhecimento da reconversão, dos sóis extintos em nebulosas incandescentes. Ademais, a sucessão eternamente reiterada dos mundos no tempo infinito é apenas um complemento lógico à coexistência de inumeráveis mundos no espaço infinito.
Esse é um princípio cuja necessidade indiscutível mesmo o cérebro antiteórico do ianque Draper16 foi forçado a reconhecer. Esse é o céu eterno em que se move a matéria, um ciclo que unicamente encerra sua trajetória em períodos para os quais o nosso ano terrestre não pode servir de unidade de medida, um ciclo no qual o tempo de máximo desenvolvimento, o tempo da vida orgânica e, ainda mais, o tempo de vida dos seres conscientes de si mesmos e da natureza, é tão precariamente medido como o espaço em que existem a vida e a autoconsciência; um ciclo no qual cada forma finita de existência da matéria – tanto um sol como uma nebulosa, um indivíduo animal ou uma espécie de animais, a combinação química ou a dissociação – é igualmente passageira e no qual nada existe de eterno além da matéria em eterno movimento e transformação e as leis segundo as quais se move e se transforma. Mas, por mais freqüente e inflexivelmente que esse se opere no tempo e no espaço, por mais milhões de sóis e terras que nasçam e morram, por mais que possam demorar em criar-se em um sistema solar e mesmo em um só planeta as condições orgânicas, por mais inumeráveis que sejam os seres orgânicos que devam surgir e perecer antes de se desenvolverem de seu meio animais com um cérebro capaz de pensar e que encontrem por um breve prazo condições favoráveis para sua vida, para ser logo também aniquilados sem piedade, temos a certeza de que a matéria será eternamente a mesma em todas; as suas transformações, de que. nenhum de seus atributos pode jamais perder-se e que por, isso com a mesma necessidade férrea com que há de exterminar na Terra sua criação superior, a mente pensante, há de voltar a criá-la em algum outro lugar.
Escrito por F. Engels em 1875/1876. Publicado pela primeira vez em 1925. Publica-se segundo a edição soviética de 1952, de acordo com o, manuscrito em alemão. Traduzido do espanhol.