A organização econômica e o socialismo
Por Antonio Gramsci
Publicamos este escrito de um jovem companheiro porque ele nos garante tratar-se de um reflexo do pensamento de importante fração do movimento socialista turinês [1]. Renunciamos previamente a qualquer investigação de história de idéias e de história da expressão das idéias. Examinamos o escrito em si e por si, precisamente como manifestação de convicções que podem ser coletivas e podem determinar específicas tomadas de posição.
Embora concordemos em geral com muitíssimas afirmações do companheiro R.F., acreditamos serem equivocadas alguns de seus juízos e algumas das conseqüências que deles decorrem. A cisão entre política e economia, entre organismo e ambiente social, defendida pela crítica sindicalista, não passa, para nós, de uma abstração teórica vinda da necessidade empírica, inteiramente prática, de cindir provisoriamente a unidade social ativa para melhor estudá-la, para melhor compreende-la.
Ao analisar um fenômeno somos obrigados, se quisermos estudá-lo, a reduzi-lo a seus chamados elementos, que , na verdade, são apenas, cada um deles, o próprio fenômeno visto mais num dos seus momentos do que em outro, quando visamos mais a uma finalidade particular do que a uma outra. Mas a sociedade, assim como o homem, é sempre e tão somente uma unidade histórica e ideal que se desenvolve, negando-se e superando-se continuamente. Política e economia, ambiente e organismo social, formam sempre uma unidade — é um dos maiores méritos do marxismo ter afirmado essa unidade dialética.
Ocorreu que sindicalistas e reformistas, por um mesmo erro de pensamento, especializaram-se num diferente ramo da linguagem empírica socialista. Da unidade da atividade social uns destacaram arbitrariamente o termo "economia", enquanto outros fizeram o mesmo com o termo"política". Uns cristalizam-se na organização profissional e, por causa da distorção inicial do seu pensamento, fazem má política e péssima economia; os outros cristalizam-se nas atividades parlamentares, legislativas, e , pela mesma razão, fazem má política e péssima economia.
Destes desvios nascem a ocasião e a necessidade do socialismo revolucionário, que faz a atividade social retornar à sua unidade e se empenha por fazer política e economia sem adjetivos. Ou seja, ajuda o desenvolvimento e a tomada de consciência das energias proletárias e capitalistas espontâneas, livres, historicamente necessárias, a fim de que, do antagonismo entre elas, surjam sínteses provisórias cada vez mais completas e perfeitas, que deverão culminar no ato e no fato último que contenha todas elas, sem resíduos de privilégios e explorações. Esta atividade histórica contraditória não culminará nem em um Estado corporativo, como aquele com que sonham os sindicalistas, nem em um Estado que tenha monopolizado a produção e a distribuição, como aquele sonhado pelos reformistas.
Culminará, ao contrário, numa organização da liberdade de todos e para todos, que não terá nenhum caráter estável e definido, mas será uma contínua busca de novas formas, de novas relações, que se adequem cada vez mais às necessidades dos homens e dos grupos, a fim de que todas as iniciativas (se forem úteis) sejam respeitadas, de que todas as liberdades (se não implicarem em privilégios) sejam garantidas.
Estas considerações encontram um experimento vivo e palpitante na Revolução Russa, que foi até agora, em particular, um esforço titânico para que nenhuma das concepções estáticas do socialismo se afirmasse de modo definitivo, encerrando assim a revolução e reconduzindo-a fatalmente a um regime burguês, o qual, se liberal e livre-cambista, teria maiores garantias de historicidade do que um regime corporativo ou um regime centralizador e estatolárico. Portanto, não é exata a afirmação de que a atividade política socialista é socialista por que provém de homens que se dizem socialistas.
O mesmo se poderia dizer de qualquer outra atividade, ou seja, que tal atividade não é o que diz ser somente porque uma mesma qualificação é atribuída aos homens que a executam [2]. Faríamos muito melhor se a má política fosse chamada pelo seu verdadeiro nome, ou seja, o de máfia, e se não nos deixássemos encantar pelos mafiosos a ponto de renunciar a uma atividade que é componente necessária do nosso movimento. De resto, Kautsky observou agudamente que a fobia política e parlamentar é um debilidade pequeno-burguesa, própria de gente preguiçosa, que não quer realizar o esforço necessário para controlar seus próprio representantes, para identificar-se com eles ou para fazer com que eles se identifiquem conosco [3].
9 de fevereiro de 1918
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Notas:
[1] – Este texto de Gramsci precede um artigo assinado por R. F., no qual o autor faz distinção entre "ambiente" e "organismo social" e afirma que " a tentativa de mudar o organismo através da modificação do ambiente revelou-se um sonho". Além disso, R. F. negava qualquer valor à ação parlamentar.
[2] – Gramsci, muito provavelmente, tem aqui em mente uma frase de Marx, que voltará a citar muitas vezes: "Não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo" (K. Marx, "Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política ", in Marx-Engels, Obras Escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, vol.1, 1956, p.335). (retornar ao texto)
[3] – Aqui Gramsci mencionada a obra de Kautsky, O programa socialista, princípios fundamentais do socialismo. Ele conhecia a edição italiana (Milão, Avanti, 1914).
Karl Kautsky (1854-1936) foi talvez o mais importante marxista da época da II internacional. Depois de ingressar no Partido Social-Democrata austríaco em 1875, mudou-se para Londres, onde viveu entre 188/5 e 1890, trabalhando em estreita ligação com Engels. Estabeleceu-se em seguida na Alemanha, onde consolidou sua posição de principal teórico do Partido Social-Democrata deste país e, através dele, de toda a II Internacional.
Embora tenha combatido duramente, em nome do "marxismo ortodoxo", as propostas revisionistas de seu amigo e ex-colaborador Eduard Brenstein, Kautsky também se opôs abertamente, mais tarde, à revolução bolchevique de 1917, que lhe parecia ir de encontro à tese supostamente marxiana de que o socialismo só seria possível após um amplo desenvolvimento das forças produtivas. Essa posição antibolchevique valeu-lhe, da parte de Lenin, a caracterização de "renegado".
Depois da vitória do nazismo, Kautsky emigrou para Praga e mais tarde para Amsterdã, onde faleceu.
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Artigo extraído do site www.internationalgramscisociety.org.
Traduzido por Elias Jabbour, doutorando e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da revista Princípios, autor do livro China: infra-estruturas e crescimento econômico'' (Anita Garibaldi) e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.